JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 1
Capítulo 1




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“Eu disse que não morreria de cirrose“ - Era o que a viúva lhe pedira para esculpir na lápide que serviria de epitáfio, por desejo do defunto. Enquanto dava o acabamento na pedra, sorriu ao lembrar que aquela esquisitice não fazia nem sombra perto da sua causa mortis. A criatura se matou injetando chocolate nas veias. Se queria uma eternidade doce, o tiro saiu pela culatra. Não devia ser tarefa fácil servir de fondue para o cão no inferno.

 

Ao pensar no inferno, sua cabeça se virou para o casarão, do outro lado da rua, onde Samira abria as pernas para senhores de meia idade a troco de umas notas de baixo valor. A meretriz, pela qual ele arrastava as duas asas, aquela altura devia estar com as partes pudendas assadas e cheias de unguentos. Passaria a manhã inteira dormindo, mas ao meio dia aparecia na sua porta pra ver se tinha o que comer, filar cigarro e café, deixar ele mamar seus peitos por dois minutos, para em seguida, escorregar porta afora, lisa como um quiabo. Um dia ele trancaria aquela porta com ela dentro, ou então a próxima lápide a ser feita seria a dela.

 

Limpou e lavou o mármore, embalou, colocou sobre o carrinho de mão e se pôs em marcha para o cemitério, que ficava a uma curta distância, pela rua principal do bairro periférico, de terra batida. Justino era um homem negro, trintão, forte, atarracado e com uma careca reluzente. Seus músculos foram esculpidos anos a fio carregando toras de madeira para uma serraria, praticando capoeira, e também no pouco tempo que serviu o Exército como ajudante de ordens de um Coronel, que lhe confidenciou com lágrimas nos olhos que não iria muito longe nas Forças Armadas pela sua baixa estatura, apesar da fortaleza de músculos. Era um ogro de ébano, de poucos sorrisos, apesar do rosto de querubim. 

 

Chegara ali há quase uma década, quando o seu irmão gêmeo morreu e foi dispensado do exército. Depois do enterro de Jacinto, Justino se mudou para perto do cemitério, num ato de desespero, numa tentativa de aplacar o sofrimento que a falta do seu irmão lhe fazia. Seu pai morrera ainda jovem de impaludismo no garimpo, e a sua mãe durante o parto dos gêmeos. Desde os oito anos, logo depois de enterrarem o pai, viveram nas ruas às custas da caridade alheia. Se orgulha de nunca ter roubado nada de ninguém, e de nunca ter passado fome. Frio sim, mas fome, nunca.

 

A frente do cemitério estava movimentada demais para um dia normal naqueles confins de mundo. O Jardim Bagdá não era conhecido como um lugar agradável. Era a paragem dos mortos, dos mortos vivos, e dos vivos que flertavam com a morte. Era povoado por espécies que gostavam de andar na calada da noite, de fazer negócios escusos, desobedecer o código penal de cabo a rabo. Gente normal como ele era raro. O mesmo que topar com alguém passeando com um ornitorrinco na coleira. No início tentaram intimidá-lo, cooptá-lo para o crime, mas aos poucos foram desistindo dele quando perceberam uma índole de ferro. Era um cabeça dura orgulhoso, e nunca se sentiram ameaçados por ele, até então. A convivência foi pacífica por um tempo até que lhe chegou aos ouvidos a notícia de que Montila, o mandachuva do bairro, queria o jazigo em que o irmão dele estava, para enterrar a sua mãe. Justino fez do local uma capela de granito amarronzado quase do tamanho da casinha que morava, fechada com vidros blindex fumê, e uma imagem grande de São Cosme e Damião. Havia um enorme vaso branco de porcelana barata sobre um altar, onde ele depositava flores novas toda semana. Foram anos de trabalho árduo para construir um local de descanso digno para o seu irmão. Antes de decidir o que fazer, acarinhou a chave do cadeado da porta da capela. Sentia saudades da sua outra metade, mas era cedo para fazê-lo companhia. No dia seguinte, o sol abrasava as telhas das casas, assim como a sua cabeça. Viu o Maverick preto passar pela sua porta, indo para o portão principal. Estavam preparando o corpo da velha para o velório, e os paus mandados, estavam indo tomar posse do que não era deles. Colocou o controle remoto no bolso e saiu. Quinze minutos depois, o mesmo Maverick fez o caminho de volta em alta velocidade. 

 

Aos domingos tinha o costume de levar o seu “três em um“ novinho para o cemitério, e o colocava sobre o altar da capelinha, onde colocava umas fitas cassete para tocar músicas que ambos gostavam de ouvir quando estavam juntos, enquanto capinava o entorno do túmulo. Jacinto gostava de sambar e tinha o sonho de ser cantor. O problema é que ele era gago, e só ficava à vontade cantando na companhia do irmão. A ideia para espantar os abutres era simples, mas achava que podia dar certo. 

 

De pronto avistou os homens de Montila circundando o jazigo do seu irmão, como quem analisa uma joalheria antes de assaltá-la. Trocaram algumas palavras, e um deles apontava para o carro, onde buscariam ferramentas para a profanação. Justino buscou guarida atrás de uma lápide, onde julgou seguro para si e para o seu intento. Tirou o controle remoto do bolso e apertou o botão, rezando para que a distância do aparelho não fosse grande demais, quando ouviu a sua voz ecoando entre as paredes de granito, imitando Jacinto - “Ni-ni-ninguém me-me-me ti-tira da-da-daqui!“ - O som abafado dentro do túmulo colaborou para a cara de espanto dos homens, que arregalaram os olhos e procuravam a origem daquilo olhando ao redor, mas logo estavam certos de que ela vinha do túmulo que pretendiam violar. Foram muitos tropeços e quedas no trajeto até o portão de saída, derrubando cruzes, pisando em flores mortas, saltando desajeitados sobre as sepulturas pelo caminho.

 

Pouco tempo depois, corria à boca miúda, que os gêmeos tinham pacto com o diabo, e ao invés do respeito que ele tanto almejava, o que alguns sentiam dele era medo. O que ele soube é que Montila dera ordem a sua gangue para manter uma distância segura de Justino, e do cemitério amaldiçoado. A velha foi enterrada bem longe dali.

 

A roda do carrinho de mão rangia e o suor já lhe escorria pelo rosto quando cruzou o portão da morada dos desencarnados. Normalmente a presença do parente do morto não se fazia necessária para testemunhar a colocação da lápide. Mas Dona Patrícia fez questão de acompanhar o processo pessoalmente. A viúva era uma jovem balzaquiana, estatura mediana, esguia, pele de tez alva, e madeixas douradas que cascateavam até o meio das costas. Pelo tom avermelhado das bochechas ele supôs que ela já estava por ali há algum tempo, mesmo trajando um enorme chapéu de tom palha, óculos escuros que de tão grandes quase lhe cobria o rosto delicado, e um vestido marrom de tecido leve de mangas, que associou sem querer a substância que matara o marido. Como ela estava de costas, ele pigarreou um pouco para que ela abrisse passagem até a base onde assentaria a pedra. Ela ainda se demorou um tempo, fez o sinal da cruz e se virou, baixando os óculos. Não eram olhos, mais pareciam esmeraldas incrustadas nas cavidades oculares. Desta vez, foi ele que se demorou tempo demais para lhe cumprimentar, hipnotizado com a beleza da mulher pela segunda vez.

 

— Bom Dia, Dona Patrícia - Disse, lembrando de arriar o carrinho de mão no chão, e tirando o pano que envolvia a pedra.

— Bom Dia, Sr Justino. É essa aí? - Perguntou, fazendo uma mesura com a cabeça.

— Sim, senhora. Espero que tenha ficado do seu agrado. Caprichei na letra.

— Ele queria isso escrito aí quando morresse. Não sei para quem ele queria provar.

— Ele devia beber muito - Comentou enquanto carregava o mármore para o lugar, mas já se arrependendo. Era o ogro que vivia nele e de vez em quando acordava pra mijar algo pela boca.

— Ele nunca tocou numa gota de álcool - Protestou, pontuando a frase com uma firmeza vacilante.

 

Ele estava acocorado fazendo um pouco de cimento e olhou-a fixamente sem entender coisa alguma. A mesma cena se repetiu dias atrás quando a recebeu na oficina para a encomenda da lápide. O que uma grã fina fazia no Jardim Bagdá? Se fosse somente pela sua fama de ótimo artesão, o seu ego apagaria o susto. Mas ela enterraria o marido ali, junto com a escória da cidade, no meio de indigentes. Na cidade havia cemitérios para a elite, em que uma vala de sete palmos custava o preço de um sítio ali perto.

 

— Ele nasceu com o fígado ruim. E os remédios só pioraram a situação. Ele se internava com frequência, mas manteve o bom humor até o fim - Explicou, esperando que ele não percebesse que ela estava mentindo.

 

O ogro estava com a prova do bom humor do defunto nas suas mãos. Depois de assentada a pedra, ela tirou uma pequena máquina fotográfica da bolsa e disparou algumas vezes, tornando-a a guardar, mas logo desistindo depois de fazer um pedido esquisito.

 

— Posso tirar uma sua? - Perguntou para o homem com cara de quem ouviu algo numa língua estranha.

 

Ele só lembrava de ter tirado um retrato pequeno para fazer a carteira de identidade aos dezoito anos. Não perguntou o motivo daquele pedido, e ela também não explicou, mas queria ver aqueles olhos outra vez.

 

— A senhora pode fazer uma pra mim?

Ela pareceu pensar por um momento e sorriu anuindo - Eu acho justo. Mando lhe entregar.

A resposta o decepcionou, mas lembrou do dia dos mortos, que estava próximo.

 

— Se a senhora quiser eu posso deixar aqui tudo limpinho pro Dia de Finados.

— Seria ótimo! - Respondeu, olhando-o nos olhos como a analisá-lo. Aquilo o fez esboçar um sorriso. Era o máximo que conseguia, somente um arremedo.

 

 

Antes de dormir ela esquentou água, colocou umas folhas dentro da panela e despejou tudo numa bacia grande que ficava debaixo do chuveiro. Esperou a temperatura ficar do seu agrado, se despiu e ficou de cócoras sobre a bacia até a virilha tocar o líquido morno. Fechou os olhos enquanto deixava o preparado agir nas suas entranhas - Ossos do ofício - Pensou em voz alta, enquanto bocejava de cansaço. Aquela noite teve a sorte de receber os aposentados, que vinham sempre na data que caía o valor da pensão na conta. Eram assanhados, mas não aguentavam o ritmo dela por muito tempo. Fazia de propósito para esgotar as forças dos septuagenários, que se diziam felizes por ainda conseguir uma mísera ereção de vez em quando. Às vezes se segurava um pouco quando lembrava que podiam infartar na sua cama, afinal nem todos eram viúvos.

 

Samira faria 27 anos no dia seguinte, e apesar da pouca idade, a sua aparência maltratada não condizia com a quantidade de primaveras. O excesso de maquiagem barata que usava desde a adolescência, quando começou a fazer vida, tinha cobrado o preço na sua pele manchada, seus olhos eram meio caídos e tristes, tristeza essa realçada pelo excesso de rímel, assim como os seus peitos miúdos, que nunca deram de mamar a uma criança, mas alimentava a tara de muitos pândegos. As nádegas ainda tesas não era um portento, mas fazia a festa dos transeuntes quando andava na rua de minissaia e salto alto a caminho do mercado. Seu cabelo era comprido, mas oleoso demais e cheio de pontas. Quando Justino lhe perguntou o que ela queria ganhar de presente de aniversário, ela lhe respondeu - Peeentees, por favor! Os meus estão todos quebrados!

 

Apesar da beleza estar no limiar de deixá-la, ela sabia o quanto ainda era desejada. Tinha lábios carnudos, um nariz pequeno, braços e pernas longas e bem torneadas. E quando sorria, todos os seus defeitos eram deixados de lado. Cuidava dos dentes perfeitos com o mesmo zelo que tinha pela mãe. Metade do que ganhava ia para as despesas do asilo. Sua mãe, ela própria, uma ex-cafetina famosa no bairro, padecia de demência.

 

Nunca foi benquista pela vizinhança, que a conhecia desde pequena e nunca esqueceram as ocorrências da noite do leilão.

 

A NOITE DO LEILÃO 1

 

Ela contava as escovadas como quem conta carneirinhos a noite pra pegar no sono. Eram trinta de cada lado, de frente pro espelho da penteadeira, que ela ganhara da mãe. Um móvel imponente de madeira de lei, cheio de curvas e gavetas, de desenho rococó, com um grande espelho retangular. Sobre ela repousavam vários frascos de perfumes e colônias, alguns deles vazios que estavam ali apenas para dar a impressão de quantidade. Riqueza era algo que nunca tiveram, mas era uma casa festiva e frequentada por cavalheiros de fina estirpe. Aquilo para uma menina de quinze anos era sinônimo de abundância. Sua mãe vivia metida em vestidos cheios de plumas e paetês, e uma piteira de prata pendendo no canto da boca. O casarão de cômodos enormes, herdado do seu avô, era conhecido como A Maison da Madame Dinorá, um local para a prática de leviandades remuneradas. Além da Madame, mais cinco cocotas recepcionavam os poucos cavalheiros admitidos por noite. Em meio aos eflúvios alcoólicos da pequena turba, do seu quarto ela escutava risos tímidos que aumentavam de volume a medida em que a noite avançava, barulhos de taças, o toc toc do salto dos sapatos das meninas no piso de madeira, mas permanecia acordada para testemunhar os gemidos abafados que atravessavam as paredes dos quartos, e iam num crescente até o silêncio total. A menina queria saber que espécie de brincadeira era aquela, que só os adultos podiam participar.

 

Aquela noite seria diferente de todas as noites anteriores, inclusive Dinorá fez questão de dar banho na filha e aparar um pouco os vastos pelos púbicos da menina de corpo virginal. Explicou-lhe que finalmente poderia sentar-se ao salão junto com as cocotas e receber os senhores distintos. A cafetina lhe explicou sobre como os cavalheiros que viriam naquela noite foram escolhidos por ela e eram um pouco mais joviais que de costume, e tinham mais dinheiro que os de costume, portanto quaisquer deles que arrematassem a sua pureza, estaria de bom grado. A pequena Samira tinha muitas perguntas a serem feitas, mas Dinorá disse que precisava escolher o que ela vestiria para debutar no salão. Ficou sozinha no quarto, ainda nua, vendo a mãe sair chamando pelas assistentes. O que fariam com ela para que tivesse que gemer daquele jeito? A cama rangia como se estivessem pulando sobre o colchão. Fosse o que fosse deveria ser muito divertido. E ainda teria dinheiro para comprar tecido e costurar roupas para as suas bonecas.


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