JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 49
Capítulo 49




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Assim como os escaravelhos precisavam das fezes dos elefantes para sobreviver, ele sentia necessidade de chafurdar na merda para seguir em frente. Não achava possível levar uma vida feliz empoado no talco. Seu vício era conhecer os limites emocionais do ser humano, fazê-lo quebrar ao meio sob a sua batuta, ser o único espectador deleitado pelo ápice do desespero alheio no seu ato final. Moldava o desfecho como um oleiro dava formas aos objetos de barro, lenta e pacientemente.

 

A última vez que tinha estado ali naquele rendez vous de putas baratas e idade avançada, foi para se inspirar. Trabalhar no jornal era enfadonho e toda aquela pressa da redação lhe revolvia o estômago. A urgência em querer dar manchete a algo antes dos concorrentes remava contra a correnteza do que acreditava. Gostava do fogo lento com o qual o álcool cozinhava seus conceitos, e aquele lugar era a síntese do seu modus vivendi. Mirava numa rapariga de pelancas pronunciadas e sorriso torto pela dentadura que desencaixava quando ria como uma leitoa engasgada por algo sem graça, apenas para agradar ao cliente. Ela que a princípio não lhe despertava nenhum interesse, depois da terceira dose, tomava ares de ninfeta. A corcunda voltava para o lugar, via a fada dos dentes plantando seus molares novos em folha de volta à gengiva, e o relógio do tempo andava de ré em alta velocidade, lhe tirando das costas pelo menos trinta anos. O álcool era fantástico, mas depois que ele te enfiava naquele reino misterioso você precisava agir rápido, porque também era traiçoeiro.

 

— Têm alguma coisa aí pra mim? - Perguntou, apertando um dos mamilos caídos por fora do collant preto, salpicado de saliva seca.

— Apesar de você não ter nada para me dar em troca, sobrou um pouco para a sua fome destemperada. Dei um chega pra lá naquele pateta ali porque de repente se ressentiu de estar prestes a trair a esposa. Daqui consigo ver que a sua galhada se arrasta pelo teto, por isso ele reclama de dores nas costas e não entende que em ambientes fechados a cabeça enverga ao ponto de precisar andar com ela abaixada. Se você pudesse ver…

— Vamos logo, tenho pressa.

— Eu sei o porquê da sua agonia, e só por isso vai tomar o seu leitinho. Mas vai me pagar contando quais são os seus planos para aquela garotinha. Isso vai me excitar - Sussurrou, abrindo a boca para soltar uma gargalhada entrecortadas de tosses, onde se podia ver a dentadura rebolando em cima da língua, e uma fumaça enegrecida a lhe sair pelas ventas que não parecia ser de cigarro.

 

—----

 

Ao mesmo tempo em que sentia-se bem pela mãe estar lembrando do seu rosto, ainda que não como filha, ela precisava fixar o próprio olhar para dentro do esquife e não esquecer jamais o rosto do amado. Justino parecia dormir dentro do leito de madeira que o apertava na largura e sobrava no comprimento. A sua mão não desgrudava da testa fria e descolorida. A sua urna repousava bem no meio das outras pessoas que estavam sendo veladas em simultâneo. À sua esquerda, Cláudia, com o seu pai debulhando-se sobre ela, e à sua direita, Aurélio, o menino pelo qual Amália vertia as suas lágrimas. Cada um com as suas dores de amor, com o desencanto do apagar das luzes dos seus entes queridos, tendo que lidar com despedidas precoces. A mãe de coração, do filho da também agora falecida Agda, ajeitava um retrato da mãe biológica entre os dedos enrijecidos do corpo, para que ele fosse enterrado abraçando-a. Seu pai trouxe dois bonequinhos de plástico, brinquedos das crianças, para que a jovem esposa fosse sepultada com aquela lembrança dos filhos. Ela não tinha trazido nada, a não ser o seu amor que talvez ele não pudesse levar, pois aquilo deveria morrer com ela.

 

Acompanhou o cortejo em direção à cova como se estivesse flutuando. Como achava que não ficariam enterrados todos juntos, o corpo de Cláudia seguiu por um caminho diferente, mas o filho de Agda e Amélia seguia atrás do caixão de Justino. Ao mesmo tempo estava feliz por saber que ele seria recepcionado no paraíso pelo seu irmão gêmeo, também sabia que estava saindo do seu céu prometido para voltar ao limbo dos seus dias vazios de significado. Quando pensava em voltar a deitar-se com rostos desconhecidos na sua cama, para uma performance esforçada a troco de umas notas de baixo valor, o seu estômago respondia com contrações que a faziam duvidar se conseguiria outra vez. Por outro lado, sabia que nada que fizesse traria novamente a alegria que aquele cadáver do tórax avantajado conseguiu lhe dar. Queria embalsamar aquele corpo e deitá-lo na sua cama para sempre. Com a cabeça dando voltas em meio a ideias absurdas, mal ouviu o coveiro pigarreando para chamar a sua atenção.

 

— A senhora quer jogar flores antes de colocar a tampa do jazigo?

— Se você não se importar, eu gostaria de ficar uns momentos sozinha aí com ele - Pediu, apontando para a capela que ele tinha construído para o irmão, e onde o seu corpo seria encerrado.

— Tudo bem. Vou na secretaria resolver um assunto, mas não demoro. Fique à vontade - Informou, se afastando sem deixar de olhar as formas da viúva, se perguntando se ela voltaria a atender na maison. Era forte candidato para curar aquela ressaca. Quem sabe até ela nem lhe cobrasse como uma gentileza.

 

Samira aguardou os olhares do homem desgrudarem do seu corpo, pois era a sensação que tinha ao ouvir os passos lentos e arrastados para longe. Entrou na pequena capela, puxou o maço de cigarros, de onde tirou um e acendeu. Abaixou-se para perto do corpo e enfiou o maço no bolso do paletó de Justino.

 

— Esse é o último cigarro que vou fumar sem você. Guarde isso aí porque o próximo é você quem vai me dar, seja onde for - Disse com a voz embargada, jogando o cigarro aceso ainda pela metade no chão e pisando em cima, saindo em seguida para dispensar Janete que tinha ficado tomando conta da sua mãe.

 

—---

 

Seus encantos já tinham se perdido há muitos anos atrás, quando ainda dava um belo caldo, mas isso não quer dizer que quem tem fome, não quer botar na boca o que encontra. Nesse caso, ela era o objeto da sanha do dono da vendinha, que vendo a oportunidade de trocar informações por libidinagens, poderia fazer dar certo. Quem sabe aquela virilha de menopausa pudesse conter algo do elixir perdido no passado, afinal sua vida era de uma monotonia miserável. Mas não foi por falta de novidade que ele precisou dizer-lhe o que sabia, até porque com uma garrucha apontada para o seu queixo e um fio de urina a lhe escorrer pelas coxas, o argumento de Conceição era demasiado contundente para que ele fizesse algum tipo de jogo.

 

— Agradeço a gentileza, e mesmo assim pagarei em breve o meu fiado, assim que encontrar a minha neta. Negócios são negócios - Disse, desarmando o gatilho da arma antiga que ela nem sabia se funcionava, e já saindo da quitanda em direção a porteira do seu sítio.

 

Vasculhou as proximidades do lado oposto da entrada do seu terreno, onde talvez alguém pudesse esconder um veículo das vistas dos moradores, e se deparou com um saco de papel, que cutucou com a ponta dos pés, revelando os tais ossos da galinha que ele disse ter assado e vendido para Peixoto. Então a informação estava correta. Aquele homem de aparência execrável, estava de tocaia e por trás do sequestro de Cidinha. Não seria difícil encontrar o endereço do jornal onde a filha tinha trabalhado. Entrou em casa para arrumar uma muda de roupa, pegar dinheiro para a passagem de ônibus, pedindo aos céus que o maldito não tivesse tocado um único dedo na sua menina.

 

—-----

 

— Você acha que vamos estar seguros lá? É longe o suficiente? - Ela perguntou, com uma nuvem de preocupação rondando-lhe o juízo.

— As minhas nádegas não permitem que eu passe mais uma noite dentro de um ônibus. Logo, logo, você vai ter que tratar das minhas hemorróidas.

— Eu estou começando a gostar desse seu humor macabro - Comentou, dando uma risadinha, e tascando um beijo no coveiro, enquanto fazia uma expressão lasciva, implorando para que ele arranjasse logo um lugar para dormirem o mais perto da praia possível.

— Eu também quero você, e é bom que seja logo, senão vai ser aqui dentro mesmo.

— Homem, pelo amor de Deus, têm crianças a bordo - Objetou Vilma, baixando a voz.

 

Ele esticou o pescoço para olhar ao redor, mas só viu um casal de adolescentes se bolinando duas fileiras atrás.

— Minha pombinha, aqueles dois lá já fornicam mais que quenga na quaresma. E também já estão no limite - Disse, observando a mocinha abaixar a cabeça em direção ao colo do rapaz, que quando percebeu que o observavam, deu um riso amarelo, colocando a mocinha sentada outra vez. Ela, por sua vez, não notou um pelo grosso que lhe enfeitava o canto da boca, fazendo os olhos do rapaz arregalarem de susto, e a cara avermelhar de vergonha. Dormiram o resto da viagem debaixo de cobertores, mesmo com o calor de um ônibus sem ar condicionado atravessando o sertão no início da tarde.

 

‘’Franguinhos’’ - Pensou o coveiro, enquanto abria mais um pouco a janela, e ver se conseguia acalmar o próprio assanhamento.

 

—---

 

— …..alguém nessa frequência?........alguém na escuta?.....chamando da central de….tzzz tzzz - O rádio estalava com a estática.

 

Ficou tentado a pegar o rádio e fazer um discurso contra o sistema hipócrita, que o trancava numa prisão que chamavam com pompa de ‘’clínica de recuperação para delinquentes juvenis’’, e o liberavam sob ordens de um juiz com uma canetada autocrática e sem fazer qualquer avaliação para contradizer a própria lógica deles. Mas sabia que fariam uma vitamina dele caso os afrontasse, e logo a pedreira estaria coalhada de policiais. Não perdeu muito tempo se questionando o que um camburão fazia ali abandonado, mas na cabine havia um perfume feminino que pensou ter reconhecido em algum momento da sua vida. Nenhuma das pilantras com as quais já tinha se deitado usava algo tão sofisticado. Mas sabia que já tinha sentido aquele aroma no corpo de uma mulher.

 

A ideia anterior era dormir em um dos alojamentos sem uso, mas seguiu até o esconderijo que ficava num buraco escavado por Nego Bó e Ramiro para guardar armas. Um dia aquilo poderia ser providencial. E parece que o dia tinha chegado. Depois de subir a primeira volta da estrada de cascalho por onde os caminhões subiam para carregar a brita, localizou o pedregulho acinzentado de cinco quilos que servia como escora para o monte de terra que jogaram sobre o material. Mesmo no escuro, depois de um grande esforço para mover a pedra, tateou pela abertura e encontrou o que queria. Puxou o pedaço de pano, espanou a poeira e abriu. Dois reluzentes revólveres calibre 32 estavam nas suas mãos. Abriu os tambores e com a ponta dos dedos certificou-se que apenas um estava carregado. Enfiou novamente a mão no mesmo lugar e puxou uma caixa. Já não havia munição nela. Deviam ter usado praticando tiro ao alvo. Ficou satisfeito em ter pelo menos uma arma para dar cabo na sentença que tinha dado a quem fizera mal ao seu pai. Dinorá pagaria por tornar o seu pai um eunuco, e por tê-lo feito sumir das vidas dele e de sua mãe.

 

O rádio do camburão ainda chiava, quando viu as luzes sobre os carros da polícia girando e se aproximando. Tratou de sair dali, mas não sem antes deixar uma lembrança para os homens que chegavam. Correu novamente para o carro de transporte de detentos, calculando que levariam ainda uns dez minutos até entrarem pelo portão. Abriu a tampa do tanque de combustível e enfiou um pedaço da flanela que encontrou na viatura, o mais fundo que conseguiu. Tirou o isqueiro de prata que tinha roubado no carro do Dr. Eliseu, e acendeu a ponta do pano. Correu para o lado oposto da pedreira, onde havia uma saída para pedestres. Escalou o portão pela grade, com cuidado para a arma não cair do cós da calça, e pulou para o outro lado, a tempo de ver os três carros do comboio policial entrarem a toda velocidade no pátio de manobras e frearem com violência, no momento em que o tanque do veículo explodiu, espalhando destroços em chamas da carroceria pelos ares. Cada vez mais confiante, seguiu em frente se deixando engolir pela escuridão da noite.


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