JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 17
Capítulo 17




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Mestre Tuta passava uma vassoura de palha no terreiro para juntar as folhas que caiam das árvores, esperando que os seus jogadores principais comparecessem daquela vez, já que Montila e Justino andavam sumidos das rodas de capoeira. Andava meio cabisbaixo com as negativas de Vilma, que retribuía seus cortejos lhe dando coices. Afinal o que ela queria para que fosse visto com bons olhos? Quais as qualidades que ele precisava ter e não tinha? Entendia as diferenças religiosas, e de fato aquilo era um obstáculo a ser superado. Mas Xangô não podia andar de braços dados com Cristo? Pensou melhor, e caso dissesse aquilo em voz alta para Vilma, corria o risco de levar uma bofetada no meio das ventas.

 

— Tuta! Venha comer uns bolinhos de chuva! Acabei de fritar os danados - Anunciava a feiticeira, pousando o prato numa mesa de madeira carcomida pelos cupins, que ficava ao relento por vida, borrifando canela por cima.

 

Ambos andavam tristonhos por motivos diferentes. Um, com o coração partido por um amor não correspondido, e a outra, inconformada por não ter encontrado as covas da família.

 

— Mas Guida, você não sabia que logo eles precisam do buraco pra enterrar mais gente? - Questionou, enquanto mastigava o quitute, espalhando farelos de açúcar na toalha da mesa.

— Eu nunca enterrei ninguém Tuta, a não ser Mainha Dolores, e mesmo assim, naquela aflição eu não ia lembrar de nada. Mainha ainda tá lá porque eu comprei o jazigo. É coisa eterna. Não sabia que a minha família com o dinheiro que tinha não tinha comprado o seu.

— Olhe, eu não vou mentir. Você sabe que eu sou mais velho que você uma coisinha assim, né? - Disse, quase juntando dois dedos.

— Duas coisinhas, Tuta, seria mais honesto - Retrucou, apenas para implicar com o velho mestre.

— Tá certo, duas coisinhas. Não é querendo fazer futrico, mas você sabe que eu era zelador da universidade que o seu pai era professor, e as paredes dos corredores tinham ouvidos. E tinham língua também.

— Desembucha logo, homem.

— Seu pai era metido com negócio de maçonaria. Parece que botava as mãos onde não podia alcançar e ajudava muito os ‘’irmãos’’ em situação precária. Na vez dele, acho que saltaram fora do barco quando descobriram as coisas que ele fazia com a sua…irmã - Disse, constrangido, e puxando um cigarro de palha que ele mesmo enrolou.

— Quer dizer que as pessoas que ele ajudou, o abandonou?

— Isso mesmo.

— Deus me perdoe, mas achei pouco castigo. Não digo pela minha mãe, que era escrava dele, ou pela minha irmã, que era inocente. Mas aquele filho do cão, mereceu ter os seus ossos queimados e misturados com gente que ele fazia questão de não se misturar. Aqui se faz, aqui se paga, mesmo já sendo defunto - Concluiu com uma ponta de amargura na voz, acreditando falar dela mesma, e fazendo o sinal da cruz.

 

Alguns alunos começaram a chegar e Agda entrou para fazer pipoca, enquanto Mestre Tuta trocava uma lâmpada queimada do terreiro, pensando em tomar coragem para investir um bom dinheiro num buquê de rosas vermelhas para agradar Vilma. Ele via aquele investimento com pouca possibilidade de retorno. Reuniu a garotada e realizou o treino sem a presença das estrelas locais. Ele precisava puxar a orelha daqueles dois teimosos. Contava com o talento de Montila e Justino para encantar as novas gerações da capoeira. Aquela rivalidade era até benéfica do ponto de vista do jogo. E depois que os dois se enfrentaram, as matrículas na escolinha aumentaram bastante.

 

Depois das crianças beberem suco e comerem pipoca, foram para as suas casas suadas e felizes. O Mestre de capoeira tomou um banho ali mesmo na casa de Agda, como de costume, trocou de roupa e se despediu, quando ouviu um burburinho no portão principal da casa. Agda correu para acudir os donos daqueles gemidos que vinham lá da frente. 

 

— Não precisa acender a luz daqui de fora não! - Sussurrou Montila para a Veia Guida, fechando o portão, já com os comparsas entrando pelo corredor lateral.

— O que aconteceu, meu Deus? - Perguntou Agda, vendo o estado deplorável dos rapazes - Entrem logo! - Ordenou, amparando Montila, enquanto Tuta pedia que Nego Bó se apoiasse nele. Ramiro vinha logo atrás manquitolando. Parecia-lhes que o trio tinha escapado de um atentado causado por um homem-bomba. A parte do atentado eles tinham adivinhado corretamente.

 

 

O dia tinha sido extenuante, primeiro com a preocupação de ver Lindinha naquele estado no hospital. Uma criança com o corpo ligado a máquinas, fios e tubos por causa de um acidente estúpido enquanto brincava no intervalo da escola. Se Deus tivesse misericórdia como diziam, onde estaria ele agora? Ocupado com outra criança que se ajoelhava para rezar antes de dormir? Ele não sabia dizer qual a senha que sua neta tinha pego na fila dos milagres, mas esperava que fosse um número baixo e a fila estivesse andando rápido. O médico tinha dito a eles que as próximas horas seriam cruciais.

 

Quando se despediu de Patrícia no cemitério, ficou tentado a lhe contar a verdade, mas se conteve a tempo. Ela não merecia muita consideração. Era mimada e mal criada desde pequena. Que soubesse de tudo apenas depois que as pessoas que realmente amavam a menina resolvessem o assunto. Ela nem mesmo sabia que ele sabia sobre a existência da menina. Já não tinha mais certeza se fora uma boa ideia envolvê-la naquela tramóia. A aproximação dos dois não estava saindo do jeito que ele planejou, e quando tudo acabasse ela voltaria para a sua vida, esquecendo que tem pai vivo. Capaz de não verter uma lágrima sequer quando ele fosse para a terra dos pés juntos.

 

Ao entrar no beco, já próximo de casa, os vizinhos chatos começaram a perturbar a sua paz com o fato de que ele não tinha a capacidade de sentir cheiros, ressaltando o aroma agradável que saía pela janela da sua casa.

 

— E aí Zé das Covas? Parece que o jogo virou, hein? Eita cheiro gostoso de feijão vindo do seu barraco, homem! Melhor que de peixe podre! - Ralhou, o apontador de jogo de bicho, um homem raquítico com cara de rato que vivia de enganar os trouxas, interpretando os sonhos para fazê-los jogar e perder dinheiro.

— Vá cuidar da sua vida, cara de rato! - Devolveu, vendo o baixinho sair de perto, xingando-o.

 

De fato, pelo semblante dos transeuntes, Conceição devia ter feito a sua receita de feijão que era famosa em Sabugueiro desde os tempos de menina. Para ele, era o mesmo que mastigar isopor. Comia por obrigação de se manter vivo, já que não sentia gosto de nada que botava na boca. Sem olfato, o paladar era inexistente. Só sabia distinguir o doce, o salgado, o azedo e o amargo, e mais nada. 

 

Foi recepcionado pela ex-mulher com um sorriso que era metade preocupação com o estado de saúde da neta, e metade gratidão por tê-la deixado ficar ali enquanto a menina estivesse internada. Antes de fechar a porta olhou para a casinha verde, quatro casas adiante, e aquela figura sinistra o fitava com os lábios crispados e cara de ódio. Aquela mulher tinha algum problema.

 

Vilma não estava mais se aguentando de ciúmes. Quando viu a mulher chegar do mercadinho com as carnes para cozinhar um feijão, ela também foi comprar os mesmo ingredientes. Faria um feijão ainda melhor. A fama da outra era de que tinha uma mão de fada para fazer comida, e a fama dela era de maior freguesa das marmitas do Sr. Desidério. Enquanto uma picotava as carnes assistindo televisão, a outra se atrapalhava com a faca cega, feria os dedos e se queimava acendendo as bocas do fogão. Enquanto o cheiro do feijão de Conceição causava uma hipnose coletiva na vizinhança, o de Vilma tinha queimado.

 

—  Vai precisar chamar os bombeiros, Dona Vilma? A senhora está bem? - Perguntou um vizinho preocupado com a fumaceira que saía pela porta e janela da casinha verde.

 

Balduíno olhou pela janela e riu da cena, sabendo que a presença da sua ex-esposa deixava Vilma a ponto de ter um ataque cardíaco. Refletiu sobre aquela psicopata e não sabia se acreditava no que a vizinhança falava a respeito da mulher. Diziam que ela ainda era moça. Se aquilo fosse verdade, pra quem ela estava se aguardando? Vivia importunando ele. Talvez até lhe desse bola se não fosse tão irritante. Ainda tinha muita beleza pra gastar naquela idade. Sentou a mesa para matar a saudade dos tempos em que almoçavam juntos como família. Dormiram cedo para chegarem descansados ao hospital. Fechou os olhos assim que Conceição terminou de rezar. O que poderia ser um incômodo em outros tempos, a oração lhe esquentou um pouco o coração. Se acomodaram na mesma cama, o único lugar na exígua moradia com aquela finalidade. Não sentiu qualquer atração sexual ao rever a ex-companheira. Não sabia se pelo fato da maneira como ocorreu, ou se realmente por se enxergarem com outros olhos. Gostava dela, mas de outro jeito.

 

Naquela noite, sonhou que estava pescando sozinho em alto mar quando uma tempestade o pegou. Estava recolhendo a rede para ir embora quando sentiu algo pesado se debatendo nela. Se utilizou de toda a força que tinha para puxá-la para cima do barco. Depois de muito esforço, conseguiu colocar o peixe enorme a bordo. Começou a livrá-lo do emaranhado de tramas que o prendia, e para o seu espanto, era uma sereia. Quando ela o fitou diretamente nos olhos, o espanto foi ainda maior ao constatar que se tratava de Vilma. Em um pulo inesperado, ela o agarrou e ambos caíram no mar. Despertou puxando o ar com força para os pulmões, mas depois relaxou ao perceber que se tratava apenas de um sonho. Ficou tentado em abordar o cara de rato para contar-lhe sobre aquilo, mas logo desistiu. No momento não estava precisando nem de dinheiro, nem de futrico com o nome dele.

 

 

Como era fácil manipular uma pessoa quando se conhecia os seus pontos fracos. Quando ele descobria essas vulnerabilidades em uma alma, pobre dela. Vinha martelando na sua mente cada vez mais a sua condição sádica, numa aceitação que o deixava mais confortável. Não sentia culpa alguma pelos seus feitos, mas ainda ficava com um gosto residual ruim na boca ao concluir um projeto. Algumas pessoas sentiam prazer em fazer caridade, outras em machucar, testar os limites da dor física. Ou apenas dobrar o emocional da pessoa ao meio e vê-la perder o equilíbrio. Naquele momento ela mostrava o seu âmago na forma mais crua. Ele sentia prazer em ver as pessoas pelo avesso, esmigalhadas, amassadas, cuspidas depois de mastigadas. O efeito colateral para os mais fracos era sempre a morte. Sua excitação era crescente com a aproximação do desfecho.

 

— Quero que você cubra essa festa hoje à noite. É a despedida de solteira da filha do Dr. Eliseu Colombo.

— O juiz? - Respondeu com enfado, percebendo que o plano de visitar Justino fora frustrado.

— Ele mesmo. Não tenho mais nenhuma repórter mulher para participar do evento e fomos um dos poucos veículos convidados para registrar. Um privilégio - Ponderou, sabendo que as festas da família Colombo tinham fama de ser dois pontos fora da curva. Mandaria uma agente infiltrada como fotógrafa apenas para registrar os seus passos.

 

Ela tamborilou um pouco os dedos sobre a mesa depois que ele saiu, e decidiu que quando pegasse a sua parte do butim do cemitério, lhe daria um chute no traseiro. Pousou a mão esquerda no bíceps direito, e deu uma banana em direção a porta. Inventaria qualquer coisa para que ele não a possuísse mais. Com esse pensamento, fez uma cara de nojo quando lembrou que fora currada por Peixoto com doses elevadas de sadismo. Ela daria um jeito de fazê-lo pagar por aquilo.

 

Abriu a bolsa e pegou a sua agenda, que abriu na letra C. Correu o dedo para baixo e encontrou o telefone de Conceição. O número era da dona do sítio vizinho ao da sua mãe. Discou por duas vezes e ouviu o sinal de ocupado. Olhou para o relógio e viu que estava atrasada para um compromisso. Ela também estava ocupada e atrasada. Tinha que levar o cheque para a oficina comprar as peças e consertar o seu carro. Estava gastando uma nota preta com táxi. Percebeu que as unhas estavam em péssimo estado e precisavam de uma manicure com urgência, já que passava o dia montada numa máquina de escrever quando não estava fazendo alguma investigação externa.

 

Dentro do táxi em direção a oficina, atravessou a avenida que levava ao Jardim Bagdá e ficou tentada a mandar o motorista alterar o trajeto. Era assim que gostava das coisas, meio de supetão. Mas corria o risco de encontrá-lo e perder a noção do tempo. Tudo o que menos precisava naquele momento era que o seu chefe lhe comesse o rabo. Verbalmente e literalmente.


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