O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 34
Capítulo 33




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A insanidade possui brilho próprio. Um brilho alvo, um fulgor pálido que reflete como o cintilar de um diamante intangível. Como pequeninos raios de luminescência branca, fugazes, efêmeros, que atravessavam algum prisma invisível. Como pequenas porções de realidade fátua. Como uma imagem luminosa distorcida refletida no fundo de um espelho perfeito.

Era algo inexplicável às palavras. Algo sem sinônimo. Avesso à natureza humana.

Algo que refletia perfeitamente nos olhos de Bruno.

Apesar da chuva fria que despencava aos borbotões e do vento impetuoso que ameaçava carregar tudo ao redor, parecia haver descido sobre aquele local um silêncio lúgubre e palpável, como se todo o Universo tivesse subitamente sido colocado dentro de uma enorme bolha de vácuo gelado. Os relâmpagos ainda tremeluziam com fúria entre as nuvens e os trovões que explodiam no céu ainda estremeciam a terra como toneladas de dinamite cósmica sendo detonadas pelo Criador, mas pareciam não afetar em nada o cenário descortinado diante daquele pequeno armazém.

Porque, é claro, era um cenário inconcebível. Irreal. Impossível. Doentio. Tirado do mais icônico filme ou livro de suspense policial. Uma peça teatral absurda, saída dos círculos mais profundos do Inferno. A tempestade parecia ter se transformado numa trilha sonora sombria, o armazém se tornara um palco macabro mal iluminado e os veículos ali presentes eram espectadores mórbidos, aguardando um desfecho para tudo aquilo.

Imóveis, Adam e Fernanda pareciam ter entrado em estado catatônico. A realidade daquela situação era pesada demais para ser absorvida. Era como tentar armazenar toda a energia gerada pela hidrelétrica de Itaipu numa simples bateria de 12 volts. Não tinha como aquilo ser processado por seus cérebros. Porque era Bruno quem estava diante deles. Aquele vulto negro sem rosto, aquela jaqueta de couro, aquelas yellow boots, a personificação de todo o terror que o casal havia enfrentado até então. Sentiam como se seus peitos tivessem se petrificado de dentro para fora. Faltou-lhes ar nos pulmões. Suas gargantas se embaraçaram. Seus olhos saltaram nas órbitas. Eram como duas estátuas de mármore, duas lápides frias esculpidas com brutalidade.

Porque Bruno era o motorista do “Landau vermelho”.

Mais além, o rapaz ostentava uma expressão mista em seu rosto. Ironia, desaforo, desprezo, soberba, era possível ler de tudo um pouco em sua face. À luz dos relâmpagos, porém, tudo possuía um tom espectral. Toda e qualquer expressão vinda dele adquiria um ar diabólico. De pé naquele pátio, diante daquele Fiat Uno negro e iluminado alternadamente por uma mistura de luzes prata e púrpura que provinha das descargas elétricas, parecia um ser maligno extradimensional.

Franzindo o queixo e estendendo os braços, ele se adiantou mais um pouco e anunciou:

— Parece que descobriram minha humilde oficina.

Um raio ziguezagueou no céu e atingiu o chão em algum lugar próximo. A explosão sonora reverberou pelo local e tirou Adam e Fernanda do transe estático em que haviam entrado, mas Bruno nem se moveu. Quando a luz branca do relâmpago se desvaneceu, o casal voltou a fitar o gestor de frota da Transportes Peixoto. E só então Fernanda se permitiu olhá-lo melhor.

Era realmente Bruno quem estava ali, não havia a menor dúvida. Mas, ao mesmo tempo, não parecia ele. Seu cabelo, usualmente bagunçado, estava penteado com gel num topete alto e quadrado bastante formal. Suas sobrancelhas, quase sempre arqueadas para baixo de forma suave, estavam mais angulosas, deixando-o com um olhar mais severo. Sua postura parecia mais ereta, com o peito mais aberto e largo, e as roupas que ele usava o deixavam com um ar mais aristocrático. Ele parecia, Fernanda podia jurar, maior e mais forte do que de costume.

Ele até se parecia um pouco com...

— Com o Adam. — Ele disse, interrompendo os pensamentos dela, e ela se deu conta de que ele percebera que ela o estudava — Eu sei.

Ela apenas assentiu. Porque sim, era exatamente disso que ela havia se dado conta. As mesmas sobrancelhas angulosas, o mesmo olhar intenso. O canto da mandíbula retesado de forma idêntica. As veias ligeiramente saltadas na parte posterior das mãos. Como estava, Bruno parecia vagamente uma versão sem barba, mais magra e jovem de Adam. O gerente permaneceu calado, ainda encarando o outro, mas recuou um passo ao também perceber isto.

— Como...?

Foi um sussurro rouco, seco. Foi tudo que Fernanda conseguiu pôr para fora. Os sentimentos confusos e terríveis que a assolavam haviam se acumulado em sua garganta e a deixado seca como um osso jogado ao sol. Angústia, tristeza, espanto... traição. Seus olhos queimavam, sua cabeça latejava com violência e tudo que ela queria era se beliscar com força até acordar, pois tinha certeza que estava dentro de algum pesadelo bizarro.

Bruno alteou uma sobrancelha e sorriu de lado. Enfiou as mãos nos bolsos e aproximou-se lentamente do armazém, ao mesmo passo que Adam e Fernanda trataram de recuar para trás do Galaxie verde, andando de costas. O gestor de frota passou lentamente em volta dos sedãs e caminhou até o fundo do pequeno galpão, mexendo em alguns papéis em uma das bancadas, depois virou-se e caminhou de volta até o casal, trazendo algo nas mãos.

— Conhecem aquele ditado que diz que “a vida é injusta”? — Ele perguntou, parando rente ao capô do Galaxie, e seu semblante pareceu esfriar — Pois bem. Esse ditado tem sido a minha realidade de vida há muito tempo. — Ele inclinou a cabeça de lado e jogou algo sobre o capô do sedã verde.

Adam e Fernanda se abaixaram para ver o que Bruno havia jogado sobre o capô do Galaxie e notaram um envelope pardo. O rapaz fez um gesto de mãos indicando-o.

— Podem olhar. — Ele enfiou as mãos nos bolsos de novo, dando de ombros com ar desinteressado — Algumas das respostas que vocês querem estão bem aí.

O gerente esticou o braço e pegou o envelope, receoso. Abriu-o e tirou um maço de papéis amarelados, pondo-se imediatamente a ler. Não demorou muito para que seu queixo se entreabrisse numa expressão de legítimo espanto.

Alheia ao namorado, Fernanda encarava Bruno.

— Então... era você? — Ela conseguiu perguntar enquanto lágrimas quentes brotavam em seus olhos e seu queixo tremia descontroladamente, fazendo sua voz adquirir um tom fino e nervoso — O tempo todo era você?! Todas aquelas mortes...

— Cada uma delas. — Ele respondeu num sibilo frio, estreitando os olhos.

A encarregada fez um gesto negativo com a cabeça enquanto duas lágrimas rolavam por suas bochechas, como se ela tentasse negar a realidade. Aquilo era cruel demais para ser aceito. Torrentes de emoções conflitantes vieram à tona e faziam seu psicológico ferver como um poço de lava, mas ao mesmo tempo a enregelavam como o inverno da Sibéria. Faziam-na querer gritar até romper as cordas vocais, mas ao mesmo tempo se embolavam em sua garganta e deixavam-na muda. Faziam-na querer tomar alguma atitude violenta, mas ao mesmo tempo deixavam-na travada no lugar. Porque Bruno convivia com ela há anos. Era seu amigo, seu confidente. E era ele quem havia estado por trás do volante daquele Landau maldito o tempo todo. Ele havia cometido todos aqueles assassinatos, havia jogado toda a suspeita em cima de Adam. Ele havia tentado matá-la.

Era uma confusão mórbida.

Ao lado de Fernanda, Adam deixou escapar um suspiro alto, ainda mais surpreso com o que lia, trazendo o documento que lia para mais perto do rosto para enxergar melhor. Cada palavra escrita naqueles papéis era como uma tapa brutal em seu rosto, e todo seu corpo parecia tremer. Dava para ver as veias em suas mãos e pescoço se retesando pela aflição.

A encarregada ainda olhava para Bruno com uma expressão indefinida que beirava o asco.

— Por quê?! — Foi um grito. Estridente. Revoltado.

Ela estava se esforçando para ordenar os pensamentos. Dar um norte a toda a confusão que fervilhava dentro de sua cabeça. No entanto, a soma de todo aquele terror levava a uma única e cruel realidade: Bruno a havia traído. Ela havia confiado nele, e ele retribuíra com traição. Porque era ele quem estava por trás de tudo, afinal. E tudo que ela pôde fazer naquele momento foi gritar, soltar um questionamento indignado e agudo que quase lhe explodiu a garganta.

O grito de Fernanda veio seguido pelo som dos papéis caindo de volta sobre o capô do Ford Galaxie com um baque seco. As folhas amarelas esvoaçaram quando caíram das mãos de Adam, e em seu rosto não havia nada além da mais pura surpresa. Ele encarou Bruno e abriu a boca, mas permaneceu em silêncio. O gestor de frota sorriu de lado mais uma vez, e em seus olhos cintilou novamente aquele brilho insano que o casal havia visto momentos antes. Toda a sua expressão corporal tinha um quê de Coringa, algo bestial e jocoso. Agora, além de tudo o que já estava sentindo, Fernanda sentiu medo. Ao seu lado, Adam permanecia inerte como uma pedra.

— Talvez seu namorado possa te responder. — Bruno disse, bem devagar, enquanto recostava o corpo contra o para-lama do Galaxie à sua frente.

Fernanda o fitou por mais alguns instantes com total estranheza, ainda sem conseguir ordenar tudo o que se passava por sua mente e sem coragem de se aproximar dele, mas acabou se virando para encarar Adam.

— O que isso quer dizer? — Ela indagou.

O gerente não conseguiu responder. Estava pálido, como se sua pressão tivesse subitamente despencado. Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça quase imperceptivelmente de um lado para o outro.

Fernanda quase o estapeou.

— Adam!

— Ele é meu irmão.

Foi um murmúrio quase inaudível.

A encarregada vacilou, pensando não ter ouvido direito.

Como é?

O gerente não conseguiu responder. Olhava nos olhos de Bruno com intensidade, e parecia não saber como interpretar o que havia acabado de ler naqueles papéis. Sem paciência, Fernanda reuniu precariamente algumas folhas sobre o capô do Galaxie e pôs-se a lê-las, mas Bruno lhe poupou tempo.

— Você não entendeu errado, Fernanda. — Ele disse num tom comedido, apoiando as duas mãos sobre o capô do sedã — Adam e eu somos irmãos.

Um trovão sacudiu as paredes do pequeno armazém e de alguma forma pareceu tornar aquele ambiente ainda mais gelado. A encarregada se virou para Bruno novamente com uma expressão de interrogação, mas também percebeu que sua garganta não conseguia formular palavras. Queria fazer qualquer coisa, qualquer coisa para acordar. Aquilo com certeza era algum pesadelo psicodélico e terrível.

O gestor de frota se permitiu mais um sorriso, este com ar de vitória.

— Sabe o que isso aqui está parecendo? — Ele fez um movimento circular com a mão direita, indicando os três – Aquela cena do filme Kingsman, onde o Samuel L. Jackson diz para o Colin Firth que “Agora vou contar todo o meu plano e achar uma forma absurda de te matar, e você vai achar uma forma ainda mais absurda de escapar”. — Ele deu uma risadinha — Mas depois ele diz “Só que não é esse tipo de filme” e mata o Colin Firth.

Ele se pôs de pé e levou as mãos às costas, como se corrigisse a postura. Fernanda o observava com os olhos semicerrados, ainda tentando entender, e Adam permanecia imóvel em total choque, um tanto surpreso por ouvir o outro fazer referência àquele filme que ele tanto gostava. Bruno começou a contornar o Galaxie verde e ir em direção aos dois sedãs bordô do outro lado do armazém.

— É estranho como sempre acabamos contando nossas intenções quando somos descobertos, não acham? — Ele soltou — Sempre que planejamos algo ruim e alguém nos pega no flagra, mesmo não querendo, sempre acabamos revelando o motivo por trás daquilo. — Ele fez um movimento negativo com a cabeça e franziu os beiços — Sei lá, deve ser algo inerente à natureza do ser humano. Algo automático. — Ele chegou até os dois Landaus e se virou — Mas é isso mesmo, Fernanda. O Adam e eu somos irmãos.

O primeiro a reagir foi Adam. A tremedeira já havia se apossado dele, e ele não conseguiu reprimir um engasgo aquoso. Seus olhos marejaram e transbordaram de lágrimas, e ele parecia de repente à beira de um ataque nervoso. Abriu a boca e conseguiu balbuciar:

— Eu... tenho outro irmão?

Fernanda se virou para olhar o namorado, surpresa com a reação dele. Esperava ver indignação, ódio, repulsa ou qualquer outra coisa do tipo estampada em seu rosto, mas jamais emoção. Adam parecia emocionado com aquela descoberta, e ela não poderia ficar mais indignada com isso. Virou-se para Bruno pronta para protestar, mas ele prosseguiu com sua explicação.

— O papai era bom em fazer filhos. Ah, claro, e com “papai” eu quero dizer o senhor Antônio. — Ele disse, num tom ordinário, como se falasse com uma criança — Mas é isso. Além do Adam e do Alan, o papai teve mais dois filhos. Meu irmão Bryan e eu. — Ele se virou e caminhou em volta dos dois sedãs bordô, dirigindo sua narrativa para Adam — Nós viemos alguns anos depois de vocês. Papai conheceu minha mãe num evento em BH e começaram a se encontrar no sigilo, e em pouco tempo veio o Bryan. Você e o Alan deviam ter quase dois anos. — Ele deu de ombros — Algum tempo depois, foi a minha vez. Você e o Alan já tinham quase cinco.

Bruno virou o corpo completamente e recostou contra um dos Landaus, apoiando as duas mãos na lataria como se o carro fosse uma extensão sua. Como se pudesse se fundir com ele. Ele ergueu os olhos e encarou Adam.

— Mas nós dois sabemos o quanto papai era discreto com sua vida particular, não é? Ele nunca iria deixar que algo do tipo vazasse e prejudicasse seus negócios. — Ele abriu um sorriso estreito como o de uma cobra, mas seus olhos eram duas geleiras — Papai prometeu para minha mãe que o Bryan e eu teríamos um bom futuro, contanto que ela não tornasse público o relacionamento dos dois. E ela aceitou. Papai fez um acordo extrajudicial para pagamento de pensão e garantiu que estudássemos em boas escolas, e até pagou alguns cursos complementares para nós dois. Ele sempre se certificou que recebêssemos presentes em nossos aniversários e no Natal, mas... era só isso. Não ligava, não nos visitava. Ele não era um pai presente.

Bruno fez uma pausa para que Adam e Fernanda absorvessem aquilo, mas os dois apenas o encaravam com expressão vazia. Ele revirou os olhos e prosseguiu, ainda dirigindo-se ao gerente.

— Quando o Alan morreu, a situação mudou piorou ainda mais. Papai já não era mais o mesmo. Parou de nos dar presentes, começou a atrasar alguns pagamentos de pensão, mas minha mãe nunca deu muita importância para aquilo. Ela tinha o emprego dela e ganhava o suficiente para nos sustentar, mas ela gostava do nosso pai. Alguns anos se passaram até que ela ligou para ele para perguntar o que estava acontecendo, e acabei ouvindo os dois conversando pelo telefone. — Ele desviou os olhos — Papai contou sobre você. Que você não estava sumido, mas internado nos Estados Unidos. E o quanto aquilo o afetava. Ele sentia como se tivesse perdido os dois filhos.

Adam recuou um passo, vendo claramente a imagem de seu pai em sua mente. Sentiu-se subitamente aflito ao imaginá-lo compartilhando aquilo com alguém, pois, apesar de conversar com seu pai por telefone quase todos os dias, nunca havia parado para pensar sobre o impacto que sua internação havia tido na vida dele. E agora, após tanto tempo e seu pai já haver falecido, aquilo adquiria um peso terrível.

— Foi nesse dia que sua mãe descobriu sobre nós. Ela ouviu papai ao telefone e o confrontou, e ele acabou contando a verdade. — Bruno prosseguiu, olhando novamente nos olhos de Adam — E ela fez o que fez.

O gerente recuou outro passo, sentindo como se seus pulmões estivessem a um passo de se romper. Levou a mão ao peito, como se pudesse abri-lo para ventilar melhor suas vias respiratórias, mas tudo que pôde sentir foi seu coração latejando como uma britadeira.

Então sua mãe não havia se matado apenas pela depressão. Houvera outro fator além disso.

— E eu quero dizer, Adam, que eu realmente sinto muito por isso. — Bruno disse, cruzando os braços — Bryan e eu compreendíamos a situação de nosso pai e nunca passou por nossas cabeças trazer algum tipo de transtorno para sua família. Ficamos muito chateados quando soubemos de sua mãe.

E a reação inesperada veio de Fernanda.

— Ora, seu... Canalha! — Ela berrou, com o rosto vermelho e os olhos ardendo em fúria e indignação — Hipócrita! Como pode falar uma coisa dessas, seu filho da puta? Olha o que você fez com a vida do Adam! Com as nossas vidas! — Ela começou a chorar, possessa de raiva — Como pode dizer que não queria “causar transtorno”?

A expressão de Bruno endureceu, e ele até pareceu crescer alguns centímetros. Suas sobrancelhas arquearam-se nas pontas e pareceram formar a imagem de dois chifres pontiagudos.

— Porque minha vida feliz acabou aí, Fernanda. Quando a mãe do seu namorado morreu. — O tom de voz dele saiu carregado com algo intangível, algum tipo de veneno, e ele se virou para o gerente outra vez — Daí em diante, papai nunca mais teve nenhum tipo de contato com a gente além da pensão. Nem quando... quando... — Sua voz falhou.

E para a surpresa de Adam e Fernanda, Bruno chorou. Sua testa franziu com rispidez e ele apertou os olhos com força, como se lutasse consigo mesmo para segurar as lágrimas.

Mas ele falhou. E aquilo pareceu irritá-lo.

— Nem quando o Bryan morreu. — Ele finalizou o que estava dizendo.

E foi como se houvesse desferido uma pancada brutal nos rostos do casal. Uma pancada seca, impiedosa, que roubou-lhes o ar. Mas ele não deu tempo para que eles digerissem aquela informação. Não estava com paciência para misericórdia. Levantou os olhos marejados e prosseguiu.

— Pois é, Adam. Você não é o único que perdeu o irmão que amava. — Seu tom de voz era de desprezo, malicioso — Você e sua família, apesar de tudo, puderam velar o Alan. Puderam fazer todo o “ritual de passagem”, puderam se despedir dele apropriadamente. Mas eu? — Ele deu uma risada nervosa — Deus não foi tão bonzinho comigo.

Ele desencostou-se do Landau e começou a caminhar na direção do casal outra vez.

— Nós estávamos voltando de uma viagem ao Rio de Janeiro quando o ônibus em que estávamos rodou na pista molhada e caiu de uma ponte. Despencamos dentro de um rio. — Ele foi diminuindo o tom de voz aos poucos, e aquilo colaborou apenas para atormentar ainda mais Adam e Fernanda — E a última coisa que me lembro do meu irmão é de vê-lo soltando meu cinto de segurança para que eu pudesse sair por uma janela quebrada enquanto ele ainda estava preso ao banco. — Ele aproximava-se com passos cadenciados, e Fernanda tateou em volta em busca da mão de Adam e segurou-a — Nunca encontraram o corpo dele. Nem quando tiraram o ônibus do fundo do rio, nem quando enviaram mergulhadores para fazer buscas. Nunca.

Outro relâmpago espocou nas nuvens, e o trovão balançou as estruturas do galpão mais uma vez. O volume de chuva que caía pareceu aumentar ainda mais, assim como o frio. De repente, tudo parecia mais diáfano, mais fantasmagórico, mais funesto. Sem compromisso com a realidade.

Mas Fernanda conseguiu reagir. Conseguiu vencer a inércia de toda aquela avalanche de sentimentos e esboçar reação, pois, apesar de tudo, nada daquilo a atingia diretamente. Adiantando-se e parando junto ao para-choque do Galaxie verde, retesou as mãos junto ao corpo num gesto ofensivo.

— Então é por isso? Por isso que você está tentando prejudicar o Adam? — Ela gritou, histérica, ainda sem saber ao certo o que queria dizer, mas com toda a sua linguagem corporal denotando que ela partiria para cima de Bruno assim que pudesse — Porque você não teve a chance de se despedir do seu irmão? Puta que pariu! Você não tem cérebro? Vocês são irmãos! Você já perdeu o Bryan, ele já perdeu o Alan, e agora você quer matá-lo também? — Fernanda apontou para Adam com um gesto — Qual é o seu problema?

Bruno riu. Uma risada natural, aguda, doentia, e outra vez viu-se em seus olhos aquele brilho insano.

— Ah, Fernanda... Ser lerda é mesmo o seu dom. — Ele cruzou os braços e encarou-a, alteando uma sobrancelha — Você acha mesmo que eu me daria a todo este trabalho apenas por isso? Tsc, tsc. Você precisa ser mais esperta.

— O que você quer, afinal? — A voz de Adam se fez ouvir, num tom de lamúria.

Se viraram e viram o gerente recostado contra o Galaxie verde, encarando Bruno com uma expressão triste.

— Não é lerdeza da Fernanda fazer essa pergunta, não. Porque eu também quero saber. — Ele emendou, recolhendo o maço de papéis de cima do capô do sedã e arremessando-o na direção do outro — Nós somos irmãos, Bruno. Se você tinha um problema com meu pai, podia ao menos ter tentado conversar comigo. Mas nããão. Você preferiu bancar o louco e sair por aí matando os outros para me incriminar. — Percebia-se que a tristeza de Adam dava lugar ao rancor — Então nos conte. Qual é a sua real motivação?

O gestor de frota inclinou a cabeça de lado e levou as mãos à cintura.

— Adam, Adam, Adam... Talvez seja difícil para você compreender minhas razões, já que você sempre teve tudo. — Ele arfou sarcasticamente — Mas você não prestou atenção na parte em que eu disse que papai se limitou apenas a pagar minha pensão.

— E daí? — Adam corrigiu sua postura, secando os olhos — Era a obrigação dele.

— Concordo. — Bruno assentiu — Realmente, era a obrigação dele. — Ele deu mais dois passos em direção ao casal — Mas e quanto ao testamento dele?

— O que é que tem? — O gerente avançou um passo também, parando ao lado de Fernanda.

— Você o leu? — Bruno, com ar jocoso.

— Sim.

— Então não leu direito. — Ele ergueu o queixo num gesto de desafio — Senão já teria sacado.

Adam devolveu apenas com um erguer de sobrancelhas. Bruno percebeu e riu, baixando a cabeça e balançando-a de um lado para o outro.

— Eu não estou no testamento. Quando pedi ao papai que me arrumasse um emprego, ele me colocou como gestor de frota na transportadora, mas fez o favor de me informar que eu não seria seu herdeiro por direito. — Ele enfiou as mãos nos bolsos, sua voz denotando nervosismo novamente — Somos irmãos mesmo, Adam. Filhos do mesmo pai. A diferença é que você herdou um patrimônio de centenas de milhões sozinho, e para mim ele não deixou nada. Nem mesmo o reconhecimento como filho. Então talvez essa seja a minha motivação. — Ele estreitou os olhos — Ambição por compensação.

Fernanda gargalhou. Sem conseguir se conter, deixou escapar uma risada nervosa, histérica, detestável.

— É sempre assim! O dinheiro tem que estar envolvido! — Ela disse, fazendo um gesto vago e inquieto com mãos — É sempre pelo dinheiro! Não existe nada mais clichê no mundo! Dinheiro, dinheiro, dinheiro! Um prejudicando o outro para ver quem fica com mais dinheiro!  — Ela se virou para Bruno — E prejudicar o Adam não seria muito difícil, não é? Ele já tinha o nome citado no caso da morte do irmão dele. Bastava mexer alguns pauzinhos e pronto, a polícia cairia em cima dele.

— Mexer alguns pauzinhos ou capotar alguns carros e esmagar algumas cabeças. — Ele abriu os braços, como se mostrasse os sedãs que os rodeavam, e devolveu no mesmo tom — Mas sim, a ideia foi essa mesmo. Bastava que a polícia entendesse que se tratava de algum plano de vingança por parte do Adam e pronto, eu estaria com o caminho livre para reclamar o que também é meu por direito. — Ele baixou os braços e arqueou as sobrancelhas novamente — Eu sabia que o papai tinha um Landau guardado, e foi em cima disso que arquitetei tudo. Comprei alguns Galaxies sucateados e vim reconstruindo-os aos poucos para usá-los. Eu só não imaginava que o Adam colaboraria com meu plano e restauraria o Landau dele. Obrigado, irmão. — Ele piscou para o gerente.

Adam bufou, retesando o maxilar. Avançou alguns passos e postou-se na frente de Fernanda, fechando os punhos junto ao corpo.

— Tudo bem, “irmão”. — Ele disse, num tom glacial — Eu entendo pelo que você passou. Mas não pense que você sairá impune disso.

Bruno desatou a rir. Levou as mãos à barriga e jogou a cabeça para trás, gargalhando com vontade. Adam e Fernanda não entenderam e se entreolharam pelo canto dos olhos, mas permaneceram exatamente onde estavam.

— Fala sério, Adam. Recorrendo a frases de efeito? — O gestor de frota devolveu, fazendo trejeitos dramáticos — Tudo bem, você quer impressionar sua namorada, mas eu realmente não esperava isso de você.

Aquilo irritou o gerente ainda mais. Era muito desaforo. Depois de tudo o que haviam passado, todo o terror, todo o medo a que haviam sido submetidos, Bruno ainda tinha a petulância de debochar deles. Ele ameaçou avançar na direção do gestor de frota, mas Fernanda o deteve.

— Adam, não...

— Mas eu vou...

— Não!

Mais além, recuando e recostando o corpo contra um dos Landau bordô, Bruno abriu sua jaqueta de couro e puxou uma pistola Glock automática de um coldre atravessado em sua cintura.

— Muito bem. — Ele respirou fundo, parando de rir, e encarou o casal mais uma vez — Vamos acabar logo com isso.


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