O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 9
Capítulo 8




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Uma leve rajada de ar frio que entrou pela janela acordou Fernanda.

A encarregada espreguiçou-se na cama, desentorpecendo os braços, ainda sentindo-se maravilhosa consigo mesma. As sensações que havia experimentado com Adam na noite passada ainda estavam tão frescas que quase podiam ser sentidas. Esticando o braço para o outro lado da cama, percebeu que ele não estava lá.

Piscando algumas vezes para terminar de despertar, Fernanda sentou-se na cama, olhando em volta. O gerente não estava no quarto, mas as roupas dele ainda estavam jogadas pelo chão. A menos que ele houvesse resolvido ir embora somente de cueca, era bem provável que ele estivesse no banheiro ou na cozinha.

Levantando-se, Fernanda pegou sua lingerie no chão e vestiu-a. Vestiu também um shortinho e uma camiseta e foi para o banheiro escovar os dentes e pentear o cabelo. Feito isso seguiu para a cozinha para preparar o café, mas parou a meio caminho.

Havia encontrado Adam.

Ele estava sentado no meio da sala, com as pernas cruzadas na clássica posição de flor-de-lótus e as mãos pousadas entre os joelhos com as pontas dos dedos unidas, usando apenas sua boxer vermelha. Estava com os olhos fechados e um semblante aristocrático permeado com um certo ar de tristeza. Ele havia aberto uma das cortinas para que a luz do dia, ainda que fraca, iluminasse apenas o local onde ele estava sentado, deixando o resto do cômodo na penumbra.

Estava meditando.

Era uma visão interessante, Fernanda foi forçada a admitir. Poderia ficar ali um longo tempo admirando-o, mas não quis atrapalhar seu momento de concentração. Virando-se, terminou de chegar até a cozinha e começou a preparar o café da manhã. Coou o café, preparou algumas torradas com manteiga, descascou e cortou algumas maçãs e fez um suco natural de laranja com cenoura, pondo-se a comer em seguida. E enquanto mastigava uma torrada e servia-se de suco, recordou-se de algumas palavras que Jefferson havia dito a ela na noite anterior.

Ah, por favor, Fernanda. O bairro inteiro já está sabendo.

Então, seus vizinhos já sabiam que Adam estava de volta. Havia uma senhora que morava a três casas da de Fernanda, a tal dona Graça, que estava na casa dos sessenta e alguns anos e era conhecida por ser a maior leva-e-traz de notícias do bairro. Se ela realmente tivesse visto o gerente na vizinhança, Fernanda tinha certeza que ela teria feito o favor de contar a Deus e o mundo sobre isso. Além do mais, havia a possibilidade de que a dona Graça se lembrasse do namoro deles e saísse por aí falando abobrinhas. E se tinha algo que Fernanda odiava, mas odiava mesmo, era ser o assunto das conversas.

— Você fica linda com essa cara de pensativa, sabia? — Adam anunciou, com um tom de voz doce.

Fernanda assustou-se. Perdida em pensamentos, não havia percebido que o gerente havia chegado silenciosamente e se sentado ao seu lado. Rindo de si mesma, abriu um sorriso e depositou um beijo leve nos lábios dele.

— Bom dia, Adam.

— Bom dia. — Ele devolveu, com os olhos semicerrados e um sorrisinho canastrão — No que você tanto pensava?

Ela escaneou o corpo seminu dele de cima abaixo com certa malícia, tendo certeza de que ele percebesse.

— Depois te conto. — Ela deu uma risadinha.

Ele a encarou por alguns instantes, mas depois sorriu e empertigou-se na cadeira. Ele também gostava daquele jogo de provocações.

— Ok, então.

Adam esticou o braço e pegou uma torrada também, servindo-se de um café em seguida. Por alguns minutos, não conversaram. Tudo que se ouvia era o som das torradas crocantes sendo mordidas e da faca sendo passada no pote de manteiga. O gerente, no entanto, teimou em puxar assunto.

— Falando sério. — Ele disse, concentrado em seu copo de café — No que você estava pensando?

Fernanda estava levando um pedaço de maçã à boca e parou a meio caminho, encarando-o. Algo que ela não pôde deixar de notar foi o semblante dele. Antes tão sério, intimidador e receoso em alguns momentos, Adam agora parecia apenas relaxado. Suas sobrancelhas angulosas e seu olhar severo haviam dado lugar a uma expressão tranquila e pacífica. Como alguém que houvesse acabado de se livrar de uma carga de tensão particularmente pesada.

Subitamente, a encarregada teve medo de que essa expressão dele se perdesse. Desde que haviam se reencontrado, ela nunca havia sentido nele um sentimento genuinamente feliz até agora. Olhando bem nos olhos negros dele, ela receou revelar o que estava pensando, pois não queria que ele assumisse novamente uma expressão rancorosa.

Mas o altear de sobrancelhas dele indicou que ele esperava uma resposta. Respirando fundo e escolhendo bem as palavras, ela prosseguiu:

— Eu estava pensando no que o Jefferson me disse no shopping.

O semblante dele não se alterou.

— No quê, exatamente?

— Quando ele disse que o bairro inteiro já sabe que você voltou.

Não foi necessária uma explicação maior. Adam largou a torrada que estava comendo e endireitou o corpo na cadeira.

— Já entendi. — Ele piscou algumas vezes — E você está pensando sobre o que as pessoas daqui podem pensar a respeito de nós dois.

Mesmo após todos aqueles anos, ele ainda conseguia entendê-la nas entrelinhas. Fernanda não pôde deixar de se surpreender por isso. No entanto, não era hora para contemplações.

— Sim. — Ela concordou, percebendo que a expressão facial dele começava a se fechar — Mas não estou preocupada com o que eles vão pensar, Adam. Só não gosto de ser o centro das atenções. E você sabe disso.

Ele baixou os olhos, fitando o próprio abdômen e torcendo os lábios. Ainda estava pensando.

— Alguma coisa me diz que não é só isso. — Ele emendou.

Fernanda estranhou. Já estava se preparando para protestar quando entendeu o raciocínio dele. Realmente não havia problema se seus vizinhos criassem mil teorias a respeito deles. Ela não se importava e tinha certeza que ele também não. O problema era outro.

— Tem o pessoal da empresa também. — Ela admitiu, para ele e para si mesma — Não sei como reagiria se o pessoal de lá descobrisse. E tenho certeza que também não pegaria bem para você.

Ele concordou com um gesto de cabeça.

— E alguém de lá sabe?

— O Bruno. — Ela confessou.

— Quem? — Ele boiou.

— O nosso gestor de frota. Sabe, aquele rapaz que estava com a cara preta lá no refeitório e que te ligou ontem à noite falando da carreta acidentada.

— Ah, sim. — O gerente se lembrou — Mas como ele soube?

— Ele é meio doido, Adam, mas é muito inteligente. Chega a ser até estranho. Ele vê coisas onde ninguém mais vê. — Ela divagou, mordiscando novamente o pedaço de maçã que segurava — Ele sacou que havia algo entre nós logo naquela primeira reunião que você fez com o pessoal do meu setor. Depois disso, foi a ligação de ontem.

— Onde ele nos pegou juntos. — Ele emendou.

— Exatamente. — Ela finalizou — E para um bom entendedor, um pingo é letra.

— E você confia na discrição dele? — O tom de voz dele traiu uma certa insegurança.

— Uns noventa por cento. — Ela bebeu um pouco de suco — Como eu disse, ele é meio doido. Pouco custa pra ele chegar na frente da galera e soltar isso sem perceber.

Adam não respondeu. Passou a mão de leve pela boca para limpá-la e levantou-se.

— Quer saber? — Ele soltou, ainda sério — Que se dane. E daí se todo mundo ficar sabendo? Até onde sei, não devemos satisfações a ninguém.

— Concordo. — A encarregada complementou, de repente sentindo-se acalorada — Então se alguém me perguntar alguma coisa sobre isso, o que eu respondo?

O gerente desfez seu semblante pensativo e sisudo, substituindo-o por uma expressão divertidamente provocativa, e finalizou o assunto de forma elegante:

— Seja criativa.

 

o—o—o

 

A manhã estava cinzenta, anunciando um dia insosso. O céu, que até a noite anterior estava limpo como a superfície de um lago, agora fechava-se de nuvens carregadas que prometiam chuva, e o vento que soprava trazia consigo um ar frio, triste e invernal.

O clima contribuía apenas para desanimar ainda mais a equipe de perícia da Polícia Civil que examinava os destroços carbonizados do que outrora havia sido um Volkswagen CrossFox. No banco do motorista, ainda presa às ferragens do carro, uma caveira enegrecida pelo fogo parecia sorrir de forma cruel e sádica aos militares, como se debochasse da futilidade da vida.

Postado num canto mais afastado, o detetive Guilherme de Paula apenas observava o trabalho dos peritos, que haviam fechado a rua e agora cercavam o veículo incendiado como formigas num pote de açúcar, recolhendo pedaços de plástico caídos no chão e tirando fotos da lataria retorcida como em um verdadeiro ensaio fotográfico. O detetive penalizava a si mesmo por se sentir com extrema má vontade, pois queria estar em casa dormindo abraçado com a esposa ou tomando uma gemada quentinha.

Mas lá estava ele, acompanhando aquele serviço fúnebre numa manhã nublada e fria de sábado, enrolado em um casaco sobretudo preto e escondendo suas olheiras por trás de um óculos escuro. Logo de cara, pressupôs que o motorista estava em alta velocidade e havia perdido o controle da direção, capotado e se chocado contra o poste de luz, vindo o carro a pegar fogo na sequência. Guilherme não via em que mais poderia ser útil.

Um policial aproximou-se dele com uma pasta.

— Os documentos que você pediu, detetive. — Ele anunciou.

Guilherme estendeu a mão e pegou os papéis, bocejando.

— Já descobriram quem ele era? — Perguntou.

— Sim. Rastreamos a placa no sistema do Detran. — O policial respondeu — Se chamava Gustavo Coelho. Casado e pai de dois filhos. A esposa ligou para a polícia durante a madrugada para denunciar o desaparecimento dele.

O detetive assentiu.

— E ela já sabe sobre...? — Ele fez um gesto de cabeça na direção do veículo.

— Não. Estamos esperando os peritos acabarem o serviço. — O policial informou.

Guilherme assentiu, abrindo a pasta que segurava e folheando os poucos arquivos que havia ali.

— Sem antecedentes, sem passagens, nem mesmo multas de trânsito. Esse cara era um verdadeiro santo. — Ele disse, correndo os olhos pelos papéis e sentindo-se desanimado — Acho que vai ser difícil concluir qualquer coisa além de um acidente e...

— Eu discordo, senhor. — Uma voz se fez ouvir ao lado de Guilherme, cortando sua fala.

O detetive deu um ligeiro pulo para a direita, pego de surpresa, e se virou apenas para constatar que um dos peritos havia se materializado ao seu lado.

— Como é que é? — Ele perguntou, ajeitando a roupa.

— Houve outro veículo envolvido.

Aquilo chamou a atenção de Guilherme, enquanto o outro policial tratava de se afastar.

— Como você sabe? — O detetive indagou.

— Me acompanhe, por favor. — O perito chamou, virando-se e indo até o CrossFox, no que foi seguido pelo detetive.

Contornaram o veículo até ficarem diante do para-lama e da roda traseira direita. O para-lama encontrava-se bastante amassado e a roda diamantada estava quebrada, mas estas partes não haviam sido alcançadas pelo fogo que consumira o restante do Volkswagen.

— E então? — Guilherme perguntou, tentando ver algo na lataria retorcida que indicasse alguma coisa.

O perito o olhou com ar de impaciência, agachando-se ao lado do carro e apontando um amassado fundo na junção do para-choque com a carroceria. Guilherme agachou-se também.

— Está vendo estes arranhões? — Ele apontou, e o detetive assentiu – E está vendo esta depressão aqui? - Ele apontou outro amassado, abaixo da lanterna traseira, e Guilherme também assentiu - Pois bem. Um capotamento simples não causaria esses tipos de estrago. Examinamos ambos os amassados com uma lente de aumento e descobrimos tinta engastada neles.

Guilherme piscou. Aquilo, sim, parecia interessante.

— E não pode ser tinta do próprio carro? Ou de algo em que ele tenha batido?

— Não. A tinta que encontramos aí é de cor bordô. E este CrossFox era branco. — O perito continuava com seu ar de impaciência — É mais provável que seja a tinta de algo que bateu nele.

O detetive se pôs de pé.

— Encontrar tinta engastada na lataria não é o suficiente pra você dizer que houve outro veículo envolvido, meu amigo.

O perito bufou. Parecia também estar detestando estar ali naquele sábado de manhã.

— Você sabe com que força um carro tem de abalroar o outro para que engaste tinta na lataria? — Ele se levantou também, tirando um envelope de evidências transparente lacrado do bolso do jaleco e erguendo-o no ar — Mas não é só isso. Também encontramos isso aqui no meio da rua. Estava junto dos estilhaços das lanternas traseiras deste carro, alguns metros ali atrás.

Dentro do envelope havia o que parecia ser uma haste comprida de metal cromado. Guilherme pegou-o e pôs-se a examinar a peça longilínea.

— Isso é... Sei lá, uma antena de rádio? — Ele perguntou, incerto.

— Não. — O perito postou-se ao lado dele, também observando a peça — E nenhum modelo do Volkswagen CrossFox lançado até hoje utiliza alguma peça parecida com essa. Mandamos uma foto para o nosso laboratório começar a analisar.

O detetive continuava observando a haste cromada.

— Tudo bem, mas o que você acha que seja isso?

— Na boa? — Por um instante, o perito perdeu o ar de antipatia — Pelo pouco que eu entendo de carros, acredito que isso seja um cromado de algum carro antigo. Meu tio teve um Dodge Charger 1977 e os filetes da grade dianteira se pareciam muito com essa peça.

— Hum... — Guilherme murmurou, pensativo.

O detetive conseguiu projetar a imagem do Dodge Charger em sua cabeça, percebendo que o perito tinha lá certa razão. E então, levantando a vista, começou a olhar em volta, como se procurasse alguma coisa. Aquele caso havia acabado de se tornar relativamente interessante. Percebendo a expressão do detetive, o perito perguntou:

— O que foi?

Mas Guilherme encontrou o que queria, abrindo um sorrisinho satisfeito. Erguendo os olhos, o perito também percebeu. Alguns metros após o local onde estavam, uma câmera de segurança pendia do muro de uma casa, apontando exatamente para a rua.

Devolvendo a peça metálica para o perito, Guilherme ajeitou o casaco e sussurrou:

— Pois bem. Parece que vamos descobrir a quem essa peça pertence.


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