O Lobo de Odin escrita por Danilo Alex


Capítulo 1
Valhalla me chama


Notas iniciais do capítulo

Texto original produzido para participar da antologia "Vikings - O Vilarejo de L'Anse aux Meadows", organizada pela Cartola Editora em Junho de 2022 e que reúne contos de diversos autores nacionais narrando as aventuras Vikings na América.

Esta história foi a primeira que escrevi sobre o tema.

Espero que gostem do resultado.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808735/chapter/1

"Longe dos fiordes e das correntes geladas
Corvos sobrevoam as novas fronteiras
Canções e sagas sobre um destino determinado
Escudos e lanças"

(Valhalla Calling - Miracle of Sound)

 

 

Os inimigos vieram à noite, quando a aldeia viking estava em festa.

As tochas e a lareira se encontravam acesas, e do salão lotado emanava o aroma do banquete, bem como o burburinho alegre de vozes já engroladas pela cerveja e pelo vinho. Os nórdicos celebravam em honra de Sif, deusa Aesir da fertilidade, combate e colheita, que os favorecera sobremaneira naquele ano. O clima festivo reinante impediu que percebessem de imediato o ataque iminente. As sentinelas foram surpreendidas e degoladas sem ruído, enquanto sombras velozes transpunham os muros da vila. Ao som de gritos e canções, uma animada disputa para ver quem bebia mais rápido acontecia no salão quando o perigo foi anunciado.

Skraeling! — avisou Thorsten, irmão do ferreiro, que por infelicidade estava próximo da entrada. Seu grito foi calado por uma flecha veloz que atingiu sua garganta e o enviou direto aos portões de Valhalla. Mal seu corpo sem vida tocou o chão, a onda agressora já havia invadido e se espalhado pelo salão, sob a forma de guerreiros de cabelos e olhos escuros. Tratava-se do povo Inuíte, os primeiros habitantes daquela terra, os quais trajavam peles animais, tinham semblantes ameaçadores e faziam mais e mais vítimas mortais, trazendo caos onde não muito tempo antes havia festa.

Mas se os inimigos eram destemidos, a eles se equiparavam os filhos do Norte, que mesmo com as veias irrigadas pelo álcool, se ergueram depressa para combatê-los com igual ferocidade. A música e o riso deram espaço à cantilena da morte, composta pelo som de armas se chocando, carne sendo dilacerada e gargantas abertas gorgolejando sangue. No meio da luta, uma figura se sobressaía. Um jarl, um nobre escandinavo, chamado Ulf Gunnarsson, cujo nome valia por cem guerreiros.

Tinha movimentos possantes e fluídos, e havia algo de lupino no modo em que lutava. Seus olhos, azuis e frios como os mares do Norte, vasculharam o panorama caótico da batalha em busca de Einar, seu melhor amigo. Avistou-o do outro lado do salão, lutando com bravura, cercado por um trio de atacantes. Apesar da distância, Ulf percebeu cansaço nas feições daquele a quem considerava como um irmão. Seus olhares se cruzaram e ali havia um nítido pedido de ajuda. Einar sofrera um ferimento recente no ombro, do qual ainda não se curara por completo e, por consequência, se achava em desvantagem durante o combate. O jarl então passou a lutar com maior brutalidade, procurando abrir caminho até seu companheiro em dificuldades. A princípio batalhava com as mãos nuas, porque deixara suas armas aos cuidados do ferreiro. Depois arrancou do corpo de um inimigo caído um machado, antes de alcançar um dos muitos escudos pendurados que ornamentavam as paredes do salão.

Embora golpeasse e se defendesse com precisão, os adversários se acumulavam ao seu redor, empurrando-o para trás, impedindo-o de prosseguir. Por fim, um grito se fez ouvir acima do alarido selvagem da luta e, incrédulo, Ulf viu seu amigo tombar ferido de morte. Soltando um uivo doloroso, o guerreiro finalmente conseguiu rechaçar os oponentes para chegar ao ponto onde Einar agonizava com uma lança atravessada no torso. Abaixou-se junto ao amigo, a quem dirigiu um olhar angustiado.

— Não se entristeça por mim, irmão. — arfou o viking com um esgar de dor, expelindo sangue pela boca — Regozije-se comigo. Em breve participarei do banquete em Valhalla, apreciando o hidromel dos deuses. Antes, porém, tenho algo a pedir. Preciso que cuide de minha família, que os mantenha a salvo.

— Eu o farei. Juro sobre o meu bracelete. — Ulf garantiu sem hesitar. Um juramento feito sobre um bracelete viking era sagrado, jamais podia ser quebrado. Ao ouvir suas palavras, Einar sorriu com dificuldade antes de expirar. Cego pela dor, o jarl se ergueu de um salto. Tomado pelo frenesi assassino de um berserker, saboreou com brevidade a vingança. Agitando seu machado de guerra, enviava inimigos para Hel conforme avançava até a saída.

Do lado de fora, a balbúrdia reinava em igual ou até maior escala. Sempre lutando, Ulf seguiu até o que antes fora a loja do ferreiro. Ali vestiu uma armadura de malha metálica sobre a túnica de couro. Pendurou o escudo redondo de madeira nas costas, afivelou o cinto com a bainha, onde descansava sua magnífica espada com inscrições rúnicas, apropriada a seu título de jarl. Jogou sobre os ombros o característico manto de pele de lobo branco, agarrou firme o cabo do machado e rumou para a casa comunitária, onde certamente se abrigava a família de Einar à espera de notícias.

Mulheres e crianças passavam por ele, fugindo para os barcos enquanto os guerreiros protegiam sua retirada. Os inimigos tinham ateado fogo em boa parte dos prédios, e o vilarejo começava a arder. O nobre derrubou dois adversários que tentavam arrombar a porta da casa comunitária e entrou. Deparou-se com os olhos arregalados da jovem esposa de seu amigo, a qual tremia e segurava um recém-nascido. O semblante dela tranquilizou-se ao reconhecer o companheiro de infância do marido. Ansiosa, pronunciou o nome de Einar de forma interrogativa. Ulf negou com a cabeça, o rosto muito sério. Abraçando o filho, ela se pôs a chorar, expressando seu pesar em palavras ininteligíveis aos ouvidos do viking. Isso acontecia porque a viúva de Einar era uma Skraeling, uma mulher nativa daquele pedaço de mundo que os filhos do Norte tentavam colonizar. Embora ela e o guerreiro não falassem a língua um do outro, Ulf sentia urgência em protegê-la e ao bebê. Interrompendo o pranto da viúva, fez sinal para que o acompanhasse. Como a jovem indígena continuasse imóvel e aturdida, o homem caminhou até ela. Tirando o manto de pele de lobo dos próprios ombros, com alguma rispidez ele envolveu a mulher, de modo que ela e a criança ficassem aquecidas, e então a conduziu para o frio da noite.

Muito pouco ou quase nada restara do assentamento deserto. As chamas devoravam tudo com um rugido furioso. Quase três anos de empenho nórdico reduzido a cinzas em uma noite. Ulf seguia à frente, atento, o machado em punho. A fumaça acobertava sua fuga, e os inimigos pareciam ter deixado o local. Logo se viram fora dos muros do povoado.

Estendendo a vista para o mar, o jarl enxergou ao longe as velas dos Drakkars de seu clã. Provavelmente acreditavam que ele tivesse morrido juntamente com Einar na batalha do salão. Lembrou-se então de um grupo de companheiros a quem emprestara seu próprio barco para que subissem o rio, a fim de que pudessem caçar e pescar, atividades essenciais para a sobrevivência do assentamento. Não deviam estar muito longe, e se Ulf e a mulher andassem depressa, talvez os alcançassem antes do amanhecer. Com expressão carrancuda, o nórdico se pôs em marcha, sempre seguido pela jovem com o bebê nos braços. O som das botas de couro do guerreiro contra a areia era áspero.

Pensava na época em que chegara ali, quando caminhar por aquelas praias costumava ser algo prazeroso. Tendo ouvido falar de uma “terra dourada” ao sul da Groenlândia, o explorador nórdico Leif Erikson, herdeiro de Erik, o Vermelho, navegou até aquelas costas distantes, dando ao lugar o nome de “Vinlândia”, ou “Terra das Vinhas”, onde estabeleceu uma base de inverno chamada Leifsbudir (conhecida atualmente como L’Anse Aux Meadows.) Ao aportar, o contato de Erikson com os nativos foi pacífico, tendo inclusive o líder Skraeling quebrado com ele a "Flecha da Paz" antes de os dois povos trocarem presentes.

Mas agora Leif era o novo rei da Groenlândia, pois Erik, O Vermelho, estava morto. E os vikings que chegaram depois não se revelaram tão amistosos, então as lutas aconteciam com frequência, e muito sangue era derramado de ambos os lados.

Tinham andado um bom trecho do caminho quando Ulf ouviu um farfalhar leve, quase imperceptível. Instintivamente levantou o escudo, aparando no segundo exato a flecha enviada ao coração da jovem. Posicionando-se, usou seu corpo para proteger a mulher e o bebê enquanto muitos indígenas surgiam para cercá-los.

 — Poderoso Thor, empreste-me sua força, para que eu possa levar fogo e espada, ferro e aço aos meus inimigos. — balbuciou Ulf entre dentes.

Não haveria compaixão, o guerreiro sabia. Ele era um nórdico. A jovem se unira em casamento a um escandinavo, de quem gerou um filho. Seria vista como uma traidora imperdoável, uma desonrada. Talvez o único sobrevivente fosse o bebê.

Talvez.

Sem esperar, o viking fez algo surpreendente: levantou e arremessou seu machado. Um lançamento perfeito, que nem mesmo Thor poderia imitar ao atirar seu martelo Mjolnir. O inimigo caiu com o crânio rachado. O jarl sacou a espada e bateu no escudo, rugindo um grito de guerra.

Ali estava o Lobo de Odin, lutando solitário para defender sua pequena alcateia.

Então teve início a terrível batalha de um homem contra uma dúzia.  

Uma lança passou tão rente ao rosto de Ulf, que cortou alguns fios de sua barba. Enquanto lutava, o nórdico recuava, sempre protegendo a mulher e o bebê, tentando fazê-los alcançar o barco. Se chegassem vivos ao Drakkar, ele não se importaria de remar sozinho até a Groenlândia. Morrer em combate seria sua maior honra, mas não antes de cumprir um juramento tão importante.

 A armadura reduzia bastante o dano dos golpes inimigos. Ainda assim, os ferimentos começavam a abrir e sangrar. Sua espada avançava de forma precisa, para logo recuar manchada de vermelho. O coração parecia pulsar em seus ouvidos, onde ressoava o clamor da batalha. Gotas de suor e sangue viking salpicavam a areia turva da praia.

Quando estava pronto para receber o beijo final das Valquírias, um segundo escudo uniu-se ao seu, lado a lado. Então um terceiro, um quarto, vários outros, até que formassem uma sólida parede. Seus irmãos vieram em seu socorro.

Lutaram juntos, ombro a ombro, sempre recuando, até chegar ao barco, onde algumas mulheres já os esperavam. Subiram a bordo e zarparam depressa.  Conforme os amigos remavam, Ulf ocupou seu lugar de direito como chefe, em pé na proa ornada pela cabeça esculpida de um dragão.

Sua aparência diferia bastante de quando pisara na colônia pela primeira vez.

A bela trança escura estava desfeita, salpicada de sangue e lama, e ele em nada parecia o filho do Norte que se banhava uma vez por dia no rio para ficar sempre limpo.

Tão logo as mulheres escandinavas no barco reconheceram na jovem Inuíte a esposa de Einar, acolheram-na e cuidaram de seu bebê como se elas próprias o tivessem gerado.

 Os remos trabalhavam sem cessar. Ao passo em que a vela quadrada engordava ao vento desvelando o emblema de seu clã, Ulf Gunnarsson viu o penacho de fumaça se erguendo da costa, procedente do vilarejo destruído.

Embora no futuro os Skalds pudessem compor belos versos sobre a Terra das Vinhas, o chefe viking sabia que a permanência de seu povo, destinada pelos deuses àquele lugar, chegava ao fim no princípio daquela manhã.  


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Glossário Viking


Skraeling: nome dado pelos nórdicos groenlandeses aos nativos ameríndios que encontraram na América do Norte e Groenlândia

Valhalla: Na mitologia nórdica era a Sala dos Mortos, situado em Asgard, morada dos deuses Aesir, para onde as Valquírias levavam o espírito dos guerreiros escolhidos por Odin que morreram com honra no campo de batalha.

Inuíte: Nação Indígena Esquimó que habita as regiões árticas do Canadá, Alasca e Groenlândia.

Jarl: Título de nobreza da era viking utilizado para designar o governador de uma região relativamente grande ou o braço-direito de um rei.

Berserker: Guerreiros nórdicos ferozes relacionados a um culto específico ao deus Odin. Liberavam uma fúria incontrolável antes de qualquer batalha.

Drakkar: Navio-dragão. Embarcação viking de exploração. Aberta, comprida, casco trincado, lemo-reme lateral na popa, duas fileiras laterais de remo, velas quadradas e exibia na proa, como adorno, uma carranca que representava a cabeça de um dragão ou uma serpente marinha.

Leif Erikson: Filho do lendário Viking Erik o Vermelho, foi um explorador marítimo groenlandês popularmente conhecido como o primeiro europeu a chegar à América do Norte, mais especificamente à região que se tornaria o Canadá.

Erik, o Vermelho: Comerciante e explorador norueguês do final do século X que estabeleceu o primeiro assentamento europeu na Groenlândia.

Mjolnir: Poderoso martelo místico de Thor, o deus nórdico do trovão.

Valquírias: Virgens guerreiras de Odin, responsáveis por guiar as almas dos guerreiros mortos em combate até Valhalla.

Skalds: Poetas/bardos escandinavos que compunham e declamavam a poesia escáldica, uma das vertentes da poesia nórdica antiga.