JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 18
Capítulo 18




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Sofreu com a ansiedade ao raiar do dia, tomou o desjejum e saiu para abrir o seu estabelecimento. Diferente dos últimos anos, em que inventava desculpas para ficar mais tempo na cama, amanheceu bem disposto. Se faltavam motivos para lhe devolver a vontade de ir trabalhar, ali estava um, atendendo dois clientes ao mesmo tempo, como se já conhecesse o ofício. A moça era um dínamo, aprendia rápido e fazia ótimas sugestões para otimizar a dinâmica da farmácia. Certamente valia por duas. Em outros tempos, Abdias a chamaria de filha, mas sentia algo aflorar por dentro, que lhe dava a certeza de que não faria aquilo. 

 

Era sempre cordial mesmo tratando de assuntos de trabalho, e bom ouvinte. Quando ela contava alguma passagem triste da sua vida, ele era todos ouvidos. Havia uma sinergia agradável entre eles, e o seu primeiro dia de trabalho transcorreu leve como se já estivesse de fato habituada ao lugar. No fim da tarde, Cláudia buscou as crianças e as trouxe para a farmácia, com a permissão de Abdias.  A interação delas com o seu patrão se deu de maneira tão natural que até ela estranhou. Os filhos eram meio bichos do mato, acostumados a vê-la apanhando, ao invés de ser tratada com respeito. O cuidado que ele tinha com as crianças, sempre com uns doces guardados em um baleiro dentro da sala de medicação, era algo extraordinário e com o qual Cláudia não contava.

 

— Sr. Abdias, eu estou procurando uma casinha pequena pra alugar, que caiba eu e os meus meninos. O senhor deve conhecer muita gente por aqui. E se for perto do trabalho melhor ainda - Comentou, enquanto embrulhava um vidro de óleo de rícino e um frasco de magnésia para uma senhora de rosto abatido.

 

Ele viu aquela oportunidade surgir diante dos seus olhos e decidiu não largar.

— Tenho uma casinha no meu quintal, com entrada independente que construí para o meu filho caçula, numa época em que ele fazia faculdade. Ele era muito namorador e a mãe não gostava daquele entra e sai todo dia com uma paquera diferente. Depois que se formou, casou e foi embora lá pro sul. Se você quiser dar uma olhada hoje, vamos todos juntos. Depois levo vocês até a casa de Justino.

— Mas será que eu vou poder pagar? - Perguntou com uma ponta de preocupação, mas excitada com a possibilidade.

— Não vou cobrar o primeiro mês. E no segundo, se você se sair bem aqui na farmácia, te dou o valor do aluguel como aumento de salário e você não vai precisar mexer no seu dinheiro. Que tal?

— O senhor faria isso por mim? - Perguntou, com os olhos arregalados e dando saltinhos de alegria, louca para dar um abraço naquele homem bondoso. Parecia que a vida finalmente começava a sorrir para ela. E aquilo era quase uma gargalhada.

— Vai depender de você. E ainda pode fazer comida na minha cozinha que já tem os utensílios e a despensa cheia. Não precisa comprar nada. Assim até eu posso me livrar um pouco das panelas. Não tenho nenhum talento culinário.

— Eu amo cozinhar! - Disse, sem se conter, correndo para dar um abraço em Abdias e demonstrar toda a sua gratidão. Estava atrás de um emprego, e Deus parecia estar lhe dando tudo o que ela foi merecedora de ter até então, e foi cerceada.

 

Ela o ajudou a baixar as portas e fechar o comércio, entraram em um Ford Landau, com ele tendo o cuidado de acomodar as crianças no enorme banco traseiro, e seguiram para viver o início do que poderia ser a melhor experiência das suas vidas.

 

 

O reitor o havia orientado que não falasse com ninguém sobre o assunto, apenas pedisse para ser anunciado quando chegasse. Teve duas dificuldades naquela manhã, depois da ligação de última hora da secretária dele informando o horário da reunião. A primeira foi inventar uma desculpa para Conceição por não poder acompanhá-la até o hospital, e a segunda, arranjar uma roupa adequada para entrar na Universidade. Poderia dizer à ex-mulher que iria trabalhar, mas um coveiro em trajes sociais ficava mais parecido com o próprio defunto do que com quem iria enterrá-lo. Findou que disse uma meia verdade. Um professor que ficou conhecendo quando enterrou o pai, queria que ele fosse explicar aos seus alunos de Medicina como se procedia uma exumação de cadáver. E daquilo ele entendia. O assunto a fez despertar do seu torpor e lembrar que havia trazido o resto das roupas dele que ele esquecera quando fugiu de casa. Ali estava o paletó que usou no dia do batizado de Patrícia. Depois de sacudir as vestes para tirar o pó, resolveu que estava bom.

 

 No ônibus vazio, quase às vésperas de um feriado, tentou pela primeira vez se enxergar com os olhos de outra pessoa. Um amontoado de casebres de alvenaria fincados quase uns sobre os outros passava pela janela, enquanto tentava separar os sentimentos que se misturavam dentro da cabeça. O que faria depois de pegar aquela grana? O ‘’eu’’ fora da alma dizia que ele não sabia a resposta, mas o velho Balduíno que ele carregava naquele suposto deserto de ideias, sabia o que queria. Era quase como brincar de guardar segredos dele mesmo, tal o receio de alguma coisa não dar certo. Agarrou aquele ‘’eu’ pelo colarinho, que ria da sua cara, e o enfiou goela abaixo.

 

A instituição era de um gigantismo tal, que apenas caminhando nas suas dependências para chegar no prédio da reitoria, levou quinze minutos. Caminhava desconfortável, pela falta de costume em trajar uma roupa social. Durante o trajeto, apalpou o bolso do paletó sentindo algo incomodá-lo assim que fechou os botões. Tirou uma bolinha de naftalina e a arremessou para longe, olhando ao redor antes para ver se alguém poderia testemunhar o ato. Esperava não estar cheirando mal, a despeito de Conceição ter lhe dado um banho de alfazema.

 

Da primeira vez, tinham enviado um cheque pelos correios, mas parece que alguém queria conhecê-lo pessoalmente. Pelos valores envolvidos, ele atravessaria o país no lombo dum jumento. Sentou na suntuosa sala de espera, com cheiro de jornal do dia e café recém passado, depois de ter trocado duas palavras com a secretária. Não sabia se cruzar as pernas era elegante, pois fazia tempo que não entrava num ambiente requintado. O último tinha sido a sacristia da igreja de Sabugueiro, quando foi agradecer o padre por celebrar o seu casamento. Mas aquilo ali se encaixava em um nível diferente. Era uma universidade, lugar de pessoas estudadas, cultas e sabedoras dos bons modos. Acreditou naquilo só até a secretária chamá-lo em voz alta pelo nome, e as outras pessoas que estavam aguardando para falar com o reitor, rissem. Antes de se levantar ele tinha captado cada expressão facial dos presentes após o anúncio daquela palavra quase de baixo calão. Nenhuma delas lhe agradou.

 

— Senhor Balduíno - Chamou a jovem num volume que ele gostaria que fosse dois tons mais baixo - O senhor pode entrar - Autorizou a moça, esfregando dois dedos no nariz. A tal da naftalina era danada mesmo.

 

 

O seu contato na polícia havia garantido que um dos colegas tinha prestado socorro a alguém que tinha se matado daquela maneira estranha, e todas as características físicas batiam com a descrição. Depois de uma semana de investigação levada a cabo por conta própria, ela soube de quase todos os últimos passos do filho adotivo, que tinha se tornado morador de rua. A tragédia só tinha ocorrido daquela maneira após ela revelar que não era a sua mãe biológica e onde o tinha encontrado, num rompante tido durante uma briga entre eles por causa da quantidade de cigarros de maconha que ela tinha encontrado dentro do seu travesseiro. Na mesma noite em que ela jogou a droga no vaso sanitário e deu descarga, ele arrumou as coisas e foi embora para nunca mais ser visto. Para o seu marido aquilo foi um alívio e a constatação do erro crasso de ter levado para casa aquela sacola de supermercado com um bebê dentro.

 

— Jonas? - Perguntou com firmeza para o jovem, que estava sentado conferindo alguns papéis, e levantou a cabeça para ver quem o incomodava justamente quando sairia para almoçar.

— Sim. E a senhora quem é? - Perguntou, ao mesmo tempo em que recebia retratos de um jovem em várias etapas da vida. Uma delas com o nome dele escrito em letras de isopor pregadas na parede no que parecia ser o seu aniversário de treze anos. Ele engoliu seco ao reconhecê-lo com facilidade.

— Esse é o Antônio, o meu filho adotivo, e aqui está a certidão de nascimento dele, que comprova o que digo. Soube que ele faleceu no Hospital Geral e o seu corpo foi trazido para cá há algumas semanas. Gostaria de vê-lo.

 

Jonas sentiu um forte cheiro de encrenca. Se negasse a passagem dele por ali, o outro plantonista confirmaria, já que causou comoção nos funcionários do IML pela sua beleza e como tinha se matado. Se assumisse que aquele rapaz tinha sido liberado no seu turno para uma desconhecida, estava lascado.

 

— São muitos corpos que passam por aqui todos os dias, a senhora deve imaginar, e depois de um mês sem que nenhum parente o reclame, ele é enterrado como indigente. Se me der até amanhã, posso pesquisar o destino do seu filho. Deixe um telefone para eu entrar em contato - Mentiu, cruzando os dedos de uma mão debaixo da mesa, esperando que a mulher na faixa dos cinquenta anos e semblante sofrido, não fizesse um escândalo ali e chamasse uma atenção que ele não queria.

 

A senhora mulata que tinha um xale negro de crochê por cima dos ombros, concordou resignada com o prazo e foi embora, mas não sem antes lançar-lhe um olhar de quem estava disposta a ir até as últimas consequências para saber o paradeiro daquele corpo. Depois de suspirar e limpar o suor que teimava em brotar na testa, Jonas discou o número da funerária, mas antes se certificou que não havia ninguém no subsolo, e cobrou do seu contato, com uma ponta de desespero na voz, aquele chope no fim do expediente que ele tinha prometido e desmarcado de última hora.

 

— 

 

Tinha planejado tudo com muito cuidado. A esposa e a filha já estavam em segurança na casa da sua sogra, bem longe dali. Houve muitos protestos e discussões dele com Cândida. A menina não entendia o risco que estavam correndo se continuassem por ali, mas o tempo trataria de sarar as suas feridas. Como já havia colocado a placa de vende-se na porta do seu comércio há algum tempo, ninguém desconfiaria das portas estarem baixadas. Teve o cuidado de mandar fazer uma placa com os dizeres ‘’SOB NOVA DIREÇÃO’’ e espalhar que tinha feito um ótimo negócio. Agora precisava encontrar as duas e recomeçar a vida em um lugar mais seguro que o Jardim Bagdá, aquele antro de merda.

 

Passou a manhã na garagem de casa colocando o para choques no lugar, e teve sorte que a placa, pendurada somente por um parafuso, não caiu no meio do caminho. Aquilo causaria danos colaterais. Tinha certeza que o marginal o tinha reconhecido, mas não era a mesma coisa que alguém chegar em uma delegacia com a identidade do seu algoz na mão. Esperava que a queda os tivesse matado. Tinha perdido muito tempo de tocaia, até que se afastassem da zona urbana para promover o ataque. O ódio que nutria por Montila era antigo, quando ainda eram vizinhos e ele um pequeno comerciante em ascensão. Quando viu o seu Chevette de estimação herdado do pai arder em chamas na porta de casa, e o vagabundo rindo da sua cara, teve que respirar fundo muitas vezes para não dar uma surra no pirralho. Não seria ele a tocar um dedo na sua única filha. Lamentou o fato de não ter havido uma explosão quando o Maverick despencou.

 

Antes de sair, já com a noite alta, colocou a placa de vende-se no vidro da janela da sala, trancou a casa e entrou no Alfa Romeo, debruçando-se sobre o volante por uns instantes, até recobrar o foco das coisas. Era quase certo que iria se tornar conhecido como o assassino cruel de três garotos rebeldes, procurado pela polícia, e talvez fosse enjaulado. O único porém é se iriam pegá-lo vivo.

 

Colocou uma fita cassete para tocar e acendeu um cigarro enquanto dirigia. Os faróis iluminavam a estrada vicinal que estava deserta àquela hora, o que o fazia sentir-se mais seguro. Seriam quatro horas de viagem e esperava chegar na casa da sua sogra antes do amanhecer. Tinha conversado com a esposa, e tudo parecia se encaminhar para um desfecho tranquilo, apesar de Mirtes o ameaçar com o divórcio por causa da sua obsessão. Ela jamais entenderia.

 

O semblante endureceu quando aquela música tocou. Era a mesma que ouvia sair dos alto falantes do Chevette do seu pai quando ainda era uma criança, enquanto ele lavava o carro. Estava sentado no banco do motorista brincando com o volante e a buzina, quando o seu pai foi baleado por um desafeto e caiu morto com a cabeça no seu colo. Antes de Cândida nascer, aquele carro que foi incendiado era o seu único filho.


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