O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 29
Capítulo 28




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A situação se inverteu instantaneamente.

Adam, até então confuso e temeroso, ficou subitamente otimista e estranhamente satisfeito. Guilherme, por sua vez, até então curioso com as atitudes pensativas do gerente, sentiu-se subitamente perdido. Todavia, ele não se deu ao trabalho de hesitar. Descruzando os braços e aproximando-se de Adam depressa, encarou-o com seriedade.

— Explique-se. — Ele soltou, friamente.

O gerente não escondia o sorrisinho de satisfação que havia brotado em seus lábios, mas retribuiu o olhar de Guilherme com gentileza.

— Este carro não é um Landau, detetive. — Adam repetiu, cuidando para que seu tom de voz relaxado não parecesse debochado — É um Galaxie LTD.

Guilherme alteou as sobrancelhas, como se pedisse mais detalhes. Adam entendeu e pôs-se a explicar pacientemente.

— A Ford lançou a linha Galaxie no Brasil em 1967. Se não me engano, foi inclusive o primeiro automóvel que ela fabricou por aqui. Dois anos depois, em 1969, o Galaxie LTD foi lançado para ser o “topo de linha” da marca. Era uma versão mais luxuosa, com capota de vinil, acabamento interno melhorado e câmbio automático como opcional. — O gerente fez uma pausa, pousando a mão sobre o sedã diante dele.

— Tá bom, tá bom. — Guilherme fez um gesto circular com a mão direita — Vá direto à parte que interessa.

Adam olhou-o de soslaio e não fez o menor esforço para reprimir o sorriso que estampava seu rosto.

— Em 1971, a Ford se deu conta de que precisava de um carro ainda mais luxuoso para competir com o Dodge Dart e o Opala Gran Luxo, concorrentes diretos do Galaxie. — Ele prosseguiu com sua narrativa — E só então foi apresentado o Galaxie LTD Landau.

— Como é? — O detetive deixou escapar, pois não havia entendido.

Adam deu uma risadinha de canto.

— Esse é o nome completo dele, detetive. Ford Galaxie LTD Landau. — Ele recostou o corpo contra o porta-malas do veículo — Foi apresentado na linha 1971 como uma versão melhorada do Galaxie LTD. Tinha apliques de madeira de jacarandá no painel e nas portas, forração em tecidos melhores e o adorno característico em forma de “S” nas colunas traseiras. — Ele fez uma pausa dramática, apontando para o vidro traseiro do sedã — Mas o principal diferencial dele estava na traseira. Para dar um ar mais elegante ao carro, o vidro traseiro do Landau era menor do que o do LTD.

Guilherme permaneceu estático, tentando processar a informação. Adam percebeu a inércia do detetive e tratou de ilustrar sua explicação. Tirando seu celular do bolso de seu paletó, destravou-o e entrou na galeria de fotos, abrindo uma foto que mostrava seu próprio Landau de traseira.

E só então o que ele havia dito ficou óbvio.

O vidro traseiro do Landau do gerente era uma vigia retangular estreita, que começava quase um palmo abaixo do caimento do teto e acabava na própria capota, alguns centímetros acima da tampa do porta-malas. Já o vidro traseiro do sedã apreendido começava rente ao teto e acabava exatamente ao encontrar-se com o compartimento traseiro do veículo.

De repente, foi como se um piano despencasse sobre a cabeça de Guilherme.

Subitamente irado, o detetive bufou, retesou o maxilar e estreitou os olhos, encarando o nada. Adam tratou de tomar-lhe o celular de volta antes que ele o atirasse para longe e afastou-se um pouco, esperando.

Guilherme balançou a cabeça em negativa algumas vezes, atordoado, e teve que fazer um esforço enorme para conseguir falar, com o rosto vermelho e a voz afogueada.

— Você tem certeza disso?

O gerente alteou uma sobrancelha e caminhou pela lateral do sedã. Abrindo a porta do motorista, apontou o interior.

— Pode ver por você mesmo. — Ele mostrou o painel — Além do vidro traseiro grande, este carro não tem os apliques de madeira no painel e nas portas.

O detetive franziu o queixo, estreitando a boca. Parecia querer arrancar a cabeça de alguém.

— Como isso é possível? — Ele indagou, num tom seco.

— A carroceria Galaxie é bastante modular. Com pouquíssimas adaptações você pode transformar um Galaxie em um LTD, ou um LTD em um Landau, ou um Landau em um Galaxie, e por aí vai. — Adam respondeu, dando de ombros — Os três eram praticamente o mesmo carro. A maioria das diferenças entre um e outro era apenas estética. Apliques de cromados, madeira, enfim. Nada muito difícil de conseguir com colecionadores ou antiquários.

Guilherme assentiu, com uma expressão gélida atravessando-lhe o rosto.

— Vamos para a minha sala. Precisamos conversar. — Foi tudo que ele conseguiu dizer, virando-se e voltando para a delegacia com passos firmes, sem nem se importar com a chuva que desabava.

Adam tratou de acompanhá-lo.

— Espera aí! — Ele pediu, correndo até Guilherme — E aí, o que você vai fazer?

O detetive não diminuiu o passo.

— Está na cara que plantaram uma pista falsa pra atrapalhar minha investigação. — Ele soltou, num tom azedo, apontando-lhe o dedo indicador — Vamos repassar o caso do “Landau vermelho” juntos, e quero te fazer mais algumas perguntas. Se é alguém que está tentando te prejudicar, quero indícios de quem seja. E se for você quem está por trás disso, eu vou te espremer até descobrir.

 

o—o—o

 

Tomada por um misto de curiosidade e ansiedade impossível de ser descrito, Fernanda mal conseguiu trabalhar pelo resto do dia. Tratou de passar suas pendências para seus auxiliares e procurou não pensar em mais nada. Ela até tentou ligar para Adam para perguntar como havia sido sua conversa com Guilherme, mas o telefone dele estava desligado. As horas pareceram escorrer muito lentamente, até que finalmente o expediente se encerrou e a encarregada pôde pegar seu carro e ir embora. Bruno não havia voltado ao escritório, e Fernanda achou prudente não falar com ele no momento.

Dirigindo seu Fiat Idea meio às cegas, ela gastou menos de vinte minutos para chegar em casa. Largando sua bolsa sobre a mesa da sala, Fernanda sentou-se no sofá, pegou seu notebook e abriu o Google Maps. Tirou do bolso de sua calça o papelzinho onde havia escrito as coordenadas apontadas pelo SpyTrac e digitou-as na barra de pesquisa.

Não adiantou muita coisa. O ponteiro marcador de posição recaiu sobre uma estrada de terra no meio do nada. A princípio sem reação, Fernanda por fim segurou um suspiro de frustração. Todo aquele suspense aparentemente para nada. Antes de fechar o Google Maps, porém, ela diminuiu o zoom do mapa e rolou a tela para a esquerda, tentando se orientar. Pelo que ela havia visto no aplicativo de rastreamento no celular de Bruno, sabia que o local ficava após a Serra da Piedade, em Caeté, mas queria alguma outra referência. A não ser por uma pequenina cidade chamada Antônio dos Santos localizada um pouco a oeste, o local era — quase literalmente — no meio do nada.

Fernanda ficou extremamente incomodada e inquieta. Entretanto, pensando um pouco mais racionalmente, apesar de estar a mais de 70 quilômetros de Belo Horizonte, a localização apontada pelo rastreador poderia ser alcançada em pouco mais de uma hora e, se o Landau estivesse mesmo por lá, seria um esconderijo perfeito. Um lugar ermo, pacato e com pouquíssimas ou quase nenhuma testemunha. Dando uma olhada melhor no entorno da localização, a encarregada percebeu que havia mais de uma rota possível para chegar até lá, todas elas constituídas por estradas de terra.

Ela não ia conseguir guardar aquela informação só para si. Coçando a cabeça e pegando seu celular, discou o número de Adam mais uma vez e esperou. Ouviu o telefone chamar algumas vezes e cair na caixa postal, mas não se deu por satisfeita. Fechando seu notebook com certa violência e pondo-se de pé, pegou apenas seu celular e sua carteira e saiu de casa, trancando o portão e descendo a Rua França em direção à Rua Portugal.

Iria até a casa de Adam. Estava incomodada por ter descoberto a localização do rastreador, incomodada pelo gerente não estar atendendo ao telefone, incomodada por sempre bancar a “songa-monga” e ver a vida passar diante de si sem fazer nada. Mas não desta vez. O caso do “Landau vermelho” havia despertado nela algo diferente, ligeiramente sombrio e motivacional, que estava a empurrando adiante, a levando a tomar uma atitude. Qualquer que fosse.

A chuva que havia caído mais cedo diminuíra, mas as nuvens cumulus nimbus carregadas que toldavam o céu anunciavam uma nova tormenta para mais tarde. Dando a volta no quarteirão com passos apressados e chegando diante da residência do namorado, Fernanda notou seus dois carros na garagem e percebeu a luz da sala de estar acesa. O portão estava aberto, como de costume, e Fernanda tratou de entrar. Subiu até a casa e entrou, encontrando Adam no meio da sala de estar brigando com sua tipóia para conseguir tirar o paletó.

Ele se virou assim que a ouviu chegar.

— Oi, Fernanda. — O tom de voz dele era de cansaço.

Ela caminhou até ele com passos apressados e abraçou-o.

— Meu Deus, Adam, onde você esteve o dia inteiro? Eu estava ficando preocupada.

O gerente suspirou.

— Passei o dia inteiro na delegacia. — Ele informou — Acabei de chegar.

— E aí? — Ela afastou-se dele, interessada no que ele tinha a dizer.

— Primeiro, me ajude a tirar o paletó, por favor. — Ele pediu.

Fernanda tratou de auxiliá-lo a retirar a vestimenta, tomando cuidado com o braço machucado dele. Depois, Adam afrouxou a gravata e apontou o sofá para a namorada.

— Sente-se.

Ela obedeceu, e ambos se sentaram meio de lado no sofá, ficando um de frente para o outro.

Adam suspirou de novo.

— Estamos sendo feitos de bobos, Fernanda. — Ele soltou, num tom desanimado — Quem quer que seja o assassino do Landau, ele está brincando com a nossa cara.

A encarregada alteou uma sobrancelha, num gesto de dúvida.

— Como assim?

— Quando cheguei à delegacia para contar ao Guilherme o que tinha nos acontecido, ele me informou que eles já haviam apreendido o “Landau vermelho”. — Adam disse, sem um tom definido — Ele até me levou à oficina da delegacia para me mostrar o carro.

— E...?

— Não era um Landau.

Os olhos de Fernanda quase saltaram para fora das órbitas.

— Hã? — Ela soltou, num quase-falsete.

— Eu sei, eu tive essa mesma reação. — Um sorriso tímido brincou nos lábios de Adam — Mas é isso mesmo. O carro que eles encontraram não era um Landau, e sim um Galaxie LTD.

Pacientemente, mas com um tom notável de satisfação na voz, Adam deu a Fernanda a mesma explicação que havia dado mais cedo a Guilherme, falando sobre a facilidade de se trocar peças entre os carros da linha Galaxie. A encarregada limitou-se a escutar, com os olhos arregalados e a boca aberta numa expressão de surpresa.

— E não é só isso. — Adam prosseguiu, massageando o braço machucado — Eles prenderam o Jefferson.

Fernanda piscou como se tivesse sido esbofeteada.

— Oi?!

— Pois é. — O gerente arfou — O falso Landau que eles apreenderam havia sido abandonado próximo à casa dele. E por tudo que o Guilherme conseguiu descobrir até agora, ele é o que mais se encaixa no perfil de “alguém que queira me prejudicar”. — Ele finalizou, fazendo as aspas com os dedos — Ele não tinha álibis sólidos para provar que era inocente de fato, então... O Guilherme optou por deixá-lo detido.

Fernanda não soube muito bem como interpretar aquela informação, mas nem precisava. O que Adam havia lhe contado era apenas um complemento do que ela mesma iria contar a ele. Encarando-o bem no fundo dos olhos e ciente de que existia a possibilidade de que ele se alterasse, Fernanda inspirou fundo.

— Adam... E se eu te dissesse que você pode ter razão? — Ela indagou, cautelosa.

O gerente franziu o cenho.

— A respeito de quê?

— De o Landau apreendido não ser o “Landau vermelho”.

Adam pareceu recuar.

— Como assim?

A encarregada inspirou de novo e fechou os olhos, tomando coragem. Ela preferiu falar sem muitos rodeios.

— Há alguns dias, eu saí com o Bruno. — Ela pôs-se a dizer — Fui assistir a uma apresentação dele e depois saímos para jantar, e... Bom, eu acabei contando a ele sobre os ataques do Landau.

O gerente pareceu confuso.

— Bruno, o nosso gestor de frota? — Ele questionou.

— Ele mesmo. — Ela confirmou — Eu estava com a cabeça pilhada e precisava desabafar com alguém. E como eu te disse há algum tempo, Adam, ele é meio maluco, mas é muito inteligente. Eu esperava que ele me ajudasse a raciocinar um pouco sobre a situação.

Adam cruzou os braços e permaneceu em silêncio. Apesar de manter sua expressão facial inalterada, Fernanda percebeu um leve franzido no canto dos olhos dele. Ele parecia interessado no que ela estava para dizer.

— Ele falou que talvez pudesse me ajudar, e a gente deu uma passada lá na empresa. — Ela desviou o olhar — E ele me emprestou dois rastreadores da frota.

— Como é? — O gerente deixou escapar, soando incrédulo.

— Por favor, Adam, sei que é errado, mas não o penalize por isso. — Fernanda apressou-se em dizer — O Bruno me emprestou dois rastreadores portáteis, dos que vocês usam nos veículos com cargas de alto valor agregado, e me disse que eles tinham ímãs. Ele disse que, como existia a possibilidade de o Landau nos atacar, eu deveria tentar jogar um rastreador nele.

A ficha de Adam caiu.

— Então foi isso que você jogou contra o Landau ontem. Um rastreador. — O tom de voz dele era sibilado, como o de uma cobra.

— Sim. — Fernanda confirmou — Mas por favor, Adam, não penalize o Bruno. Ele teve uma boa intenção.

— Boa? Ele teve uma ótima intenção! — O gerente fez um gesto vago com a mão direita, subitamente abrindo um sorriso discreto — Em circunstâncias normais eu o advertiria, mas... Acho que a ajuda dele pode vir a calhar.

A encarregada arfou, aliviada. Não suportaria a idéia de Bruno ser penalizado por tentar ajudá-la.

— Mas e aí? — Adam fez um gesto circular com a mão, como se pedisse mais detalhes.

Fernanda retesou o corpo, sentindo algo estranho correr-lhe pela espinha.

— Bom... — Ela inclinou a cabeça de lado — Eu peguei o celular do Bruno hoje e entrei no aplicativo de rastreamento.

Adam ajeitou sua postura no sofá.

— E...?

— Acho que descobri onde o verdadeiro “Landau vermelho” está. — Ela soltou, sem se dar tempo para hesitar.

O trovão que explodiu no céu naquele momento pareceu congelar Adam. Ele permaneceu exatamente na posição em que estava, estático, frio, como se a combinação da informação dada por Fernanda adicionada ao som retumbante da descarga elétrica que irrompera nas nuvens o houvesse transformado em algum tipo de gárgula.

Por um instante, a encarregada temeu pela reação dele. Temeu que ele explodisse, fizesse alguma loucura. Temeu que ele desabasse após tanta angústia, tanto sofrimento. Temeu que ele tivesse entrado em estado catatônico. No entanto, Adam lentamente recostou o corpo contra o sofá e passou a língua pelos lábios, ainda olhando na direção de Fernanda.

— E aí? — Foi tudo que ele conseguiu indagar.

Ela entendeu que era hora de dar maiores explicações.

— O aplicativo apontou que o rastreador está localizado em algum lugar depois de Caeté. Mais especificamente, depois de uma cidadezinha chamada Antônio dos Santos. Dá entre uma hora e meia e duas horas de carro.

Adam assentiu vagarosamente, como se estivesse digerindo o que havia acabado de ouvir. Fernanda finalizou:

— E aí, o que vamos fazer?

O som de outro trovão estremeceu a terra, e naquele momento todas as luzes da casa de Adam se apagaram.

Ligeiramente surpresos, os namorados se encararam por um instante, mal enxergando um ao outro. Com as testas franzidas, tentaram entender aquele súbito blecaute. Pondo-se de pé, Adam caminhou até a janela que dava para a rua, afastando as cortinas e olhando ao redor.

— Acabou a luz do bairro? — Fernanda perguntou.

— Definitivamente, não. — O gerente devolveu, quase num sussurro, cerrando os olhos e encarando o enorme prédio marrom do outro lado da rua, cujas janelas transbordavam de luz — Parece que foi só aqui.

A espinha da encarregada pareceu se transformar num estalactite de gelo, fria, rígida e vítrea.

— Como assim “só aqui”? — Ela tentou não parecer nervosa, mas sentiu sua voz tremular.

Porque, ela sabia, aquilo não era mera coincidência. Algo parecia dizer a ela que aquilo não era por acaso. A luz da casa havia sido cortada.

Mais um trovão retumbou entre as nuvens, e a luz prateada do relâmpago apenas contribuiu para deixar tudo com um ar ainda mais fantasmagórico. Andando de costas, Adam voltou até onde a namorada estava.

— Fernanda, venha cá. — Ele chamou — Vamos subir para...

Um som alto se fez ouvir, como se a folha de uma janela tivesse sido batida. Os dois se viraram para olhar, assustados, e perceberam que o som tinha vindo do quarto de Adam, no andar de cima.

Fernanda achegou-se ao gerente, amedrontada.

— O que foi isso?

Adam empurrou a namorada para trás de si, retesando o maxilar e mantendo o olhar fixo nas escadas que davam acesso ao segundo andar. Cada canto da casa, cada sombra, cada móvel, tudo de repente adquiriu um ar suspeito.

— Ligamos para a polícia? — A encarregada indagou, temerosa.

— Não iam chegar a tempo de fazer nada. — Ele sussurrou, pondo-se a andar na direção dos degraus — Venha comigo.

Fernanda segurou-o por um braço.

— Você ficou louco? — Ela se esforçou para não gritar — E se tiver alguém lá em cima?

Outro barulho foi ouvido vindo do quarto do gerente, como se algo tivesse caído ao chão.

Adam virou-se e encarou Fernanda.

— Tem alguém lá em cima. E nós sabemos quem é. — Olhando para o lado, o gerente esticou o braço e pegou um pesado castiçal de prata que estava sobre a mesa — Não vou perder essa oportunidade.

A encarregada pensou em argumentar de volta, mas algo se moveu dentro dela. Uma ânsia, um... desejo de vingança, talvez? Ela só sabia que, de repente, queria acertar as contas com aquele sujeito que havia invadido a casa tão sorrateiramente. Porque sim, ela sabia quem era.

O motorista do Landau vermelho.

Também dando uma olhada ao redor, Fernanda percebeu uma estátua de bronze sobre o aparador da sala e tratou de pegá-la, verificando que ela também era bastante pesada. Adam notou o gesto e assentiu, como que aprovando. Feito isso, caminhou lentamente para a escada e começou a subir, pé após pé, tomando todo o cuidado para não produzir nem o menor ruído. Logo atrás Fernanda o imitava, cautelosa como um gato e atenta a cada movimento ao redor.

A escuridão que os cercava, no entanto, dificultava a caminhada. Cada reflexo, cada sombra que se movia os deixava com os cabelos arrepiados e o pescoço tenso. Mal haviam chegado ao corredor do segundo andar quando outro relâmpago branco espocou sobre a terra. O trovão veio na sequência, alto e impetuoso, e estremeceu a casa de cima abaixo. Adam e Fernanda se assustaram com a súbita explosão, e ela tratou de se achegar a ele.

— Tudo bem. — Ele sussurrou, sem olhar para trás.

A única coisa no campo de visão de Adam era a porta de seu quarto, de onde havia vindo os sons que eles tinham ouvido. Agora, no entanto, reinava o silêncio. Um silêncio sepulcral, inquietante, que parecia saído diretamente de algum filme de Alfred Hitchcock.

O gerente amaldiçoou sua situação por um instante. Ele tinha uma coleção de armas típicas dos praticantes de kung fu e sabia manusear cada uma delas com precisão, mas todas estavam em seu quarto. Mesmo sem elas, no entanto, ele sabia se virar. Mas estava com o braço machucado.

Na verdade, ele admitiu para si mesmo, ele queria apenas dar um jeito de proteger Fernanda. Porque em sua atual situação, ele não conseguiria fazer nada contra quem quer que fosse. Se dentro de um daqueles cômodos tivesse mesmo alguém a fim de fazer-lhes mal, ele não conseguiria fazer praticamente nada. Um suor frio corria por sua testa, mas ele negava-se a fraquejar.

Outro trovão ecoou nas nuvens, e as comportas do céu se abriram. Cachoeiras de água gelada despencaram do céu, enregelando o ar e tornando a noite ainda mais escura. E, quase ao mesmo tempo, outra pancada foi ouvida dentro do quarto de Adam, como se a folha da janela tivesse sido batida novamente. Não dava mais para esperar. Havia alguém ali. O motorista do “Landau vermelho” estava ali, eles tinham certeza. Tinham de tomar uma atitude logo. Não recuariam a esta altura. Não depois de tudo ao que já haviam sido submetidos.

Apenas dando uma rápida olhada de soslaio para Fernanda, Adam suspirou e avançou para a porta, segurando a maçaneta e girando-a, abrindo a porta com violência. O gerente avançou dois passos para dentro do cômodo, empunhando o pesado castiçal que trouxera consigo, mas o quarto estava mergulhado na mais completa escuridão. Fernanda veio logo atrás e parou no batente da porta, segurando a estátua de bronze com as duas mãos e pronta para arremessá-la em qualquer coisa que ela julgasse suspeita.

Olhando em volta, Adam divisou na penumbra que seu guarda-roupa havia sido aberto e uma de suas gavetas havia sido jogada ao chão e revirada. Alguém havia procurado algo ali. As gavetas de sua cômoda também estavam puxadas e bagunçadas, ele pôde perceber. Fernanda também percebeu a desordem no local e aproximou-se de Adam. Ambos pensavam na mesma coisa: o que o invasor estaria procurando ali?

Um repentino raio ziguezagueou no céu, e o relâmpago prateado que o seguiu iluminou o mundo com fulgor, desta vez demoradamente.

E lá estava ele. De pé sobre o batente da janela, segurando-se no beiral do telhado com uma mão e mantendo o que parecia ser uma pasta na outra. Usava uma jaqueta de couro preta e um par de yellow boots. Sua silhueta estava perfeitamente recortada contra o céu, iluminada pelo relâmpago que fulgurava nas nuvens, mas seu rosto era uma mancha negra como o mais distante recanto do universo.

Estavam diante do motorista do “Landau vermelho”. Era ele, sem a menor sombra de dúvidas. Apenas uma silhueta negra, sem rosto, mas que transmitia um ar amaldiçoado e diabólico, quase animalesco. Quase como um espírito maligno.

Adam e Fernanda perderam toda a força de seus corpos. Um súbito mal estar atingiu a encarregada, e o gerente sentiu como se seus braços tivessem se tornado manteiga derretida. Todo o rompante, toda a coragem de momentos antes havia se esvaído como fumaça ao vento. Com os olhos arregalados e sem esboçar a menor atitude, o casal permaneceu em estado letárgico apenas observando aquela figura demoníaca que se sustentava para fora da janela.

E ele percebeu isso. Soltando-se do beiral do telhado e levando dois dedos de sua mão direita à testa numa mesura bastante formal, o motorista do Landau deixou-se cair sobre o muro dos fundos da casa e desapareceu na noite chuvosa. Balançando a cabeça como se tivesse levado um choque e sentindo-se subitamente frustrado e furioso, Adam correu até a janela e olhou em volta, procurando por qualquer coisa. Uma sequência de novos relâmpagos iluminou tudo ao redor, mas o gerente não conseguiu ver nada.

Despertada de seu torpor, Fernanda veio até ele e puxou-o de volta para dentro do quarto, apressando-se em fechar a janela.

— Saia daí! Você ficou maluco? — Ela soltou, segurando um choro que havia se embolado em sua garganta sem ela nem mesmo saber por quê.

Adam fixou seu olhar em um ponto distante, como se nada mais no mundo existisse. Seu cérebro parecia ter entrado em modo stand by. Não conseguia pensar em nada com clareza, a não ser naquela sombra enfadonha que estivera diante dele segundos antes.

Fernanda chegou-se até ele, com os olhos marejados pela aflição.

— Adam! — Ela segurou-o pelos ombros, com um semblante visivelmente preocupado estampado no rosto — O que vamos fazer agora?

Ele permaneceu com o olhar distante, mas a voz da namorada soou pelos recantos de seu cérebro como algum tipo de combustível. Uma idéia, uma inspiração altruísta e perigosa brotou em sua mente como um letreiro de neon. Toda a angústia a que ele havia sido submetido desde que voltara ao Brasil parecia estar servindo como lenha para abastecer o fogo que queimava dentro dele. Toda a humilhação, todos os desaforos sofridos pareciam estar servindo como uma alavanca que o impelia adiante com aquela idéia maluca.

E sem nem pensar muito, Adam deixou seus lábios dizerem:

— Me dê a localização do Landau.


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