JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 45
Capítulo 45




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808851/chapter/45

O camburão que o transportava liderava o comboio de três veículos, cada um deles levando um personagem envolvido no comércio de cadáveres. No primeiro, Zé Osvaldo observava a paisagem do lado de fora pela fresta minúscula, aguardando o momento ideal para pôr o seu plano em ação. As mãos, já estavam livres das algemas, resultado da sua experiência em manipular aqueles mecanismos com uma presilha de cabelo, que guardava na sua cabeleira com o mesmo zelo que trabalhava incansável pelo cumprimento da sentença de Jonas. Planejava usar o seu corpanzil para adernar a viatura em uma curva específica da estrada. Treinou em silêncio o movimento em que jogaria todo o seu peso do lado oposto da carroceria, com cuidado para não chamar a atenção do motorista, que dirigia em alta velocidade para se livrar daquela carga indesejada. Não notou a presença de batedores da polícia, o que era um alívio. Com sorte, os outros dois camburões prestariam socorro ao colega, e quando abrissem a traseira para ver o estado geral do detento, talvez tornasse a usar aquele singelo instrumento. Era o cenário que desenhava na sua cabeça.

 

Não estava certo se Amália já tinha sido avisada da sua prisão, ou se ela tinha conseguido pistas que levassem até os restos mortais do seu menino, mas tinham um acordo tácito para que ela nunca viesse vê-lo detido. Apenas aguardasse em casa que cedo ou tarde ele retornaria. E não pretendia decepcionar a mulher da sua vida, aquela que se apaixonou por um humilde borracheiro, disfarce do seu verdadeiro alter ego, e com o qual não tinha ficado impressionada. Revelou-lhe que havia dois homicidas ocasionais na sua família. A própria mãe, viúva de quatro homens envenenados por ela, e um irmão que ganhava a vida matando prefeitos corruptos a mando da oposição, e que às vezes ele próprio eliminava pelo mesmo motivo. A sua genitora havia morrido na prisão depois de quinze anos encarcerada, e o seu irmão tinha acabado de assassinar o vigésimo mandatário em uma cidadezinha que ele não saberia apontar no mapa. Assim tinha sido noticiado há poucos dias na televisão.

 

Às vezes culpava Amália por ter revelado ao menino a sua origem e os detalhes de como foi encontrado. Tinha desistido de ir atrás daqueles que vendiam as imundícies que ele consumia. Era um trabalho inútil, já que teria que dar sumiço desde pés rapados até os galalaus poderosos, que apreciavam se desconectar de vez em quando das leis, artigos e parágrafos, escritos pela sua própria gente. Seria como separar o joio do trigo dentro do caldeirão do inferno. Esmagar um pernilongo trazia toda a sua família barulhenta para o enterro, portanto seus alvos já lhe satisfaziam, como os pregos da crucificação inebriavam aos devotos de um Pôncio Pilatos de picadeiro. Um escroto de cada vez.

 

Era grato ao Criador por cada centímetro cúbico de oxigênio que entrava nos seus pulmões, mas não lamentava por nenhum mililitro de sangue que derramava de gente execrável. Era o expurgo necessário para alcançar a terça parte do que almejava como seu colchão de felicidade. Ele só queria ter tido a chance de ao menos preparar o filho para os dissabores que a realidade nada doce do mundo imporia a sua imaturidade. Entretanto ele próprio era um subproduto de uma criação enraizada numa sofreguidão sem fim de uma esperança que nunca chegava. Ainda aguardava de joelhos o retorno dócil dos ecos das preces de sua mãe que voltavam como bumerangues afiados a cortar pescoços.

 

Navegando em pensamentos que não costumava ter, ficou atento quando passou pelo ponto de referência na estrada que ficava próximo do início da parte mais sinuosa. Os outros dois veículos vinham a pouca distância, com as sirenes ligadas. Estavam a poucos quilômetros da penitenciária, e portanto, só teria uma única chance. A curva era bastante acentuada e longa, e se o motorista mantivesse a mesma velocidade, suas chances aumentariam. Encostou o corpo em um dos lados do cubículo e aguardou o momento certo. Notou a inclinação do veículo e a força que o pungia para o lado oposto. Fechou os olhos, e no ângulo mais fechado da curva, arremessou o corpanzil na carroceria com toda a força que conseguiu. O veículo não tombou, e por uns instantes achou que tinha perdido a oportunidade quando notou que o motorista havia perdido a direção, lutando com o volante para trazer o camburão de volta para a faixa e colocar as quatro rodas no asfalto outra vez. Osvaldo se encolheu em posição de impacto, que veio quando o bólido desgovernado atravessou a pista, e despencou  na ribanceira inclinada, depois de arrebentar o arame farpado que delimitava uma propriedade, parando apenas ao se chocar com violência no tronco de uma árvore, alguns metros abaixo.

 

Com o impacto, a porta traseira escancarou devido a torção do chassi. O matador que estava em posição fetal teve apenas um ferimento no ombro e hematomas que não demandavam muita atenção. Certificou-se de que todos os seus ossos estavam inteiros e rastejou para fora cambaleando. O tamanho da cabine havia se reduzido à metade e os dois homens tiveram morte instantânea, um deles, decapitado por uma barra de sustentação do motor que invadiu o porta luvas. Ainda grogue, enfiou a mão pelas janelas e retirou as armas, já esperando que aparecesse alguém em seu socorro. Desejava que fossem os guardas dos outros veículos. Olhou mais detidamente a cena do acidente, com o radiador da viatura soltando fumaça, e viu a cabeça do policial na grama fazendo companhia a um…um cacau. Olhou para cima e identificou a árvore franzina e bastante avariada com a pancada, e seus frutos espalhados pelo chão. Era aquele monstro da natureza fazendo outra aparição, mas que daquela vez teve serventia.

 

Aquele suspense o fez lembrar da primeira morte associada a ele, e que de fato o fazia proprietário daquela alma, antes de presentear o coisa ruim com o que restasse depois de estourar seus miolos. Era apenas a sua primeira tocaia, e não havia se preparado com esmero. Sentiu sede, fome, e frio, mas não arredou o pé da sua posição por quase vinte e quatro horas até identificar as feições idênticas do retrato que o faria receber os outros cinquenta por cento do contrato firmado, apenas alisando a ponta do bigode com um fulano que mal sabia o nome. Ninguém era louco ao ponto de contratar um matador se não pudesse seguir com o prometido. Sempre fazia um levantamento prévio da vida do contratante, buscava entender os motivos para dar cabo em alguém, cobrava a metade adiantado com a promessa de devolver caso falhasse. Não atirava em mulheres por mais que ela merecesse. Era algo pessoal. Perdeu o pai muito cedo para uma picada de barbeiro que fez o coração do seu velho inchar como uma bochecha esbofeteada, e aos sete anos passou a ser criado por mãe e avó. Era por quem tinha devoção. Antes de apertar o gatilho sempre pedia desculpas a ambas em silêncio, olhando para um retrato em preto e branco amarrotado, no qual estava no meio das duas no dia em que recebeu o seu diploma da alfabetização. Morreram em um intervalo muito curto, e foi os ganhos que teve no seu ofício atípico que proporcionou dois enterros dignos, com direito a caixões de mogno sob encomenda, com alças cromadas.

 

Cresceu matando passarinhos com estilingue, e daí foi um passo para caçar porco do mato com espingarda. Era bom de mira e aquilo chamou a atenção do filho do prefeito, que passou a andar com ele, até que surgiu um convite para comer broa de milho com tubaína de tutti frutti na casa do rapaz, a sua preferida. Na verdade era o mandatário que estava interessado em prosear com Zé Osvaldo. Daquela conversa nasceu o seu primeiro contrato, às vésperas de completar dezessete anos e já fazendo uns bicos em uma borracharia de beira de estrada, que optou por manter como um verniz.

 

Ficou encarando por uns segundos os olhos arregalados e o lábio leporino da cabeça fora do corpo, e a chutou para debaixo do camburão sabendo que aquela imagem estaria gravada para sempre no seu cérebro.  Foi quando ouviu barulho de vozes na parte alta da estrada. Parecia que estava com sorte. Poderiam ter seguido direto como parecia rezar o protocolo naquelas situações, mas resolveram ser solidários aos colegas. Pena que já era tarde demais para eles, e também provável para os dois que vinha descendo o barranco escorregadio. Deu uma volta por trás do cacaueiro e se aboletou entre dois galhos em ‘’v’’, com uma visão privilegiada. Checou os tambores das armas, confirmando estarem carregadas. Seria a sangue frio. Sabia que atrairia os outros dois que ficaram montando guarda nos camburões lá em cima. Se tudo corresse bem, estaria encostando o cano do trinta e oito na testa de Jonas em poucos minutos. Quanto a moça, apesar da sua vil participação no esquema, deixaria ir.

 

Era como se algo o possuísse quando avistava as suas vítimas. Já não as via como seres humanos normais, metidos em suas roupas ou cheirando às suas lavandas. Enxergava esqueletos em movimento, a desenvoltura dos ossos e suas articulações, o chorume cadavérico e o sussurro de almas prestes a serem levadas. Nunca sabia que direção elas tomavam, mas baseado apenas nos relatos dos seus contratantes, geralmente eram puxadas para os subterrâneos. Naquele caso, nada conhecia da vida pregressa daqueles homens, mas o primeiro contato visual que obteve deles quando chegaram na parte baixa do barranco, foi de duas carcaças ósseas articuladas que caminhavam na direção do acidente com armas engatilhadas, sibilando palavras que mais lhe pareciam uma estação de rádio mal sintonizada. Apoiou os revólveres onde dois troncos se encontravam, e repetiu a ação do seu último contrato consumado antes de ir atrás de Jonas. Um trabalho exitoso, porém demasiado excêntrico.

 

O vice-prefeito havia mandado lhe buscar de carro no local combinado, e conforme pedido do contratante, meteu-se em uma roupa social pela primeira vez, apenas para que ficasse registrado a quem os visse juntos que se tratava de negócios. O seu desconforto era visível, e ao invés de passar a imagem de um causídico de renome, mais parecia um matuto indo ao banco buscar um prêmio raquítico de loteria. Aliado àquilo, devido ao seu porte avantajado, viajou por duas horas com o pescoço torto devido ao teto baixo do Karmann Ghia, lhe conferindo um torcicolo. À chegada, foi recepcionado pelo Dr. Tomé e a sua esposa, uma mulher de aparência lasciva, que de maneira surreal, cumprimentou-o metida num macacão apertado e sujo, enquanto trabalhava numa massa de cimento com uma pá. Ao lado dela, uma piscina em construção. A futura primeira dama era muito mais do que um monte de curvas escorregadias.

 

Logo foi acomodado em um dos quartos, com uma estante abarrotada de livros. Trouxeram-lhe o jantar no quarto, e junto com ele, a empregada perguntou se ele gostaria que ela ficasse com ele naquela noite como presente do patrão. Obviamente não se fez de rogado, e já estava quase esquecendo do que tinha vindo fazer ali, depois que a moça morena e de grossos mocotós abriu uma gaveta e retirou de dentro um livro amarelado, que abriu.

 

— O seu patrão não mandou você dormir comigo apenas para ler histórias da carochinha, não foi? - Perguntou à jovem de cabelos curtos e encaracolados, que respondeu mostrando o que ela buscava entre as páginas. Um cigarrinho que ele conhecia muito bem e que fumaram juntos.

 

Não soube muito bem em que momento a voz alterou de tom. A moça tinha uma voz fina e esganiçada, tendendo a escandalosa, e um minuto depois, ainda com a mente anuviada, ele compreendia um tom grave com excesso de cordialidade. Esfregou os olhos e se encolheu na cabeceira da cama assustado com o que via. Um homem de meia idade, calvo, baixo, e trajando apenas ceroulas, falava entusiasmado.

 

— Soube que você até anda com um retrato meu no bolso da calça, é verdade? - Indagou o homem, lançando-lhe um sorriso devasso, passando a língua nos lábios, e buscando a calça que estava caída aos pés da cama, entregando-lhe.

 

Recuperando-se um pouco dos efeitos da erva, Zé Osvaldo retirou do bolso o retrato do alvo que tinha sido entregue a ele. Aquela criatura era o prefeito de Sabugueiro, o indivíduo a ser morto, e que estava tentando lhe seduzir. Não esperava que ele próprio fosse feito de isca para atrair o alvo. Também não foi informado que a sujeira seria espalhada ali mesmo naquele quarto bem arrumado. Ficou tentado a abrir a porta e perguntar a alguém lá fora. Mas aquilo poderia parecer amadorístico demais. Parecia que o prefeito era dado a rompantes na munheca, e o vice escamoteava as suas brincadeiras. Receou ser uma emboscada, mas de qualquer maneira sairia dali por bem, ou por mal. Espremia os olhos para alinhar as pupilas que teimavam em lhe fazer enxergar dois alvos. O que tinha fumado era bem forte, mas ele era mais. Quando o pederasta fez menção de pular sobre ele, enfiou as mãos por trás do travesseiro e sacou as duas armas. Apontou uma para cada cabeça da Hidra de Lerna e disparou ao mesmo tempo. Por uns instantes achou que uma das cabeças fazia troça da sua cara, mas logo a imagem se dissolveu, dando lugar a um janelão quebrado e um corpo caído lá fora.

 

Sua vontade de fazer perguntas logo foi aliviada com o maço de notas que lhe foi entregue dentro de uma sacola de mercado. A morena atarracada que quase lhe serviciara no quarto, arrastava o corpo, jogando-o dentro da piscina em construção, enquanto Piedade, esse era o nome da mais nova primeira dama, despejava a massa por cima. Sem que mais ninguém lhe desse atenção, foi caminhando para a saída e rasgando o retrato do morto, indo para longe daquela cerimônia de seita herética.

 

*

 

A hora certa de apertar o gatilho era como dar a luz. Precisava que a boca enchesse de água como se fosse uma bolsa estourando num prenúncio de parto. Precisava da saliva para sentir o gosto da morte iminente, do apagar das luzes de uma vida. Sem ela, a sua sanha era apenas um deserto de vontade. Logo descobriu que não era mais pelo dinheiro, após construir a sua bela residência, mas sim pelo poder de alterar o número de habitantes da terra. Como portador de um estrabismo divergente, fez mira individual e simultânea com cada olho, e cometeu o duplo homicídio com disparos certeiros. Um na testa, e outro no nariz. Aproximou-se olhando para a parte de cima da estrada, certificando-se de que a barra estava limpa. O homem de sorte levou um tiro na testa e teve morte instantânea.  O outro, agonizava com um enorme buraco no lugar do nariz, por onde balançavam pedaços de cartilagens e bolos de sangue, conforme respirava. Os olhos imploravam por uma misericórdia reversa, a morte. Que logo veio com outro disparo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "JARDIM BAGDÁ" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.