As Folhas de Sicômoro escrita por Mayara Silva


Capítulo 3
O Garoto dos Olhos Azuis


Notas iniciais do capítulo

Boa leituraa u3u



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Tudo ainda parecia tão escuro quando Michael lentamente abriu os olhos e despertou após horas de repouso. Abriu e fechou a mão cortada em movimentos repetitivos e vagarosos, sentindo a fenda em sua pele contrair e dilatar, o que causava uma sensação estranha e inexplicável, contudo, o sangue já parecia não escorrer mais. Ele piscou mais algumas vezes antes de se levantar e sentir o peso do mundo em sua cabeça, o cérebro latejar e a visão escurecer por alguns segundos antes de se acostumar com a luz densa do luar.

 

Alguém havia apagado a fogueira.

 

Michael olhou para um lado, para o outro, e não identificou ninguém naquela sala. Estava sozinho.

  

— Prince…? Luna…?

 

Murmurou, levantando-se. Era estranho como se os três tivessem o abandonado ali e fugido no meio da noite. Michael não estava assustado com o ambiente, nada naquele lugar de fato parecia ameaçador; pela primeira vez não era o desconhecido que o atormentava, mas o paradeiro dos seus amigos. Sobretudo, dela.

 

— Prince! Luna!

 

Os chamou, sem sucesso. O moreno levou as duas mãos aos cabelos e puxou discretamente os próprios cachinhos, alguma coisa naquele gesto apaziguava os seus nervos. Colocou os parafusos para funcionar e passou a olhar para os caminhos daquele casarão velho, perguntando-se onde procuraria primeiro.

 

Todavia, o próprio ranger da madeira resolve lhe dar uma pista.

 

Repentinamente, um barulho pôde ser ouvido do primeiro andar. O rapaz virou o rosto em um rápido movimento e contemplou o vulto de uma pessoa passar rapidamente pelo corredor e sumir. Luna estava por aí, e não saber com exatidão o seu paradeiro era mais assustador que qualquer outra coisa.

 

— Luna!

 

Subiu as escadas, e não se importou com o barulho ameaçador que faziam. Seguiu freneticamente pelos corredores empoeirados daquele lugar. Não sabia se era a sua mente recém acordada pregando peças, mas jurou ter ouvido uma risada; uma risada agradável, contagiante, humana…

 

… mas não era feminina.

 

Apoiou-se no batente da porta por onde a criatura entrou e quase levou um pedaço consigo. Estava pronto para chamar por seus amigos novamente, porém o que viu acabou por deixá-lo sem palavras.

 

Um homem.

 

Eles se olharam por alguns instantes. Michael permaneceu de pé na entrada do quartinho, e o rapaz, próximo à janela aberta. Era jovial, de olhar arqueado, tão gracioso que parecia estar sempre sorrindo com os olhos. Aparência de mocinho bonito, pele clara — azulada pela luz da lua —, cabelos escuros e curtos, olhos pequenos, sorriso arteiro e maçãs do rosto bem modeladas. Os lábios finos, o perfil esculpido como uma estátua de gesso; Michael não queria admitir, mas havia alguma coisa de atraente naquele menino, alguma coisa que não o deixava desviar o olhar para qualquer outra direção; se sentiu tentado a continuar olhando para ele em todas as suas nuances.

 

— Quem… é… você?

 

As palavras saíram com dificuldade de seus lábios. Precisava falar, mas não era o que queria; queria continuar ali, olhando para ele.

O desconhecido sorriu.

 

— Vamos brincar?

 

Aquele pedido o fez lentamente arquear a sobrancelha, custando a compreendê-lo. O jovem, ainda sorrindo maliciosamente, avançou sobre o moreno indefeso e o empurrou de leve na parede lateral, aos risos.

 

— Tá com você!

 

Correu pelos corredores ermos. Michael, por um segundo, foi tomado por uma adrenalina inexplicável, uma vontade repentina de se tornar criança mais uma vez — uma época cujos detalhes pouco lembrava —, e não esperou ser chamado novamente: correu em direção ao garoto desconhecido, sem nem ao menos se perguntar de onde ele havia brotado.

 

Entre altas gargalhadas, levantaram a poeira do chão como se aquela casa fosse uma mera atração turística. Michael encurralou o rapaz na primeira parede que encontrou, o choque das costas dele com a madeira fez um barulho absurdo, e, mesmo que o moreno tivesse mordido os próprios lábios em auto repreensão, o garoto dos olhos azuis não parecia incomodado. Gargalhou com a gracinha e Michael percebeu, entre suas linhas estonteantes, os seus dentes pequenos – notou que havia uma pequena fenda entre os dois principais, e como essa sutil imperfeição o deixava ainda mais gracioso. Riu com a sua risada, compartilhou daquele sentimento como se eles fossem antigos amigos.

 

— Você ainda é forte…

 

— Você me conhece?

 

O rapaz soltou um suspiro e, sorrindo, escolheu o silêncio. Começou a caminhar para dentro de outro quarto, e o seu corpo curvilíneo, embora masculino, seguiu as ondas dos seus movimentos.

 

"Terra molhada, fim de setembro…"

 

Ele cantarolou, e sua voz era uma das coisas mais lindas do mundo. Tinha um quê de excitante; outra das sensações que o moreno não queria assumir, mas a impressão que tinha era que aquela voz dominava cada arrepio involuntário do seu corpo.

 

— Eu não conheço você. Mas você me conhece.

 

— Hum… eu não lembro.

 

— Ah, vamos! Se esforce! Você falou com ela… ela te contou tudo!

 

Michael a princípio franziu o cenho. Estagnou por alguns instantes, refletiu e não demorou para que o nome de uma pessoa viesse à sua mente; o nome de alguém que ainda não havia proferido nas suas buscas.

 

— Bunty?

 

— Bunty…?

 

Indagou o rapaz, sussurrando, quase em tom de uma surpresa sarcástica. Ele sorriu, parecia realmente satisfeito com aquela resposta; levou a mão à do moreno e o puxou lentamente para a janela — para que vissem o terraço de longe, para que contemplassem as folhas de sicômoro espalhadas pelo solo invisível.

 

E então, Michael percebeu que estava olhando pelos olhos da torre.

 

— O que é que tem debaixo das folhas, Michael…?

 

Ele não respondeu. Olhava para toda aquela folhagem, como se cada uma daquelas plantinhas verdes e laranjas fossem suas antigas companheiras, como se cada detalhe ali o chamasse para perto. O rapaz desconhecido percebeu isso e, sorrindo, lentamente se afastou do moreno.

 

— Vamos descobrir… vamos descobrir…

 

Ele sussurrou, e então desapareceu pelos corredores. Michael apenas se virou quando aquela voz passou de palpável para meros sussurros no profundo de sua cabeça. O moreno estava em alerta, parecia um pouco mais assustado, porém não o suficiente para libertá-lo daquele estado de inércia mental. Seguiu a voz misteriosa até o térreo, até a saída da casa.

 

Todavia, ao deixar os salões abarrotados de pó para o véu negro da noite, contemplou uma luminosa lua cheia a clarear uma piscina de folhas, todas cobertas por um vermelho escuro.

 

Reconheceu que aquilo era sangue, e teve sua confirmação quando sentiu muito nitidamente o cheiro inegável de ferro. Seguiu sem se permitir duvidar dos seus sentidos, seguiu sem questionar nenhuma daquelas miragens. Assim que sentiu as folhas cobrirem seu corpo até os joelhos, suspirou profundamente antes de levar as mãos nuas àquele monte e descobrir o que quer que havia ali.

 

Porém, antes de iniciar a escavação improvisada, algo em uma de suas mãos chamou sua atenção. Algo na mão enfaixada. Foi apenas virar a palma para o alcance de sua visão, que conseguiu contemplar o seu corte — o lencinho de tons claros tingido de escarlate —, o líquido escorrendo por onde quer que pudesse caminhar. Naquele momento, apenas naquele, suas pupilas se contraíram. Apenas naquele momento, teve medo.

 

"E eu nunca conseguiria…

E eu nunca veria…

E eu nunca escaparia… e me livraria desse controle sobre mim."

 

A voz dele ecoou em seus pensamentos. Michael não disse uma palavra; usou de sua mão avariada para tirar um pouco das folhas, quando percebeu, por entre elas e muito sutilmente, o que parecia ser um corpo.

 

O que parecia ser uma mão. Pele escura. Mesmo corte na palma.

 

— O que é que tem debaixo das folhas, Michael…?

 

Um sussurro.

Ele congelou. Sem conseguir proferir uma palavra sequer, cedeu alguns passos para trás, mas acabou esbarrando no tórax do que acreditava ser aquele rapaz. Michael suspirou; tinha medo.

 

— Eu…

 

Viu dois braços invadirem o seu campo de visão e imobilizarem o seu corpo. No mesmo instante se desesperou, tentou se desvencilhar e buscou não mais olhar nos olhos daquele homem.

 

— N-não!! Alguém ajuda!!

 

Michael suplicou aos berros, porém bradou de dor ao sentir aquele desconhecido fincar os dentes na sua pele. Havia mordido entre o ombro e o pescoço, e sabia, com convicção, de que aquele sujeito não estava em seu estado comum. Havia visto seus dentes, eram pequenos e certamente não provocariam aquela dor, aquela angústia; tinha a sensação de que havia uma tesoura dilacerando a sua carne.

 

— NÃO!!

 

Gritou mais uma vez e então caiu, foi levado pelas folhas para um canto escuro do piso. Sentiu o peso daquele homem cair junto consigo, sentiu que ele parecia estar levando suas forças embora.

 

E então… adormeceu.

 

x ----- x

 

Casa abandonada, floresta dos sicômoros – 05:59 hrs

 

Acordou assustado.

 

Em um pulo, desvencilhou-se daquelas folhas demoníacas e, então, acreditou não ter sonhado com nada daquelas coisas quando percebeu ter acordado por entre as folhagens de sicômoros no terraço da casa. Era manhã, o sol timidamente já aquecia a floresta. Michael estava profundamente exausto; sua pele cintilava em suor, o peito quase não conseguia consumir o ar, e sua visão cansava ao ver uma mínima coisa distante. Saiu arrastando sua carcaça pesada para dentro do casarão velho, até enfim encontrar o trio que já estava de pé.

 

— Michael!!

 

Luna correu em sua direção e pulou em seus braços, mas não esperava vê-lo tão fraco e acabou o levando consigo para o meio das folhas. Prince, assustado com o que aconteceu, correu ao auxílio do casal.

 

— O que deu em você, Luna?!

 

— E-eu… eu pensei que ele ia me pegar! Michael, o que aconteceu??

 

— Saiam da droga das folhas, seus idiotas!

 

Exclamou Bunty, olhando espantada para o tanto de bagunça que estavam fazendo naquele lugar. Prince ajudou o garoto a se levantar, mas o corpo cansado dele pendeu para o chão novamente. Preocupado, o baixinho o empurrou para os próprios ombros e o fez apoiar-se em seus braços.

 

— O que aconteceu com você, seu imbecil?

 

— E-eu… não… a… a Bunty…

 

— Isso tudo é culpa sua! — exclamou Luna, indo na direção da loira.

 

Prince, sentindo-se o único sensato naquele lugar, se pôs na frente das meninas.

 

— Ei, ei! Vocês querem que eu chame uma plateia pra ver esse showzinho?

 

Luna suspirou e cedeu alguns passos para trás. Já a loira, não parecia preocupada com a garota. Tornou a olhar para Michael, a contemplar o seu estado fatigado.

 

— O que você foi fazer no meio do mato?

 

— E-eu… eu não…

 

Seu corpo pesou, Prince sentiu todo o peso vindo para os seus ombros quando o menino cedeu ao cansaço. Tremia, suava, estava queimando em febre.

 

— Droga… Okay, a brincadeira acabou. Vamos embora, a gente tem que levar o Michael pra um hospital.

 

Luna seguiu para a esquerda do moreno, enquanto Prince segurava a sua direita. Os três seguiram adiante, enquanto Bunty, lá trás, pisoteava o caminho das folhagens com muito cuidado.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:

[...] fez um esforço para trancar-se no carro, mas aquelas folhas tão singulares repousaram, com a força do vento, em seu colo. Ela as encarou por poucos instantes, enquanto o veículo começava a se mover.

— Fecha a porta, Luna!

O garoto exclamou, todavia, ela já não o ouvia mais.

A pequena folha voou para longe, e a morena se sentiu tentada a segui-la. Saiu do carro sem se importar com o movimento das rodas, e seguiu mata adentro.

[...] [...]

Michael a acompanhou e, após dar baixa no hospital, seguiram o bonito bosque que dava em direção à instituição de ensino.
No meio do caminho, ela iniciou um assunto.

— Você está bem?

— Estou! Eu… o que aconteceu ontem?

Ela suspirou.

— Você passou mal. Eu passei o dia todo preocupada contigo. [...]

— Luna, eu… eu acordei um pouco confuso… estressado… e eu… — ele mordeu os lábios. Não sabia se deveria contar sobre o sonho, mas era algo que queria — eu sonhei com você.



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