JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 2
Capítulo 2




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A metamorfose da sua mãe num maracujá seco e cheio de azedume se dera lentamente. A velha quase não andava mais, porém quando o chamava para perto sussurrava-lhe algo no ouvido, o que também era sinônimo de um puxavanco na orelha. Resignado, se ajoelhava diante da cadeira de balanço e entregava o ouvido direito para que ela pudesse torcer o lóbulo com os seus dedos descarnados, mas ainda fortes para deixá-lo em carne viva. Ao mesmo tempo soprava a ladainha que ele já conhecia. Acontecia antes do café, e servia para que ela ardesse o dia inteiro para lembrar-lhe dos seus conselhos antes de sair cometendo desatinos.

 

Era o caçula bem distante de oito irmãos, metade mulheres, o fim de safra, e único de pai dissemelhante. Desde cedo suas traquinagens a irritavam. Ela dizia que não tinha mais idade pra correr atrás de fedelho. Aos oito, pulou o muro da casa paroquial e roubou as cuecas do Padre do varal; aos onze incendiou o chevette do vizinho que implicava com a pelada que jogavam na porta de sua casa; aos treze jogou gasolina no próprio cachorro e riscou o fósforo porque o animal tinha urinado no sofá. O coitado virou um pedaço de carvão. A mãe havia tentado de tudo para acalmá-lo, suco de maracujá, surras de cinto, chá de lavanda, benzedura, hipnose, pajelança, ameaças veladas de mandá-lo para um orfanato, água benta, patuás no travesseiro, feitiços e simpatias. Só se negou a acorrentá-lo em casa e pedir exorcismo ao Padre, porque de resto, esgotou o repertório de reprimendas. E Montila só piorava o comportamento. 

 

Sua alcunha veio quando notou que ser analfabeto lhe causava constrangimento junto aos seus subalternos que tinham conhecimento das letras. Segurando uma garrafa da sua bebida predileta, teve a ideia de usar um tapa olho como aquele do pirata no rótulo. Aquilo lhe dava uma aparência de malfeitor e também uma desculpa de que não conseguia ler com um olho apenas, já que outro era doente.

 

De arruaças no bairro e pequenos furtos evoluiu para contrabando, falsificação de bebidas e roubo de carros. Já era um velho conhecido da polícia, a quem visitava com frequência, mas logo era liberado sob fiança, paga pela mãe. Passou a evitar a violência extremada depois de um evento que o marcou, e nunca teve sanha de matador. Seu porte era franzino, pele pardacenta, cabelo sarará, herdado do pai que tinha sumido no mundo quando soube que engravidou uma mulher vinte e dois anos mais velha que ele. Mas tinha estatura e ombros de nadador, e uma voz de barítono que sabia usar muito bem ao dar ordens ou disparar ameaças. Sabia mandar, manipular e esconder os seus sentimentos. Era um jogador nato e sabia blefar quando estava em desvantagem. Mas aquele dia era diferente de tudo. Sentiu o abalo nos alicerces, as rachaduras da sua alma formando uma teia a qual estava preso. Era o corpo da sua mãe que estava naquele caixão. E nenhum dos seus talentos seria útil para aplacar aquela coisa que lhe corroía as entranhas.

 

Seus irmãos, circulavam no salão do velório lotado com desenvoltura. Ele se sentia um peixe fora d’água e manteve distância do corpo da mãe. Estava inquieto dentro de um paletó alugado, fumando um cigarro atrás do outro, lembrando que ser o pária da família tinha um preço a pagar. Seus meio-irmãos eram a fina flor, exerciam profissões gabaritadas de médicos, advogados, reitor e professores universitários, e tinha até um Juiz, que tinha avisado a mãe, que se um dia ele fosse parar na sua vara criminal, não aliviaria. Ainda bem que não chegaram a saber da ideia de enterrar a mãe no Jardim Bagdá. Os irmãos tinham ojeriza dele, o olhavam como a uma fruta estragada.

 

Depois do enterro, sem trocar uma palavra com a parentela ordeira, andou dois quarteirões até a porta de um bar grã-fino onde Ramiro, seu cabra de confiança, o estava esperando dentro do Maverick. Esse carro não podia passar nem perto de onde o Dr. Eliseu, seu irmão mais velho e Juiz da 1a. vara criminal, estava. Ele havia roubado aquele exemplar dele. Uma vendeta pessoal. Uma outra que precisava cumprir era contra o tal Justino. Aquele truquezinho barato podia assustar os seus capangas de miolo mole, mas aquilo tinha ido pro caderninho. Já era a segunda vez que fora perturbado pelo sujeito, e a primeira não fazia muito tempo.

 

O PRIMEIRO IMBRÒGLIO

 

O terreiro de Véia Guida que servia para o encontro todas as noites, era de terra batida, espaçoso e plano. Ao cair da tarde quando se reuniam, ela acendia um cordão de lâmpadas para iluminar o espaço. Também era ali que ela misturava os seus matos num caldeirão para fazer as garrafadas que vendia na feira. Era tida como bruxa e feiticeira. Quase ninguém sabia nada da história daquela idosa miúda, com idade incerta, de pele engelhada, cabelos brancos desgrenhados sem um lenço que os domasse, boca sem dentes e sorriso fácil. Se irritava com quem a chamava de macumbeira. Se auto intitulava de A Bruxa de Bagdá, e muitos a procuravam atrás de suas poções, tanto para frivolidades, como por exemplo prender marido, como para doenças graves de pacientes desenganados pelos médicos. Se ela tinha poder ou não, isso nunca foi provado, mas o povo a tinha como solução para todo tipo de problema.

 

O Mestre Tuta levava os mais novos, alunos dos primeiros estágios, para bater palmas, apurar o manejo do berimbau, e aprender o gingado com os mestres. Enquanto os mais experientes apuravam a sua técnica. Havia um acordo de cavalheiros para que duas turmas distintas frequentassem a roda em dias alternados, para que não se encontrassem. A primeira era formada pelos cupinchas e puxa sacos de Montila, e a segunda, pela turma da rua do cemitério, já que não se davam bem desde a formação do bairro. Uma rivalidade que nem os mais velhos sabiam explicar como começou e muito menos o que a tinha motivado. De qualquer maneira eram como água e óleo. Porém, justo naquele dia, houve uma confusão com as datas, já que a Véia Guida ficara três dias fora catando ervas para fabricar suas poções, e não houve treino.

 

— O que esse cara tá fazendo aqui? – Indagou Nego Bó, o número dois da gangue de Montila, fazendo menção de pegar seu canivete no bolso, olhando fixamente para Justino.

— Eu pergunto o mesmo - Redarguiu o Ogro, amarrando o rabo de rato trançado verde e amarelo na cintura, olhando para o Mestre, que coçava a cabeça, fazendo contas nos dedos.

— Tenham calma! Eu acho que me enganei com o calendário e mandei chamar as duas turmas - Assumiu o Mestre, dando a entender que talvez fosse uma grande oportunidade para acabar com aquela rivalidade sem pé nem cabeça - Já que estamos todos aqui, faremos um treino pacífico. Vou dividir a área em duas e cada grupo ficará no seu canto, sem confusão - Completou, na esperança de que tudo corresse bem.

— Mestre, com todo respeito, mas já que juntou todo mundo, que tal jogarmos em duplas rivais?

— Com todo respeito Montila, mas você acha mesmo que isso pode acabar bem? - Retrucou o Mestre Capoeirista, recriminando o reizinho do pedaço colocando dois dedos na boca pelo fato do rapaz chegar fumando ao local.

— É uma chance única, por exemplo, de colocar frente a frente dois alunos de oitavo estágio - Sugeriu, apontando para ele e Justino.

— Quem perder vai pra casa em paz? - Olhou para os dois rapazes, que anuíram.

— Vai ser no maculelê? - Provocou o reizinho, se referindo à luta com facões e bastões.

— Vai sonhando Montila, se vocês obedecerem o código já tá bom demais! - Pontuou o Mestre, chamando os dois pra roda e mandando as palmas marcarem o berimbau.

 

Véia Guida que pitava seu fumo num semi cochilo no alpendre do casebre, logo puxou a cadeira de balança pro terreiro para acompanhar o desfecho do embate. Ela sabia que o encontro daqueles dois naquela noite não fora obra do acaso.

 

— Não vá pensando que vai fazer a minha lápide não, neguinho! Provocava Montila enquanto começava a gingar sincronizado no ritmo do berimbau.

— Só quero mijar no seu túmulo, e mais nada - Respondeu.

— Dentro das regras, parem de dançar break e joguem! - Gritou o Mestre.

 

Depois de muito se estudarem e ensaiarem alguns golpes de menor efeito, se sentiram pressionados a atacar quando o ritmo do berimbau aumentou e as palmas ficaram mais fortes.

 

***

A redação tinha o seu próprio laboratório, portanto a dinâmica do seu trabalho se tornava mais fluida. Segurou o envelope com as duas mãos olhando para o rosto do seu auxiliar, que fez uma mesura levantando o supercílio algumas vezes.

— Feche a porta seu desmiolado! - Brincou, abrindo o envelope e retirando os retratos coloridos que fizera com a sua Olympus Trip 35 e as espalhando sobre a sua mesa bagunçada - Deus escreve certo por linhas tortas! - Pensou, enquanto pegava um pedaço de negativo e o colocava contra a luz, procurando um fotograma específico.

 

As coisas só chegaram àquele ponto devido a uma simbiose parental que ela rejeitava a todo custo. A criatura teve a pachorra de ligar para ela no seu trabalho. Se dera ao trabalho de investigar em qual jornal ela trabalhava e descobrir o telefone. Ela talvez pensasse em o aceitar caso tudo o que ele prometeu desse certo, e a partir daí iniciar uma nova fase nas suas vidas. Mas até lá, ele estava proibido de voltar a ligar para a redação. Ela se propôs a encontrá-lo periodicamente à medida que o plano fosse avançando. Nada daquilo teria eficácia se não fosse o trabalho incessante de Jonas atrás de um presunto fresco e que tivesse caído de paraquedas nos braços da morte, sem eira nem beira, sem lenço e sem documento, sem um cachorro que o seguisse até as gavetas do morgue. Mesmo que ela tivesse pago isso à sua maneira.

 

Disse ao chefe que se tratava de uma investigação pessoal e muito a contragosto ele a deixou livre, com a condição de lhe dizer do que se tratava assim que evidências maiores fossem coletadas. Enquanto isso ela poderia transitar livremente sem dar satisfação aos abutres que queriam a sua carcaça. Mas tudo aquilo tinha um prazo, e ela precisava bater pernas por aí fingindo buscar algo consistente para começar a escrever a matéria. Por enquanto, o que ela tinha nas suas mãos era a imagem de um Príncipe Africano, na perfeição das formas e gestos. Decidiu voltar pessoalmente para lhe entregar uma cópia daquele retrato. E precisava demonstrar mais emoção no próximo encontro, já que para todos os efeitos tinha acabado de sepultar o próprio marido. Que Deus guardasse os contatos de todos os repórteres, principalmente os que trabalhavam nos necrotérios e cemitérios.

 

E quando tudo está dando certo, surgem os brindes da vida. Aquela estátua de chocolate poderia ser o bônus do butim! Riu do pensamento tolo fazendo a cadeira do redator chefe, seu amante, girar em torno de si, sabendo que as coisas podiam dar erradas como no passado.

***

Despertou em tempo de ouvir pegadas apressadas correndo para longe. Sua cabeça pesava e sentia como se os seus miolos estivessem esmagados por dentro. Sentiu o gosto metálico característico na boca. Teve ânsias de vômito, mas se conteve para a cabeça não explodir de dor. Mexeu os braços e os levou à altura dos olhos. Estavam bastante machucados. Havia fragmentos de pele debaixo das suas unhas. Tocou o seu corpo e percebeu que estava nua. Com um esforço hercúleo, mexeu a cabeça para os dois lados. Fora jogada num beco, em meio a latas de lixo. Pelo ardor que sentia nos seus genitais, fora estuprada. Eles eram no mínimo dois. Na penumbra do crepúsculo ficou de bruços e rastejou como pode até um dos lados do beco onde havia mais iluminação. Com o esforço demasiado, desmaiou, mas não sem antes ouvir vozes e passos se aproximando.

 

Acordou dois dias depois no leito de uma enfermaria. O primeiro rosto que viu foi o de Peixoto, o chefe de redação do jornal onde ela havia sido recém contratada. O dono do bar onde ela se embriagou naquela noite, contou à polícia que depois de secar uma garrafa de vodca com suco de laranja, ela ainda teve fígado para cinco gin tônicas antes de começar a se jogar pra cima de um homem, que estava acompanhado de mais dois amigos. Pareciam incomodados com o assédio da moça, pagaram a conta e saíram, sendo logo seguidos por ela. Conta essa que, aliás, ela não pagou e o dono informou que também não foi atrás para cobrar devido ao estado de embriaguez da mulher. Uma testemunha afirma que o dono do bar mandou dois funcionários seguir a mulher para saber onde ela morava, e cobrar depois. Meses depois, nenhuma pista dos suspeitos.

***

A condição para que ela permanecesse na sua função dentro do jornal, era que buscasse tratamento, e assim ela o fez. Ficou internada numa clínica para alcoólatras durante um ano recebendo seus proventos, por intervenção de Peixoto,  e recebia visitas da mãe apenas uma vez por mês, já que morava longe, em outra cidade. O que não ficaram sabendo na redação, e por isso ela impedia as visitas dos colegas e do chefe, era que tinha engravidado. Nunca cogitou abortar. Podia ter um caráter duvidoso quando se tratava de ambição, fama e dinheiro, mas não conseguiria conviver com a culpa de ter assassinado uma criança inocente. Ela tinha acabado de conseguir o diploma de Jornalismo, tinha um bom emprego, um chefe maravilhoso, e uma família humilde longe dela, mas que a amava. Um futuro brilhante a aguardava ali adiante. Ela só tinha vinte e dois anos.

 

Aquilo ocorreu há oito anos, e desde então não tinha mais chegado perto de álcool. Os retratos que a mãe mandava da menina pelos correios, ela rasgava depois de vê-los, inclusive os que chegavam com mensagens escritas no verso pela filha recém alfabetizada. A menina era ainda mais linda do que ela naquela idade. Por exigência do chefe, ela ainda frequentava o Alcoólicos Anônimos uma vez por semana. Não poria tudo a perder por uma taça de Mimosa, logo agora que o plano estava em andamento e o seu instinto lhe dizia que lograria êxito muito em breve. Se daria ao luxo de uma viagem a Cidade Luz, onde poderia se embebedar de champanhe Francês legítimo, e não as sidras baratas que o seu pai comprava para estourar na virada de ano. A pobreza lhe revolvia os intestinos.


Guardou os retratos e negativos de volta no envelope, exceto um, beijou uma folha de papel em branco deixando a marca do seu batom e escreveu: “SAUDADES“ em letras garrafais, e colocou ao lado do porta retratos onde ele exibia uma foto sua na mesa de trabalho. Era quase um cinquentão, bem mais velho que ela, mas por enquanto era o que estava servindo aos seus propósitos. No momento certo saberia fazer um drama qualquer e se livrar dele. Pensou como seria ir para a cama com aquele negro lustroso que parecia um galã atípico de foto novelas e logo sentiu a calcinha umedecer. Olhou o relógio e se apressou, pois queria estar no Jardim Bagdá antes do anoitecer.


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