O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 35
Capítulo 34




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Então, era isso. Iriam morrer pelas mãos de alguém que era mesmo maluco.

Adam e Fernanda não esboçaram reação. Na verdade, já não pareciam capazes de esboçar mais nada. Pasmos como estavam, tudo que fizeram foi acompanhar o balanço do cano da arma que Bruno empunhava, uma imponente Glock automática preta com detalhes dourados no punho. Haviam se livrado do “Landau vermelho”, mas acabariam mesmo mortos. Lágrimas silenciosas rolaram pelas bochechas de Fernanda, e ela se achegou a Adam. Ele, por sua vez, não conseguiu fazer nada além de suspirar, transbordando de consternação.

Então, era isso.

Bruno percebeu a reação deles.

— O quê? Vocês acham mesmo que eu vou matá-los a tiros? — Ele balançou a arma no ar com o cano apontado para cima, num gesto negativo — Não sejam ridículos. Não sou tão covarde assim. Estou apenas cuidando para que ela não fique marcada. Sabem como é, ela me custou caro. — Ele referiu-se à arma, depondo-a sobre o capô do sedã onde estava recostado e começando a tirar sua jaqueta de couro — Se eu quisesse matá-los eu usaria um destes dois bebês aqui, como fiz com todos os outros. A diferença destes dois para o que a polícia apreendeu é o que tem aqui debaixo. — Ele bateu com a mão no capô do Landau, abrindo um sorriso maléfico e, ao mesmo tempo, orgulhoso — Motor Ford Coyote 5.0, vindo diretamente do Mustang. 412 cavalos de pura ignorância.

Adam balançou a cabeça de um lado para o outro em negativa, com os olhos vermelhos e marejados e a testa franzida em total indignação.

— Que absurdo. — Ele soltou, num tom baixo — Você acabou de dizer que fez essa palhaçada toda por causa da herança que você não recebeu. Mas quanto você gastou pra montar isso tudo? — Ele fez um gesto amplo, apontando os sedãs em volta.

Bruno abriu um sorrisinho ordinário e espalmou as mãos, dando de ombros num gesto de deboche.

— Como eu disse, o papai deixou meu futuro garantido. Não tanto quanto o seu, é claro, mas o suficiente para bancar minhas... excentricidades. — Ele sibilou entre os dentes — E você conhece o ditado. “Cada louco com sua mania”.

O gerente bufou, nervoso, mas não teve tempo de contra-argumentar. Bruno caminhou até meia distância do casal e parou, balançando os braços ao lado do corpo e girando o pescoço, como se relaxasse seus músculos.

— Eu só estou surpreso por vocês terem mesmo conseguido chegar até aqui. — Ele cerrou ligeiramente os olhos e olhou diretamente para Fernanda, que se arrepiou como se tivesse levado um choque — Quando te emprestei os rastreadores, eu não imaginei que você fosse mesmo capaz de conseguir usá-los. — Ele espalmou as mãos no ar outra vez — Sabe como é. Você é devagar, lerda, só sabe olhar o mundo girando à sua volta com cara de paisagem, tipo aquelas atrizes ruins de novela mexicana. Só sabe dar chilique e ficar com medinho. Eu fiquei muito surpreso por você ter tomado uma atitude. De verdade. Eu nunca imaginei que você pudesse...

O soco de Adam quase arrancou a mandíbula de Bruno. Movido por uma força inexplicável que explodira repentinamente dentro de si, o gerente avançou o espaço que o separava do gestor de frota em menos de um segundo e atingiu-o bem abaixo do olho esquerdo com toda a força que seu braço lhe permitiu. Por um instante ele se esqueceu de tudo. De todas as mortes horríveis, de todo o sofrimento a que havia sido submetido. De seu braço esquerdo machucado. Tudo que importava a Adam era pôr um ponto final naquilo. E isso significava pôr um ponto final... em Bruno. A começar por calá-lo.

O gestor de frota foi arrancado do chão com a força do golpe de Adam e voou alguns metros para trás, deslizando pelo chão de concreto até parar diante de um dos Landaus bordô. Fernanda, do outro lado, chegou a pensar que ele tinha sido desacordado pela força do soco do gerente. E, por um momento, ela desejou isso. Desejou muito. Desejou muito pois o sentimento de traição que a queimava por dentro era grande demais para ser expressado. Era uma mistura maquiavélica de indignação com revolta e uma pitada de algo inacreditável. Era algo tão irreal que ela não sabia nem interpretar aquela sensação.

Mas não. Bruno não foi desacordado. Foi atordoado, isso estava claro, mas apenas isso. Soerguendo o corpo com o auxílio das mãos e balançando a cabeça de um lado para o outro para desatordoá-la, soltou uma risada baixinha entre os dentes, como se esperasse por aquilo. Virou-se de banda para Adam e o encarou com um sorriso sinistro no rosto e um corte aberto na bochecha de onde aflorava sangue.

— Você bate bem, irmão. — Ele terminou de se pôr de pé — Mas não é o único que tem seus truques.

— Não adianta tentar nenhuma gracinha, Bruno. Eu chamei a polícia no momento em que pus os pés aqui. — O gerente emendou, abrindo os braços num gesto de obviedade — Não há mais nada que você possa fazer. Seu “plano” já era.

O gestor de frota deu uma risadinha e passou a língua pelos lábios.

— Veremos.

Dito isso, virou-se e caminhou até o Landau atrás de si e abriu a porta do motorista. Adam e Fernanda congelaram, já prevendo o que estava por vir. Bruno ligaria o sedã e avançaria com ele para cima deles, destruindo tudo à sua frente como um transatlântico desgovernado. O gerente recuou alguns passos, tateando às cegas o espaço atrás de si em busca de Fernanda. A encarregada percebeu e correu até ele, segurando-o pela mão e começando a puxá-lo para trás de outro dos sedãs para se protegerem. Um trovão explodiu no céu, sacudindo as estruturas do pequeno armazém mais uma vez, e então eles ouviram. Não o motor do Landau. Não uma sinfonia metálica de morte.

E, sim, uma música.

Um solo de um instrumento que não puderam distinguir se uma guitarra ou um teclado eletrônico. Um ritmo constante, pulsante, com um quê de energizante, que parecia carregar o ar de eletricidade estática. Uma bateria logo repicou algumas vezes ao fundo da música, e Bruno saiu do sedã. Ele havia ligado o rádio em um volume alto o bastante para se ouvir acima do som da chuva. Ele veio caminhando até o meio do galpão e parou, limpando o sangue no rosto e encarando Adam com firmeza.

Logo, uma enérgica voz masculina entoou com intensidade:

 

Empty spaces, what are we living for?

Abandoned places, I guess we know the score

On and on, does anybody know

What we are looking for?

 

The show must go on. Ícone do rock clássico do início dos anos 90. Mas não a incomparável versão original de Freddie Mercury ou o poderoso e emotivo cover mais recente de Celine Dion. Era uma versão de algum artista menos conhecido, provavelmente tirada de algum canal do Youtube, mas mesmo assim bastante intensa.

Os dedos de Bruno se esticaram e logo se fecharam sobre o punho, suas articulações esbranquiçando pela falta de circulação sanguínea. Seus braços estavam ligeiramente afastados do corpo, cuidadosamente retesados. Sua mandíbula estava firmemente fechada, os músculos saltados na base de seu maxilar. Seu queixo levemente abaixado e suas sobrancelhas provocantemente arqueadas. E, logo abaixo, seus olhos. Duros, frios, perfurantes como adagas, porém estranhamente convidativos.

Não podia estar mais claro. Ele estava pronto. Tudo aquilo teria um fim naquela noite. Adam, Fernanda e ele. Os três reunidos ali, naquele local isolado do resto do mundo, como uma dimensão paralela infernal.

A voz que provinha do rádio prosseguiu:

 

Another hero, another mindless crime

Behind the curtain in the pantomime

Hold the line

Does anybody want to take anymore?

 

  Adam percebeu a provocação do outro. Ele percebeu que Bruno queria aquilo. Que ele estava preparado para aquilo. Ou talvez não. Ele já não sabia mais em quê confiar. Tudo aquilo parecia uma fantasia sombria que girava incontrolavelmente dentro de algum caleidoscópio universal. Tudo parecia irreal, diáfano, saído de algum recanto desconhecido do purgatório.

Mas o olhar de Bruno era demais para ser ignorado. Era demoníaco, completamente insano, a personificação maligna de uma forte perturbação mental que alimentara um complexo plano para pôr fim à sua vida. Um convite à loucura. Um chamariz para uma luta ferrenha de desencargo, de descarrego, de autoafirmação. Não tinha como ignorar. Ele balançou a mão e soltou-se de Fernanda, avançando alguns passos para o meio do armazém também. A encarregada percebeu e disse alguma coisa com a voz embargada, tentando puxá-lo para trás novamente, mas ele se livrou dela com um gesto brusco. Ela deveria ficar fora de cena, pelo menos por enquanto.

Não havia mais Fernanda. Nem o caso do “Landau vermelho”. Nem o resto do mundo. Aquele momento se resumia a Adam e Bruno. Como dois oponentes do Velho Oeste. A eterna batalha clichê entre a emoção e a razão. Bem e mal. Yin e yang.

O refrão da música que vinha do Landau bordô ecoou como uma explosão sônica pelo local:

 

The show must go on

The show must go on, yeah

Inside my heart is breaking, my makeup may be flaking

But my smile still stays on

 

E quem avançou primeiro foi Adam. Suspirando uma única vez e esquecendo-se completamente de seu braço machucado e de todo o resto de sua vida, o gerente avançou de súbito para Bruno com o punho direito em riste. Suspirou e esvaziou a mente. Obrigou-se a se concentrar apenas no outro. Em seu olhar estranhamente intenso. E avançou.

No momento em que Adam flexionou os pés e moveu-se para frente, ele soube que aquilo não tinha mais volta. Aquilo era mais do que uma “lavação de roupa suja”. Mais do que “fazer justiça”. Aquilo era algo animalesco, intrínseco, algo mais antigo do que a própria humanidade. Apenas um sairia vivo dali, ele sabia. Mas aquele fato já não era perturbador. Pelo contrário, naquele momento era algo que o incentivava a prosseguir. E ele o fez.

Tudo pareceu entrar em câmera lenta, como se o espaço-tempo tivesse recebido uma injeção cavalar de adrenalina. Tudo pareceu diminuir a velocidade e adquirir mais intensidade, mais nitidez, mais clareza. Adam via Bruno cada vez mais próximo, porém chegar até ele parecia estar levando uma eternidade. Ele podia ver o sorriso se alargando no rosto do outro como algo saído de alguma fantasia psicodélica bizarra. O gestor de frota estava cada vez mais próximo, cada vez mais próximo. Tudo parecia certo. Adam o acertaria outra vez, com ainda mais força. Não tinha como errar. Ele estava cada vez mais próximo, mais próximo, até que... Adam passou por ele.

Não houve sequer tempo para vacilar. Em um segundo Bruno estava ali, estático, como que aguardando o golpe que o gerente vinha lhe dar, e no segundo seguinte já não estava mais. Antes mesmo de conseguir piscar os olhos e avaliar a situação, Adam foi brutalmente chutado nas costas e jogado contra o capô do Landau que estava diante de si.

De dentro do carro, a música seguia alta.

 

Whatever happens, I’ll leave it all to chance

Another heartache, another failed romance

On and on

Does anybody know what we are living for?

 

Bruno havia se esquivado. Rapidamente, como num passe de mágica. Havia gingado o corpo de lado com a precisão friamente calculada de um toureiro espanhol e, sem nem se virar de frente para Adam, golpeara o gerente no meio das omoplatas com um forte coice desferido com a perna esquerda.

Caído sobre a dianteira do sedã bordô, Adam não se deu sequer ao luxo de hesitar. Tomou fôlego rapidamente e pôs-se de pé, encarando Bruno outra vez, e começaram a caminhar lentamente em círculo, um de frente para o outro. O gerente retesou os braços e procurou trazer de volta à mente tudo que havia aprendido em suas lições de kung fu. Aquilo seria bem mais difícil do que ele imaginara. O gestor de frota, porém, permanecia com uma expressão cínica no rosto, como se pouco se preocupasse com aquela situação. Parecia cheio de si, confiante, totalmente ordinário.

De onde estava, mais ao canto, Fernanda se roía de ansiedade. Não podia fazer nada a não ser observar. Aquilo era um embate entre os homens, que demandava força física e agilidade, duas coisas que ela sabia que não tinha, mas isso não a incomodava. O que a perturbava era ter que ficar ali acuada, aguardando o desfecho daquele embate entre os dois.

Mas de súbito, uma luz brilhou em sua mente. Como um estalo. Ela havia jogado o rastreador contra o Landau. Ela havia o localizado. Ela havia ido até ali na cara e na coragem. Ela havia feito mais naquela história do que qualquer outro. E ela iria, sim, tomar uma atitude. Bruno e Adam estavam ocupados demais consigo mesmos, eles não a notariam. Havia algo que ela podia fazer. E respirando fundo e procurando manter a calma, abaixou-se por trás dos Galaxies que estavam mais próximos e esquivou-se para o fundo do armazém.

 

I guess I’m learning, I must be warmer now

I’ll soon be turning round the corner now

Outside the dawn is breaking

But inside in the dark I’m aching to be free

 

Contrariando o ritmo natural dos acontecimentos que se desenrolavam naquele local, a mente de Adam funcionava com calma. Um lembrete parecia brilhar em neon no fundo de seu cérebro, alertando-o que o golpe de Bruno havia sido muito bem executado. Ele também devia conhecer alguma arte marcial, senão não teria tido tanta confiança e frieza para fazer o que havia feito.

Bruno pareceu adivinhar seu pensamento.

— Como eu disse, irmão, você não é o único que tem seus truques. — Ele parou de caminhar, ficando em diagonal a Adam, dobrando ligeiramente os joelhos e levantando os antebraços até a altura do peito — Também sei dar uns tapas.

Adam levantou o queixo num gesto desafiador.

— Muay thai. — Ele concluiu, reconhecendo a postura do outro.

— E boxe também. — Bruno sibilou entre os dentes, num sorriso frio, enquanto alteava as sobrancelhas — Sabe como é. Nós, magrinhos, não temos muita força nos braços. Temos que treinar bem nossas esquivas e golpes de perna. Mas diz aí, vamos ficar aqui trocando figurinhas a noite toda ou vamos lutar?

 

The show must go on

The show must go on, yeah

Inside my heart is breaking, my makeup may be flaking

But my smile still stays on

 

Foi como apertar um gatilho.

Adam deixou o peso do corpo cair sobre as pernas e avançou outra vez. Desta vez, no entanto, não mirava os olhos de Bruno. Não encarava-o fixamente como da primeira vez. Em vez disso, alternava olhares entre seu rosto e suas pernas. E foi por isso que, um centésimo de segundo antes de chegar até Bruno, viu seus pés girando sobre si. Foi por isso que, antevendo seus movimentos, pôde encarar o gestor de frota sem dar a entender que já sabia o que ele iria fazer. E foi por isso que, a milímetros de atingi-lo, quando ele já começava a se esquivar novamente, Adam levantou seu braço esquerdo num movimento quase supersônico e atingiu-o no rosto novamente.

Bruno desequilibrou-se e caiu de costas no chão, com mais sangue aflorando do corte em sua bochecha. Sem dar a ele tempo para se recuperar, Adam se ajoelhou sobre suas pernas, prendendo-as com as suas próprias, e pôs-se a golpear-lhe o rosto. O gestor de frota, no entanto, não parecia se abalar com toda aquela pancadaria. Pelo contrário, parecia ficar cada vez mais enraivecido. Tateando às cegas à sua volta, encontrou um cano serrado de metal que outrora pertenceu ao escapamento de um dos Galaxies e acertou-o na cabeça de Adam.

O gerente caiu de lado apenas por tempo suficiente para que Bruno se colocasse de pé, mas o cenário não mudou. Levantando-se num impulso súbito, Adam agarrou o gestor de frota pela cintura e empurrou-o contra o Landau que estava às suas costas. Houve uma pancada seca, e toda a carroceria do sedã pareceu tremer. Os dois caíram no chão, atordoados, mas acabaram rolando para lados diferentes. Ambos se puseram de pé e voltaram a se encarar.

Do rosto de Bruno brotava sangue, mas Adam ainda não ostentava uma marca sequer. E isso pareceu estimular o gestor de frota. Passando a língua pelos lábios e retesando os joelhos novamente, ele acenou com as mãos para Adam, convidando-o a avançar outra vez. E o gerente logo o fez. Avançou para Bruno e intentou atingi-lo no rosto com socos, mas o gestor de frota se esquivou para os lados com precisão. E num segundo de distração, quando Adam tomava impulso para um novo golpe, Bruno atingiu-o no nariz com um jab direto. Um som horrível de algo se partindo se fez ouvir e o gerente recuou alguns passos, com o nariz visivelmente torto.

Bruno avançou outra vez, jogando-se contra Adam e empurrando-o contra uma das bancadas que ladeavam o armazém, fazendo-o bater de costas contra o móvel de metal. Adam gemeu entre os dentes, sentindo uma pontada lancinante de dor subindo-lhe pela espinha, mas reuniu força o suficiente para abaixar-se sobre Bruno e agarrá-lo pela cintura, levantando-o do chão e atirando-o como um saco de trapos sobre o capô do Galaxie mais próximo.

O rapaz quicou sobre a dianteira do sedã e caiu para o outro lado, sumindo de vista. Adam aproveitou essa brecha de poucos segundos para encher seus pulmões de ar e endireitar sua postura. Tateando as costas doloridas, olhou em volta à procura de Fernanda, mas ela não estava à vista. Ele apenas começou a abrir a boca para chamar por ela quando ouviu um som macabro de metal sendo arrastado pelo chão. Virou-se e viu Bruno contornando lentamente a traseira do Galaxie, novamente com aquele sorriso doentio no rosto e trazendo uma haste de ferro pontiaguda na mão direita. Segurava-a pela ponta, deixando que a outra extremidade tocasse o chão e produzisse aquele ruído frio.

 

My soul is painted like the wings of butterflies

Fairytales of yesterday will grow, but never die

I can fly, yay, my friends

 

O rapaz apenas suspirou e ajeitou a haste de ferro em sua mão, girando-a num gesto rápido e parando-a de forma brusca ao final da estrofe da música que tocava. E só então Adam percebeu. A canção que vinha do Landau bordô parecia motivar Bruno. Parecia energizá-lo, carregá-lo, como algum tipo de estímulo neural. Ele estava lutando conforme o ritmo da melodia crescia.

Bizarro. Excêntrico. Doentio.

Bruno sendo Bruno.

 

The show must go on, yeah

The show must go on

I’ll face it with a grin

I’m never giving in

On with the show

 

E quando a música explodiu num solo de guitarra, Bruno avançou outra vez, erguendo a barra de ferro acima da cabeça com ímpeto. Adam enrijeceu os braços e preparou-se para receber o golpe, mas ele não veio. Pelo menos não como ele esperava. Vindo de encontro a ele com velocidade, Bruno cravou a haste metálica no chão e apoiou-se nela como um atleta de salto em distância. Levantando as duas pernas e mantendo-as unidas, atingiu Adam bem no peito. O gerente foi jogado para trás novamente, batendo outra vez contra a bancada atrás de si.

Pousando no chão com um gesto fluido, Bruno girou a barra de ferro na mão outra vez e investiu contra Adam novamente enquanto ele tentava se endireitar, tentando atingi-lo com um chute frontal, mas o gerente se esquivou de lado. O gestor de frota girou o corpo e atingiu o outro com um round kick no ombro direito, empurrando-o para frente e fazendo-o tropeçar.

Adam caiu ao chão bem diante da entrada do armazém, sentindo a chuva gelada fustigar-lhe o rosto. Os relâmpagos e trovões intermitentes já não eram ouvidos por ele. Apoiando-se de quatro sobre o pavimento, tudo que o gerente ouvia naquele momento era a música que vinha do Landau bordô. Porque o solo de guitarra já findava e, na sequência, viria a última estrofe. Bruno finalizaria aquilo à sua maneira bizarra e doentia quando a música acabasse. De um jeito ou de outro. Se ele vacilasse, Bruno poria um fim àquilo. Um fim nele. E ele não permitiria isso. Se adiantaria e contra-atacaria. Ele havia sido a vítima naquela história toda. Ele havia sido submetido a um trauma gigantesco, ele estava sendo incriminado por assassinatos que não cometera. Ele decidiria como aquilo acabaria.

Além disso, ainda havia Fernanda. Ela estava por ali, provavelmente escondida e esperando que aquilo acabasse. Ela havia demonstrado coragem e intrepidez ao seguir os rastros do “Landau vermelho”. Ela havia se colocado em perigo por ele. E ele não permitiria que algo acontecesse a ela. Bufando e retesando os dedos, se pôs de pé e virou-se. Bruno já estava posicionado bem atrás dele, e logo tentou atingi-lo com outro soco no rosto.

Adam se esquivou. O gestor de frota girou sobre si e tentou acertar o gerente com a haste metálica, mas ele desviou outra vez. Ainda aproveitando a inércia do próprio corpo, Bruno se virou e atingiu Adam com um forte spining back kick, mas o gerente cruzou os braços diante do tórax e absorveu o impacto apenas para se aproximar o suficiente do outro e atingi-lo com uma cabeçada no rosto.

Bruno vacilou e cambaleou para trás, largando a haste de ferro e levando a mão ao nariz, de onde fluía mais sangue. Adam aproveitou o momento, atingindo-lhe na face novamente com quatro socos cruzados e finalizando com uma poderosa cotovelada lateral, jogando-o ao chão. O gestor de frota virou-se e arfou algumas vezes, deixando os braços caírem desajeitadamente ao lado do corpo. Semicerrou os olhos e encarou o teto, parecendo resvalar para a inconsciência. Os últimos golpes de Adam haviam sido como bigornas acertando-lhe o rosto.

O gerente observou o outro por um breve momento, respirando pesadamente, mas logo empertigou-se.

— Acabou, Bruno. — Ele sentenciou, ofegante — Acabou.

 

Uh, I’ll top the bill, I’ll overkill

I have to find a way to carry on

 

Com um sentimento estranho engolfando-lhe a garganta, Adam suspirou e se virou para o interior do armazém. Precisava encontrar Fernanda e sair logo dali. Precisavam se afastar e aguardar a chegada de Guilherme e da polícia. Adam havia feito bem em enviar sua localização para o detetive por Whatsapp. Tudo que precisava fazer agora era sair dali e deixar que as autoridades competentes cuidassem do resto. Tudo que ele precisava fazer era sair dali e seguir adiante com sua vida ao lado de Fernanda.

Ligeiramente cambaleante, ele virou o rosto e viu o Landau bordô com a porta do motorista semiaberta, cujo rádio ainda bradava:

 

On with the show...

On with...

The show, oh oh

 

O alarme na mente de Adam soou um segundo tarde demais. E aquele segundo fez toda a diferença. Aquele segundo jogou por terra todos aqueles pensamentos que passaram por sua cabeça momentos antes. Aquele fatídico segundo.

Porque a música ainda não havia acabado. E ele soube o que aquilo significava.

A pontiaguda haste metálica entrou pela base de suas costas, bem abaixo de seu rim esquerdo. Por um estranho instante seu cérebro processou o fato de que ele não sentira dor, apenas um forte e repentino impacto desferido contra seu corpo. Uma segunda estocada enterrou a haste ainda mais em seu corpo, e ele levou as mãos às costas, tocando o metal frio e as mãos rígidas de Bruno.

O gestor de frota se colocava de pé com dificuldade, o rosto parcialmente desfigurado e banhado em seu próprio sangue, mas suas mãos eram firmes como se fossem feitas de mármore. Com um gesto fluido, aproximou-se de Adam e colou seu corpo ao dele, abraçando-lhe por trás como uma cobra e aproximando sua boca do ouvido do outro.

— Realmente, irmão. Acabou. — Sua voz sussurrada saiu com um tom afogueado, mas gélido — Com os cumprimentos de Bruno Peixoto.

E forçou os braços para frente, fazendo a comprida peça metálica brotar no meio do abdômen de Adam como algum tipo de verme demoníaco. Não houve tempo para mais nada. Não houve troca de olhares. Não houve frases de efeito. Não houve lição de moral.

Não houve despedidas.

Caindo de joelhos, tudo que Adam fez foi segurar a ponta da haste de ferro que atravessava-lhe o corpo com a mão direita, com a mais pura e genuína incredulidade estampada no rosto, e tombar de lado. E só então, enquanto Bruno fechava os punhos em riste e erguia-os a meia-altura do chão num gesto intenso, o rádio do Landau entoou seu epitáfio:

 

The show must go on...

 

A música chegou ao fim.


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