O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 33
Capítulo 32




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Foi algo tão brusco que ela se desequilibrou e quase foi jogada ao chão.

Sentindo-se segurada pelo braço, engolfada pela chuva gelada mais uma vez e tomada subitamente por um gigantesco mix de sentimentos terríveis pânico, desespero, ansiedade e negação — tudo que ela conseguiu fazer foi se virar e estapear às cegas. De olhos fechados, espalmou as mãos e desferiu golpes a torto e a direito para trás, tentando acertar quem quer que estivesse ali. Amaldiçoou a si mesma por não ter levado nada em mãos, que fosse um mísero spray de pimenta, e sabia que não conseguiria vencer ninguém em um embate físico, mas esperava pelo menos assustar quem a tinha agarrado por tempo suficiente para que ela conseguisse se soltar e fugir.

— Não! Não! Me solta, me solta! — Ela estava histérica.

— Ai! Pare com isso! — Uma voz masculina esbravejou.

Mas Fernanda não parou. Continuou desferindo tapas maquinalmente, andando para trás, na esperança de conseguir gingar o corpo para o outro lado e escapar. No momento certo, se viraria e correria o mais depressa que suas pernas lhe permitissem.

— Tire suas mãos de mim!

— Pare! — O outro protestou.

Não. Ela não ia parar. Não iria simplesmente se entregar. Já havia chegado até ali, e tomaria até a mais desesperada das atitudes se fosse necessário. Ainda de olhos fechados e percebendo que seus tapas não estavam adiantando, ela enrijeceu seus dedos e tentou atingi-lo com as unhas.

— Não! Você não vai me levar! — Ela estava cada vez mais agitada — Você não vai...

— Fernanda, pare! — Foi um berro.

E o mundo congelou. Porque aquela voz grave e cavernosa que berrara para ela era bem mais familiar do que ela esperava que fosse. Ao mesmo tempo, sentiu-se segurada pelos dois braços. Abrindo os olhos vagarosamente, como se precisasse de algum tempo para absorver aquela informação, logo conseguiu enxergar através da penumbra e da chuva que a cercavam.

— Sou eu, Fernanda. Acalme-se. — Ele disse, mais sereno.

E ela quase desmoronou.

Porque ali, diante dela, naquele covil escuro e sob aquele temporal gelado, estava Adam.

Fernanda sentiu todo o ambiente à sua volta se tornar algo tortuoso e errático, como um disco de vinil arranhado tocado por uma vitrola desarranjada. As formas se desfizeram, as cores desbotaram, como se tudo estivesse sendo derretido pela chuva. O universo se tornou diáfano. A vida pareceu ficar repentinamente insípida. Tudo perdendo a razão e o sentido de ser. Parecia que ela tinha mergulhado em uma realidade utópica, algo entre Pablo Picasso e Salvador Dalí.

E ela temeu estar a um passo da loucura.

À sua frente, seu namorado a segurava com firmeza e a encarava com um semblante pálido, sua expressão facial misturando alívio e preocupação.

— Você está bem? — Ele perguntou.

Ela acenou positivamente, num gesto lerdo, como se esse simples movimento fosse extremamente penoso. Adam suspirou, baixando a cabeça e fechando os olhos por um segundo, mas logo a encarou de novo.

— O que deu na sua cabeça?

Cabeça.

A realidade a atingiu novamente. Subitamente energizada, empertigou-se e soltou-se das mãos dele, afastando-se alguns passos para trás e fitando-o com receio.

— Como você me achou? — Ela indagou, num tom frio.

O gerente abriu a boca para responder, mas não o fez. Levou a mão ao bolso e tirou seu celular.

— Acho que você ia responder a uma mensagem do Bruno, mas acabou mandando a resposta pra mim. — Ele abriu o Whatsapp e virou o telefone para ela — Olha aí. Você me mandou até a localização desse lugar.

Fernanda apenas observou, mas continuou onde estava. O que ele dissera fazia sentido. Tencionando responder o gestor de frota mais cedo, ela apenas abrira o aplicativo e enviara a localização do Landau, mas agora se lembrava de que não havia conferido de fato se estava na aba de conversa certa.

— Eu te liguei várias vezes para saber o que você iria fazer, Fernanda, mas você não me atendeu. — Ele prosseguiu — Se eu soubesse que você viria atrás do Landau sozinha, eu teria te amarrado na cama. Isso é suicídio!

Ele intentou aproximar-se dela, mas ela recuou mais alguns passos. Ele percebeu a atitude evasiva dela e murchou os ombros.

— O que foi? — Ele questionou, suspirando.

A mudança na expressão facial dela foi tão instantânea que ele se surpreendeu. Lágrimas correram dos olhos dela como riachos e seus lábios começaram a tremer incontrolavelmente, e todo o seu corpo adquiriu um ar glacial, como um iceberg fosco.

— Você... — Ela apontou o indicador na direção dele, mas parou o gesto pela metade.

Ele não entendeu, e avançou mais um pouco em direção a ela.

— Fernanda...

— Não se aproxime de mim!

E ele parou novamente, com os braços abertos num gesto vago e os olhos arregalados na mais pura surpresa.

— O que aconteceu?

— Você mentiu pra mim! — Ela agora chorava livremente.

Adam continuou parado onde estava, com o cenho franzido e sem conseguir entender.

— Como assim?

— Você mentiu pra mim! — Fernanda repetiu, caminhando de costas de volta para o galpão — Depois de tudo o que passamos, você mentiu pra mim!

Ele permaneceu estático.

— Menti sobre o quê, Fernanda? Eu não estou entendendo.

— Ah, não? — Ela soltou — Tudo bem, eu te mostro.

Ela se virou e voltou para dentro do galpão, contornando os Landaus que ali estavam e caminhando até a bancada do fundo. Adam também adentrou o local, olhando em volta com uma expressão que misturava espanto, asco e indignação. Viu Fernanda mexendo em alguns papéis e observou-a voltar até onde ele estava.

E o que ela trazia nas mãos deixou-o ainda mais sem ação.

— Agora você entende? — Ela perguntou, num tom ácido, erguendo a pasta amarela no ar.

Ela não fez questão de esconder o tom de desprezo na voz enquanto lágrimas quentes ainda rolavam por seu rosto. Sentia-se enormemente traída. Feita de boba. Enganada. Magoada.

Adam suspirou e massageou o braço machucado, parecendo encolher. Seu rosto perdeu o ar de surpresa e adquiriu uma expressão triste, pesarosa, como se aquilo fosse a última coisa que ele esperasse em vida. Sem saber ao certo o que fazer, encarou os próprios sapatos. Fernanda permaneceu com a pasta erguida no ar na direção dele. A dor que emanava de seu peito queimava como uma brasa incandescente. Era terrível demais para ser descrita.

— Eu nunca condenei você por ter ido embora como você foi. — Ela disse, fungando — Nunca te julguei por ter terminado comigo e desaparecido como você fez. Nunca. Eu sempre acreditei que você fosse um ser humano incrível, digno de toda a minha admiração. Eu achava que conhecia o melhor de você, Adam. — Sua voz foi adquirindo um tom nervoso, e ela franziu o queixo ainda mais — E quando você voltou e começamos a sair, eu acreditei com todas as minhas forças que eu finalmente poderia ter encontrado a felicidade.

Ela foi obrigada a parar, pois sua voz vacilou. O choro a fez engasgar. Ela nunca pensou que teria que fazer aquele discurso para alguém, ainda mais para Adam, mas o sentimento confuso que a engolfava, um misto horrendo e pesado de traição com lamento, a havia amortizado como algum tipo de veneno anestésico. Ela se sentia uma pessoa diferente, dupla, como se vivesse aquela situação pavorosa com toda a intensidade e ao mesmo tempo fosse um terceiro que observava a tudo de fora.

Adam permanecia cabisbaixo, os olhos voltados para o chão.

— Eu me entreguei a você, Adam. — Ela prosseguiu, agora num tom melancólico — Deixei você entrar na minha vida novamente. Te dei meu coração novamente. E você... — Ela balançou a pasta no ar, incerta sobre como continuar — E isso... Isso...

— É verdade. — Adam soltou num repente, com a voz trêmula.

E, logo em seguida, chorou. Seus ombros começaram a tremer e ele cruzou os braços diante do corpo, cobrindo a boca com a mão direita. Seu rosto ficou subitamente vermelho e afogueado, como se mil coisas diferentes tivessem subido de uma única vez à sua mente. Fernanda calou-se, decidindo esperar. Apesar de seu peito arder como um poço de aço líquido, ela decidiu deixá-lo falar. Adam arfou pesadamente algumas vezes antes de erguer os olhos novamente e encará-la, e a encarregada viu estampada ali uma tristeza tão grande e genuína que ela nunca imaginou que veria na vida.

— É verdade, Fernanda. — Ele repetiu, num tom aquoso — Nem sei como te explicar, mas... Tudo o que está aí é verdade.

Ela baixou a pasta, depondo-a sobre o para-lama de um dos Landaus, e cruzou os braços diante do corpo, esperando pela explicação dele com um semblante vazio no rosto. Ele entendeu o gesto.

— Você melhor do que ninguém sabe o quanto foi terrível para mim perder meu irmão da forma que eu perdi. Você estava lá comigo. — Ele balançou a cabeça de um lado para o outro — Eu simplesmente não consegui lidar com aquilo. Alguma coisa aconteceu com a minha cabeça. De repente, eu já não conseguia fazer mais nada. Não conseguia comer, dormir, ficar sozinho. E em alguns momentos eu sentia que perdia partes enormes do meu dia, como se eu tivesse entrado em algum tipo de transe. — Ele arfou, massageando o braço novamente — Meu pai pediu que o médico da família me indicasse para uma consulta com algum psiquiatra para ver se seria necessário eu fazer algum tipo de acompanhamento por algum tempo, e... Eu fui.

Ele deu de ombros. Fernanda continuou como estava, de braços cruzados, esperando que ele terminasse.

— Ele me diagnosticou com distúrbio de identidade dissociativa. — Adam prosseguiu, fechando os olhos e falando como se estivesse se referindo a outra pessoa, de outro lugar, de outra realidade — Ele disse que o trauma da morte do Alan havia criado em mim uma segunda personalidade, letárgica e vazia. Uma forma que meu cérebro achou para me dar algum tipo de conforto, ele disse.

A encarregada continuava com uma expressão franzida no rosto, e aquilo fazia Adam se sentir ainda pior. A única pessoa de quem ele realmente gostava no mundo o encarava como se ele fosse algum tipo de inseto de esgoto, nojento e desprezível. Respirando fundo, ele continuou:

— Ele recomendou que eu fosse internado para me tratar, e isso preocupou meu pai. Ele era um homem de negócios que prezava muito por sua imagem. Ele havia acabado de perder um filho e não ia querer que corresse a notícia de que seu outro filho havia “surtado”. Ele acertou minha ida para o Friends Hospital, nos Estados Unidos, no maior sigilo. Ninguém ficou sabendo. — Ele parou por um momento para enxugar os olhos na manga do paletó e encarar Fernanda novamente — A única pessoa para quem eu falei que ia “dar um tempo” foi você.

A encarregada arfou. Ela estava prestes a emendar uma resposta indignada àquela informação quando ele espalmou as mãos no ar, pedindo a ela que esperasse.

— Eu sei que você está muito magoada, e não tiro sua razão. — Ele apressou-se em dizer — Imagino que você deve ter pensado coisas terríveis, e imagino a sua frustração por meu pai não te contar onde eu estava. Mas acredite, Fernanda, não foi nada fácil pra mim. Passei muitas noites sem dormir, não conseguia me alimentar direito, não conseguia ver nenhum futuro bom para mim. Eu estava inconscientemente rejeitando o tratamento. — Ele suspirou, secando os olhos mais uma vez — Levei quase quatro anos para me adaptar à rotina do hospital. Ter que sair, conviver com os outros internos como se tudo estivesse bem, mas voltar para o meu quarto no final do dia e dormir com as portas trancadas por fora. Como se eu fosse algum tipo de louco. — A voz dele adquiriu mais firmeza ao final da frase, mas não perdeu o tom triste.

Fernanda franziu o cenho, ainda incerta sobre o que sentir, mas obrigou a si mesma a ouvir o que ele tinha a dizer antes de formar qualquer julgamento.

— Entre psiquiatras e psicólogos, fui sendo convencido a praticar atividades para ocupar meu tempo e distrair minha mente. Foi quando comecei a me dedicar ao kung fu e aprendi a cozinhar. — Ele seguiu com sua narrativa — Ao mesmo tempo, fui sendo submetido ao tratamento contra a identidade dissociativa, que envolvia a administração de remédios antipsicóticos por um tempo e sessões de hipnose para conseguirem “falar” com minha outra personalidade. — As sobrancelhas dele se arquearam levemente, devolvendo-lhe seu característico ar aristocrata, mas ele desviou os olhos para o Landau bordô empenado que jazia sob a garagem coberta da casa, do outro lado do pátio — Levaram muito tempo para conseguir algum progresso. Minha outra personalidade era a própria personificação do meu trauma. Uma mistura esquisita de tristeza com apatia e negação. Até chegaram a filmar algumas das sessões de hipnose, mas me recusei a assistir.

Ele fez uma pausa, ainda com o olhar distante, e Fernanda aproveitou para mudar de posição. Ainda estava bastante incomodada por descobrir tudo aquilo daquela forma, mas dentro dela havia uma batalha de sentimentos. Ela gostaria que ele a tivesse contado tudo aquilo logo de cara, com franqueza, em vez de tentar esconder dela todas aquelas informações, mas uma vozinha gritava lá no fundo que aquilo era pessoal e perturbador demais para que ele compartilhasse com ela em tão pouco tempo de relacionamento e após passar tanto tempo ausente. Ela não sabia em quê exatamente focar seus pensamentos agora. Ela permitiu-se apenas deixar seu cérebro girar livremente, desgastar-se sozinho com sua enxurrada caótica de pensamentos, sem se concentrar em nada em específico.

— Com cinco sessões semanais, levaram seis anos para conseguir me tratar. — Adam prosseguiu, ainda sem se virar para olhá-la — E além de reviver a perda do Alan dia após dia, algum tempo depois ainda tive que lidar com a notícia da morte da minha mãe. — Ele baixou a cabeça, fungando e coçando o nariz — E depois de quatro anos de negação, seis anos de tratamento e mais um ano e meio de observação, estava finalmente recebendo alta quando... meu pai faleceu. — Ele fechou os olhos e balançou a cabeça de um lado para o outro — E foi com esse cenário que eu tive que voltar para o Brasil. Com tudo isso passando pela minha cabeça. Sem saber como lidar com isso, sem ter ninguém em quem me apoiar. — E por fim, ele se virou e a encarou — Até que reencontrei você.

Fernanda arfou. Não sabia dizer se já esperava por aquilo ou não, mas a surpresa que subiu-lhe pela garganta foi genuína. Talvez pela realidade das palavras dele. Pela sinceridade que elas continham. Ela não soube interpretar bem. Respirando fundo e empertigando-se, Adam se virou e caminhou lentamente até ela.

Desta vez, ela não se afastou.

— Não vou pedir que me perdoe por não ter te contado, Fernanda. Nem que tente me entender. Nos conhecemos muito bem e não precisamos disso. — Ele estendeu as mãos e segurou-a gentilmente pelos braços novamente — Mas se você queria a verdade, aí está ela. Nem mais, nem menos. Apenas a verdade.

A encarregada suspirou, ainda incerta sobre o que sentir ou o que dizer. Adam permaneceu como estava, segurando-a, e ela percebeu que o toque dele era quente. Por alguns segundos, ela se deu ao trabalho de estudar os olhos negros dele, tentando perceber se através deles era transmitido algo não dito. Mas não. Tudo que havia ali era uma imensidão negra e profunda que não revelava nada além da ansiedade que Adam sentia por ouvir o que Fernanda tinha a dizer. Tudo que havia ali eram dois olhos negros, tão negros cujas pupilas não se podiam distinguir, que pareciam transbordar de uma energia atômica invisível que aquecia o corpo e a alma da encarregada.

Fernanda vacilou. Agora ela compreendia a incerteza que havia lido nos olhos do namorado mais cedo, quando falavam sobre o quê o motorista do Landau havia roubado. Era o “algo mais” que ela soube que descobriria mais tarde, e que acabou sendo a revelação bombástica da internação de Adam nos Estados Unidos.

— Você devia ter me contado, logo de cara. — Ela resolveu falar, descruzando os braços e recostando o corpo contra o para-lama do Landau mais próximo — Caramba, Adam, tudo poderia ter sido diferente. Eu poderia ter tentado te ajudar a superar seus momentos ruins. Você teria certeza de que poderia contar comigo para o que precisasse. E quanto a tudo isso... — Ela fez um gesto amplo, apontando o cenário à sua volta — Teríamos lidado muito melhor. Eu não teria tanta incerteza sobre tudo.

Adam franziu a testa.

— Você não acha que eu tenho ligação com isso, não é? — Ele soltou, indignado, mas com a voz trêmula — Mesmo depois disso tudo que acabei de te contar.

Fernanda suspirou longamente. Ainda sentia-se incomodada, e sabia que se sentiria assim por um bom tempo. Coisa de mulher. Mas ao mesmo tempo, depois de tudo que Adam lhe contara, voltara a sentir a febre que a havia impelido a seguir o rastro do “Landau vermelho”, dirigindo até aquele fim de mundo para descobrir o que poderia haver por ali.

Porque foi exatamente nisso que ela havia pensado ao sair dirigindo loucamente de Contagem em direção a Antônio dos Santos. Queria descobrir a verdade, fosse ela qual fosse, e acabar com aquela angústia, mesmo sem saber exatamente como. Queria acabar com aquilo tudo a fim de dar um futuro à sua relação com Adam. E ali estava ela, de posse da verdade sobre a vida “oculta” de seu namorado sobre a qual ela tanto especulara, mas ainda faltando a descobrir a verdade sobre quem estava por trás de toda a história do “Landau vermelho”.

— Não, Adam, eu não acho. — Ela respondeu à pergunta dele — Mas quem quer que esteja por trás disso, teve muito acesso às informações sobre a sua vida.

Ele retesou o maxilar e assentiu, olhando em volta.

— O que mais me intriga é como ele sabia que eu também tinha um Ford Landau. — Ele soltou, observando os seis sedãs dispostos pelo galpão — Só minha família sabia daquele carro.

Fernanda concordou.

— Tem que ser alguém muito próximo a você. Ou ao seu pai, talvez. — Ela emendou — Quanto a isso não há dúvidas.

Ele contornou o sedã mais próximo, observando o carro com olhar clínico, mas se afastou e aproximou-se dos dois Landaus bordô que já estavam prontos, brilhando sob as luzes fluorescentes do galpão como se tivessem acabado de sair da concessionária. Ele abriu a porta de um deles e entrou, assumindo a posição de motorista.

Fernanda veio até ele.

— Você não veio no seu Landau também, não é? — Ela perguntou, apenas por curiosidade.

— Não, eu vim no Toro. — Ele devolveu, observando o painel do carro — Este carro também não é um Landau genuíno. Parece um Galaxie reconstruído.

A encarregada concordou, apontando para o sedã verde.

— E aquele ali não tem capota. Então é um Galaxie que ainda não foi mexido.

Adam ergueu os olhos para ela, abrindo um sorriso de poucos milímetros nos cantos da boca.

— Exatamente. — Ele saiu do carro e fechou a porta — Você percebe como o motorista do Landau pensou num jeito perfeito de enganar a polícia? Eu pagaria para ver a cara do Guilherme diante disso aqui.

Fernanda fez que sim com a cabeça, olhando em volta e tentando descobrir se ainda não havia notado algo, mas ao se virar quase deu de cara com o peito de Adam. Ele havia se posicionado silenciosamente bem à frente dela. Com os movimentos cautelosos e suaves de um felino, ele levou as mãos à cintura dela e puxou-a para perto de si.

— Eu sei que eu disse que não esperava por isso, mas... — Ele disse, baixinho, num tom grave e rouco — Você me perdoa?

E por alguns segundos a encarregada se perdeu entre os olhos e os lábios dele. Era sempre assim. Ele estava sempre a surpreendê-la. Sempre a pegando desprevenida. Completamente desarmada mas sem querer se derreter como uma “mariquinha”, ela abriu um sorriso estreito.

— Desde quando nos rendemos aos clichês? — Ela indagou, erguendo uma sobrancelha.

— Por favor. — Ele insistiu, com o olhar sério — Isso é muito importante pra mim.

Ela arfou, encarando-o. E bem ali, naquele momento, qualquer sentimento de repulsa ou rejeição por ele que ela poderia ter sentido ao descobrir o conteúdo daquela maldita pasta amarela foi consumido como papel manteiga ao fogo. Qualquer força contrária àquele magnetismo intenso que existia entre eles foi rechaçada para longe, como se eles fossem ímãs de polaridades únicas que atraíam apenas um ao outro.

Fernanda não teve alternativa a não ser responder.

— Ok, Adam. — Ela assentiu — Eu te perdoo.

Ele se permitiu abrir um sorriso aliviado. Ainda fitando-a nos olhos, ergueu uma das mãos e acariciou-lhe levemente a bochecha com o polegar.

— Existe algo sobre o qual eu nunca conseguiria mentir para você. — Ele disse, piscando.

E ela soube exatamente o que ele ia dizer. Sentiu de repente todo o seu peito bater descompassadamente, seguindo o ritmo de seu próprio coração, enquanto aguardava as palavras saírem da boca dele. E deslizando o dedo pela face dela com cadência e ternura mais uma vez, Adam finalizou:

— Eu te amo muito.

Não houve maneira de resistir àquilo. A corrente energética que passava entre eles era algo sobrenatural, atômico, intenso como uma explosão solar. Foi automático o caminho que suas bocas fizeram de encontro uma à outra, se explorando mutuamente e se deliciando com aquele sabor magnífico que eles possuíam apenas quando estavam juntos.

Toda a tensão, todo o estresse, todo o inferno que já haviam vivido se neutralizava mais uma vez, porque eles estavam juntos.

Naquele momento não importava se a chuva que caía aos cântaros lá fora estava tão gelada quanto o sangue de um cadáver. Não importavam aqueles seis sedãs enormes depostos ali como restos pútridos de algum monumento macabro. Não importava toda aquela atmosfera negativa, não importava o passado que Adam não contara, não importava o resto do mundo.

Apenas não importava. Porque aquele beijo, mais do que qualquer outro, foi a consumação de uma certeza que havia se gravado na mente e no coração de ambos.

Eles estavam juntos.

Sem se importar com o vento gelado que entrava pela frente aberta do galpão, Adam e Fernanda mantinham-se colados um ao outro. A encarregada havia deixado suas mãos subirem pelo peitoral definido do namorado até pararem em sua nuca, e agora ocupavam-se em segurar-lhe o cabelo com firmeza enquanto ela forçava sua língua contra a dele num baile maravilhoso. Ele, por sua vez, havia levado suas mãos às costas dela e pressionara o corpo dela de encontro ao seu, fazendo-a sentir cada milímetro do corpo dele a desejá-la. Sentia um calor fluindo pelos poros da pele dela de forma constante, libertadora, e aquilo o deixava louco.

Não precisavam dizer um ao outro o que passava por suas mentes. Sabiam que ambos desejavam a mesma coisa. Queriam poder congelar aquele momento, fazer com que ele durasse para sempre, sem importar com mais nada ou mais ninguém. Queriam poder passar o resto de seus dias assim, vivendo aquele sentimento poderoso e improvável que os consumia como algum tipo de radiação poderosa. Queriam poder permanecer unidos eternamente, ouvindo aquela melodia celestial que o Universo parecia tocar quando eles se conectavam. Ouvir aquela sinfonia esplêndida, ouvir...

Aplausos.

Palmas lentas. Espaçadas. E extremamente irônicas.

Absortos como estavam em seu próprio momento, Adam e Fernanda não perceberam o veículo escuro que se aproximou pela escuridão com os faróis apagados lenta e silenciosamente até parar a meros 10 metros de onde estavam, apesar do ronco rouco de seu escapamento duplo. Não ouviram o motorista descer e recostar-se contra o para-lama, observando-os com atenção e curiosidade. Só notaram que ele estava ali quando ele por fim se aproximou mais um pouco do casal e se manifestou.

Aplaudindo aquela cena de forma sarcástica.

Trazidos de volta à realidade de forma brusca, o casal se soltou e se afastou um pouco, olhando para o pátio. Apesar das luzes fluorescentes iluminarem bem o interior do galpão, sua claridade não se espalhava o suficiente pelo pátio para que divisassem muita coisa por ali. Tudo que os dois conseguiram foi intuir algumas silhuetas na escuridão, o que já foi mais do que suficiente para que colunas de gelo parecessem subir por suas espinhas. Um relâmpago explodiu no céu, distante e fraco, mas sua luz prateada permitiu a Fernanda e Adam que vislumbrassem melhor o que estava bem diante deles.

A uma dezena de metros da entrada do galpão havia um Fiat Uno. Um Fiat Mille Way, na verdade. O pequeno hatch era preto, tinha um aerofólio discreto, porém saliente, preso à tampa do porta-malas e seu escapamento acabava em uma ponteira dupla de inox. Seus faróis de máscara negra lhe davam um ar sinistro e vilanesco, como a máscara do próprio Darth Vader, e suas rodas grafite de aro 15 calçadas em pneus de uso misto deixavam evidente a vocação do Fiat tanto para velocidade quanto para fugas em qualquer terreno.

E apenas alguns passos à frente do Uno estava ele. Ainda usando a mesma jaqueta de couro e o mesmo par de yellow boots. Ainda a mesma silhueta negra diabólica e sem rosto.

Mais uma vez, estavam diante do motorista do “Landau vermelho”.

Um trovão retumbou nas nuvens e estremeceu a terra, assustando Adam e Fernanda. O outro, porém, permaneceu imóvel como estava. Sem poder ver seu rosto, o casal não tinha como saber o que ele poderia estar sentindo. Se estava irritado por ter seu esconderijo descoberto, se estava surpreso por vê-los ali ou se apenas estava satisfeito por tê-los à mão. E aquilo era assustador.

Porque sim, ele os tinha à mão. Novamente se encontravam sem ação, congelados pelo terror, exatamente como haviam ficado ao vê-lo mais cedo na casa de Adam. Naquele momento ele poderia fazer a eles o que bem quisesse, porque eles não conseguiriam esboçar nenhum tipo de oposição. E ele percebeu isso. Inclinando a cabeça de lado, cruzou as mãos diante do corpo e pareceu estudá-los por um momento. Percebendo isso, Adam instintivamente enlaçou Fernanda com um braço e posicionou-se diante dela.

— Não, Adam... — Fernanda sussurrou, percebendo que ele tentaria defendê-la — Seu braço...

— Eu estou bem. — Ele devolveu, tenso.

O outro balançou a cabeça e emitiu um som. Algum tipo horrendo de risada sarcástica, que pareceu mais o assobio de um Velociraptor. E então ele se moveu. Calmamente pôs-se a caminhar em direção ao galpão, passo após passo, sem se incomodar com a chuva torrencial que caía. Outro relâmpago espocou entre as nuvens, dando a ele o ar de um predador jurássico se aproximando para o ataque.

Fernanda conseguiu sentir a musculatura de Adam se retesando pelo nervosismo enquanto ele a envolvia ainda mais com o braço, mas ela não conseguiu esboçar nada. Sentia-se travada pelo terror. Estava novamente diante do ser doentio que tentara matá-los a sangue frio. Tudo que ela queria era sumir. Não conseguia sequer comandar suas pernas para que corressem para o lado oposto do galpão.

E ele continuava caminhando em direção à construção. Bem lentamente. Com calma. Como uma serpente que sabe que terá êxito em sua caçada. E quando estava a meros três metros do casal, parou.

— Eu estou curioso. — Ele disse, com um tom de voz risonho, cruzando os braços diante do peito — Essa vergonha que vocês estão passando é no crédito ou no débito?

Foi como um soco no estômago. Uma pancada terrível, desferida por um bate-estaca invisível. Um choque explosivo e estraçalhante.

Porque apenas uma pessoa no mundo faria uma pergunta como aquela.

Um novo relâmpago brilhou no céu. Intenso, fulguroso, brilhante como um dia de sol. Sua luz prateada iluminou o mundo abaixo como uma lanterna de milhões de watts de potência, clareando cada canto, cada detalhe, cada molécula com enorme riqueza de detalhes. O trovão que se seguiu foi como um terremoto poderoso, impossível de ser medido na escala Richter, que abalou cada centímetro de terra por onde ecoou e fez estremecer até as almas de Adam e Fernanda como bonecas de trapo.

Porque quem estava diante deles era Bruno.


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