O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 10
Capítulo 9




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Não foi difícil para Guilherme conseguir as imagens da câmera de segurança. O morador da residência foi muito simpático, chegando inclusive a oferecer um café quente aos militares, e nem questionou quando o detetive lhe solicitou a gravação.

De posse de um pen drive com uma cópia das imagens, o detetive voltou para seu escritório na delegacia. Inseriu o pequeno aparelho na entrada USB de seu computador, abriu o arquivo específico e começou a passar as imagens aceleradas. Por volta das duas horas da manhã houve uma movimentação rápida subindo a rua, um vulto claro rolou de um canto a outro do vídeo e colidiu contra um poste. Outro vulto, escuro e comprido, passou direto em altíssima velocidade, mas retornou de ré e postou-se diante do vulto mais claro.

Guilherme piscou. Eram as imagens que ele queria. Ele voltou o vídeo e deixou-o passar em velocidade normal. De início, conseguiu perceber apenas luzes de faróis que se aproximavam rápido, ziguezagueando pela rua. Depois de poucos segundos, os carros ficaram lado a lado. O CrossFox do falecido Gustavo, à direita do vídeo, era inconfundível, devido à sua altura e sua lataria branca. O outro carro, no entanto, mais baixo e muito mais largo, continuava indefinido. A única coisa que Guilherme conseguiu detalhar visualmente foram os faróis duplos dianteiros.

De súbito, num movimento rápido e fluido, o veículo escuro jogou-se contra o Volkswagen, atingindo-o na altura da roda traseira direita e fazendo-o rodar. O CrossFox virou-se num ângulo de noventa graus com a rua e capotou, rolando três vezes sobre o próprio teto até finalmente colidir contra um poste de luz. Chamas irromperam do compartimento do motor quase imediatamente. O outro veículo continuou seguindo adiante, mas em poucos segundos o detetive o viu retornar de ré pela rua, parando a poucos metros da dianteira do Volkswagen que se incendiava. Agora, sim, Guilherme conseguiu vê-lo com clareza. Era um Ford Landau, enorme como uma limusine funerária.

O detetive viu quando a porta dianteira esquerda foi aberta e o motorista desceu, caminhando lentamente até se postar a uma pequena distância do Volkswagen que se incendiava. Usava yellow boots Caterpillar, uma calça escura, uma camiseta preta de malha e uma jaqueta de couro liso, mas seu rosto estava inconvenientemente indefinido pela sombra de uma árvore. À luz tênue das chamas que emanavam do CrossFox, Guilherme conseguiu ver que o motorista do Landau disse algo ao falecido Gustavo, preso às ferragens, depois virou-se, voltou para o sedã e foi embora. O detetive ainda repetiu as imagens outras três vezes, tentando visualizar o rosto do homem que dirigia o Landau, mas não obteve êxito. Também tentou focalizar a placa do sedã, mas a gravação estava indefinida demais para um detalhe tão pequeno.

Frustrado, Guilherme recostou-se na cadeira, pensativo. Após conseguir aquela gravação, havia percorrido a rua à procura de outras câmeras que pudessem lhe oferecer outros ângulos de imagens, mas não encontrou nenhuma. Precisava pensar em outras possibilidades.

A primeira era a de que realmente se tratasse de um acidente. Aquelas imagens, no entanto, refutavam tal possibilidade. Era mais do que óbvio que o motorista do Landau havia jogado seu carro propositalmente contra o Volkswagen, levando-o a capotar. Isso levava à segunda hipótese, que seria a de uma briga de trânsito. As imagens daquela câmera, no entanto, não sustentavam esta possibilidade, pois não mostravam um possível desentendimento entre os motoristas. A não ser que encontrassem outras gravações dos veículos ou que uma testemunha ocular se apresentasse, aquela hipótese também seria refutada. A terceira hipótese era de um racha malsucedido. Guilherme, no entanto, achou bastante improvável que Gustavo, cujo CrossFox possuía um modesto motor 1.6, se propusesse a competir com um veículo dotado de um potente motor V8.

Aparentemente desinteressante no início, aquele caso começava a se tornar especialmente instigante para o detetive. E então, repassando em sua cabeça a forma com que o Ford havia se jogado contra o Volkswagen, uma idéia lhe ocorreu. A princípio um pouco sensacionalista e absurda, mas ele decidiu arriscar. Debruçou-se sobre a mesa, pegou o telefone e discou um ramal.

— Legista. — A ligação foi atendida.

— Diego, é o Guilherme. — O detetive disparou — Preciso de um favor.

— Diz aí.

— Quero saber se houve alguma morte recente que envolvesse um modelo de carro específico.

— Ok, eu tenho acesso aos laudos completos. Consigo rastrear pelo sistema. — Diego informou — Qual modelo?

— Um Ford Landau.

— Uma raridade, hein? — Guilherme ouviu o médico-legista digitando algo em seu computador — Mais alguma informação? Ano, versão, cor?

— Não... — O detetive devolveu, incerto, mas resolveu acrescentar mais alguma coisa — Ano e versão eu não sei dizer, mas a cor é um tom de vinho.

— Já é alguma coisa. Vou ver o que consigo e te falo.

— Beleza. Fico no aguardo. — Guilherme finalizou, recolocando o telefone no gancho e recostando-se novamente na cadeira.

Iria mandar puxar o histórico de Gustavo novamente, e se certificaria de que fosse o mais detalhadamente possível. A partir daí, conseguiria verificar toda e qualquer ponta solta. No entanto, começaria a trabalhar sua outra idéia ao mesmo tempo: a de um assassino em série. Porque mortes sem motivos aparentes e de formas diferenciadas costumam apontar justamente para este desfecho. Já estava na Polícia há um bom tempo e já havia trabalhado em casos assim. E se não fosse este o caso, Guilherme também queria descartar logo esta possibilidade.

 

o—o—o

 

Adam e Fernanda passaram o sábado juntos.

Muito cordial, o gerente ajudou a encarregada com a arrumação da casa e a limpeza do carro. Ajudou-a também a preparar o almoço e riram bastante quando Adam confundiu o pote de azeite com o de vinagre balsâmico e quase transformou a salada de alface num verdadeiro desastre gourmet. Depois do almoço, dividiram uma lata de pêssegos em calda com creme de leite e se sentaram no sofá para assistir televisão.

A programação estava entediante, mas um canal fechado exibia o filme Titanic. Adam recostou-se no braço do sofá e deixou Fernanda deitar-se sobre seu peito. Na televisão, a cena clássica do jantar na primeira classe do navio.

— “Mas o senhor Brown não sabia que eu havia escondido o dinheiro no forno”. — A personagem Molly Brown estava dizendo, arrancando risadas dos demais — “Então cheguei em casa bêbada como uma gambá, comemorando, e acendi o fogo.”

Foi inevitável para Fernanda lembrar-se de Bruno, com seu jeito sem-noção de ser. Ainda pensando consigo mesma, a encarregada ouviu Adam dizer:

— Eu senti falta disso.

Ela ergueu um pouco a cabeça e olhou-o nos olhos.

— De quê?

— Disso. — Ele fez um gesto com a mão direita, apontando para ambos, e sua voz adquiriu um tom emotivo — Momentos como esse. De ter intimidade com alguém.

Aquilo tocou Fernanda. A sinceridade dele, a carência implícita em seu tom de voz. Era fofo e triste ao mesmo tempo.

Ela abriu um sorriso compreensivo e afagou-lhe o tórax por cima da camisa.

— Não fique pensando nisso.

— É inevitável. — Ele emendou depressa — Doze anos sozinho é... É algo muito relevante para simplesmente ignorar.

A encarregada fez um gesto negativo com a cabeça. Por mais que ela tentasse entender, sabia que nunca conseguiria conceber nem um centésimo da aflição pela qual Adam havia passado. Mas agora ele estava ali, e estava com ela, então Fernanda sentia-se obrigada a tentar confortá-lo e ajudá-lo a seguir em frente.

— Eu entendo, mas você não pode se ater ao passado. — Ela desenhou o contorno dos músculos do peito dele com o dedo indicador — O negócio é aproveitar o presente e planejar um futuro melhor.

Ele baixou um pouco a cabeça, encarando-a e esboçando um sorriso estreito e contrafeito, sem mostrar os dentes, enquanto a enlaçava mais firmemente com o braço esquerdo.

— Quer saber? Você está certa. Tenho mais é que aproveitar isso aqui. — Ele disse, aconchegando-a ainda mais de encontro ao próprio corpo.

— Exatamente. — Ela concordou, pousando sua cabeça novamente sobre o tórax dele.

Adam, no entanto, continuava com um semblante pensativo no rosto, como se quisesse dizer mais alguma coisa. Fernanda percebeu.

— O que foi, Adam?

— É que... — Ele começou, escolhendo as palavras — Bem, eu tenho uma confraternização para ir hoje à noite. É um evento de gala anual com os representantes do setor de transportes e logística da região de Belo Horizonte. Meu pai não perdia um.

A encarregada aquiesceu.

— E...?

— Os participantes costumam ir acompanhados. — Ele abriu um sorriso canastrão.

Fernanda entendeu o que ele queria e soergueu o corpo.

— Está me convidando para ir com você, senhor Peixoto? — Ela também sorriu, com ar travesso.

— Pode apostar que estou. — Ele devolveu.

Ela inclinou a cabeça de lado e torceu a boca, fazendo-se de esnobe.

— Eu tenho que ver se eu posso. Minha agenda de sábado à noite costuma ser bastante cheia.

Apesar da expressão divertida, o olhar que Adam lhe dedicava era intenso.

— Sério, eu queria muito que você fosse.

Ela deu uma risadinha. Segurando o queixo dele com dois dedos e mordendo o lábio inferior enquanto aproximava o rosto dele do seu, ela simplesmente sussurrou:

— Eu adoraria ir.

Sem dar tempo para que ela reagisse, Adam adiantou-se e beijou de leve os lábios dela.

— Que bom. — Ele finalizou, e voltaram a prestar atenção no filme.

Naquele momento, um trovão ecoou nas nuvens e estremeceu as paredes. Olhando pela janela, perceberam que o céu, que permanecera o dia inteiro nublado, agora ameaçava se derramar numa chuva pesada.

— Agora, sim. Adoro chuva. — Adam comentou, afagando o braço de Fernanda — É bom para dormir abraçadinho.

— Você acha? — Ela fez cara de menina travessa novamente — Porque eu tenho uma idéia melhor.

Adam corrigiu sua postura no sofá, intrigado e curioso.

— Que seria...?

Fernanda olhou para o relógio na estante, que marcava quatro horas da tarde. Ela deixou sua mão descer suavemente pela camisa do gerente até pousar sobre a borda elástica da cueca boxer que ele usava. Puxando levemente o tecido vermelho para baixo, ela perguntou:

— Acho que temos tempo suficiente para você descobrir. À que horas é o evento?

— Dez. — Adam respondeu, animando-se e encarando-a de forma desejosa.

E então, Fernanda finalizou com uma única pergunta:

— Aqui ou no quarto?

 

o—o—o

 

Já era noite quando o celular do detetive Guilherme tocou. Ele havia acabado de sair do banho e estava assistindo ao telejornal Cidade Alerta, na Rede Record, enquanto aguardava sua esposa terminar de preparar o jantar. Ao terceiro toque do aparelho, ele atendeu.

— Guilherme.

— Boa noite, detetive. É o Diego. — Era o médico-legista — Você pode falar agora?

O detetive sentou-se corretamente no sofá.

— Pode falar, Diego.

— Levantei aquelas informações que você me pediu mais cedo. — O legista informou — Em nenhum dos laudos finalizados até o momento foi citado um Ford Landau cor-de-vinho.

Guilherme deixou escapar um suspiro.

— Sério?

— Sim. — O outro confirmou, e seu tom de voz adquiriu vivacidade — No entanto, me deparei com duas situações interessantes.

— Quais? — O detetive, instigado.

— Por curiosidade, consultei também os laudos ainda em aberto, de investigações que ainda não foram finalizadas, e dois deles me chamaram a atenção. Nenhum deles cita um Landau, mas ambos citam o mesmo tom de cor-de-vinho.

Guilherme não soube interpretar a informação.

— Continue.

— O primeiro laudo é sobre a morte de um rapaz chamado Ramon Almeida. Há alguns dias o corpo dele foi encontrado numa rua escura do bairro Cinco, em Contagem. Ele havia sido prensado por um veículo contra um muro e teve o corpo esmagado da cintura para baixo e o pescoço quebrado.

Vendo sua esposa colocar seu prato de comida sobre a mesinha de centro, Guilherme sentiu seu estômago embrulhar devido aos detalhes passados pelo legista.

— E o que mais?

— Bom... — Ele ouviu Diego folheando algo do outro lado da linha – Não havia câmeras de segurança nem nada do tipo próximo ao local onde encontraram o corpo, então não foi possível determinar a hora exata da morte e nem qual veículo foi utilizado. Mas quando levaram o corpo dele para o IML, encontraram traços de tinta de cor bordô engastados na pele dele.

Imediatamente, a frase que um dos peritos havia dito ao detetive naquela manhã ecoou em sua mente.

 “Você sabe com que força um carro tem de abalroar o outro para que engaste tinta na lataria?

Com uma força incrível, ele sabia.

— O outro caso se refere à morte de outro rapaz, Arthur Vinícius Monteiro. — O legista prosseguiu — Ele foi encontrado morto por um guarda que fazia uma ronda pelo parque estadual da Serra do Rola Moça. De alguma forma, ele teve seu corpo prensado contra o chão, como se algo extremamente pesado tivesse caído sobre ele.

— Como um carro. — Guilherme comentou involuntariamente.

— Sim. Pelas marcas de graxa e fuligem na cabeça e nos braços dele, acredita-se que ele tenha sido, de fato, atropelado por um veículo grande.

— Ok, e onde entra o cor-de-vinho nessa história?

— No carro dele. — Diego respondeu — Ele havia ido ao local em um Fusca marrom, que foi encontrado totalmente destruído às margens da via. Ele também parece ter sido atingido na lateral por um veículo grande.

— Deixe-me adivinhar. — O detetive emendou, inclinando-se para frente e apoiando os cotovelos nos joelhos — A equipe de perícia encontrou tinta engastada na lataria.

— Tinta de cor bordô. Isso aí, garoto. — O legista finalizou.

Guilherme ajeitou-se no sofá, incomodado. Havia algo podre nisso tudo, ele podia sentir.

— Bem... Deixei uma cópia desses laudos na sua mesa para você dar uma olhada na segunda-feira. — Diego informou — Espero ter ajudado.

— Ajudou sim, Diego. Muito obrigado.

— Por nada. Bom fim de semana. — A ligação foi desligada.

O detetive jogou o celular de volta sobre a mesinha de centro e ficou encarando o vazio à sua frente, pensativo. Sua esposa, que jantava e prestava atenção ao telejornal, simplesmente perguntou:

— Caso novo?

— Sim. — Ele respondeu, com um tom de voz pastoso.

— Coisa pesada?

Guilherme respirou fundo antes de responder. Ainda não tinha nada, então não tinha nada a dizer. Sua esposa, entretanto, sempre havia sido sua confidente e, como ele mesmo gostava de dizer, sua “psicóloga pessoal”.

— Ainda não sei, meu amor. — Ele resolveu falar, mas continuava pensativo e com o olhar vago — É só um palpite, mas acredito que temos um serial killer à solta.

Ele iria verificar as informações fornecidas por Diego mais uma vez, obviamente, e puxaria também os históricos completos de Arthur e Ramon. No entanto, ele sabia, havia coincidências demais ali. Não se vê um carro de cor bordô todo dia. Menos ainda três casos de morte numa questão de menos de duas semanas envolvendo veículos de uma cor tão difícil de encontrar.

Guilherme iria levar essa hipótese adiante. E se ele não descobrisse um padrão que explicasse essas mortes, se esforçaria para descobrir sua motivação.


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