O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 28
Capítulo 27




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A chuva se acumulou durante a madrugada e caiu de vez pela manhã. O céu se enegreceu de forma assustadora, obrigando os motoristas a transitarem com os faróis de seus veículos acesos. Um vento forte, gelado e cortante soprava impetuosamente, transformando as pesadas gotas de água que caíam das nuvens em partículas menores que pareciam ainda mais geladas, como um esguicho fantasmagórico, e deixavam aquele sábado com um ar funesto.

E Adam teve que insistir muito para que Fernanda fosse trabalhar. Não por causa da chuva, mas porque ela havia feito companhia a ele durante toda a madrugada no hospital e quase fez uma cena quando ele disse que iria até a delegacia conversar com Guilherme sobre o que havia acontecido. O gerente não achou ruim que ela o acompanhasse até a finalização de seu atendimento médico, mas se negou veementemente a deixá-la fazer-lhe companhia até a delegacia.

— Quem quer que seja esse desgraçado, Fernanda, ele não tem controle sobre nossas vidas. — Ele havia dito, em tom irredutível — Não podemos abrir mão do que fazemos só por medo ou precaução. Quero que você vá, sim, trabalhar. Vamos ter plantão hoje para compensar o feriado da Independência. Além do mais, eu não vou estar na empresa, e quanto mais você puder me ajudar por lá, melhor.

E ela havia concordado. Apesar de extremamente abalada, seguira para a Transportes Peixoto como se nada tivesse acontecido e trabalhava normalmente, distribuindo tarefas, cobrando performances de entregas e ocupando a mente em resolver os problemas típicos de seu setor.

Mas internamente ela sabia que estava apenas preenchendo seu tempo até ter uma oportunidade de falar com Bruno. Contaria para ele o que havia acontecido e pediria a ele que verificasse se o truque com o rastreador havia dado certo. Na verdade, ela ansiava por isso. Ansiava no sentido mais pavoroso possível, pois temia de mil formas diferentes que o rastreador tivesse se soltado do Landau e caído pela rua. Sem conseguir se conter, a encarregada enviou um último e-mail e levantou-se, disposta a procurar pelo gestor de frota, que ainda não havia aparecido no escritório. Ela caminhou até o meio do galpão e parou Kenner, o técnico de armazém, um rapazinho estilo nerd com quem Bruno costumava conversar sobre carros.

— Bom dia, Kenner. — Ela o chamou — Tudo bem?

— Oi, Fernanda! Vou bem, sim, e você?

— Estou ótima. — Ela devolveu a cordialidade — Você viu o Bruno por aí?

Ele apontou para o pátio da empresa através de uma das docas abertas.

— Está apostando corrida com pneus.

— Oi?! — A encarregada não entendeu.

Kenner riu, balançando a cabeça.

— O Bruno tirou o dia pra trocar pneus dos caminhões. — Ele cruzou os braços — Mas já vi três pneus passarem rolando pelo pátio e ele correndo atrás.

Fernanda bateu com a mão espalmada na testa. Bruno sendo Bruno...

— Bem, eu acho que vou procurá-lo, então. Eu preciso...

— Você não vai precisar procurar. — Kenner cortou-a, apontando para o pátio novamente.

A encarregada se virou e viu um pneu de carreta rolando pelo pátio, enquanto uma voz longínqua berrava:

 Ooooow, desgraça!

E em menos de dois segundos um Bruno descabelado, vermelho e esbaforido passou correndo pela doca com os braços estendidos e espadanando água para todos os lados, segurando uma chave de roda.

 Rola não, filho da puta! Volta aqui, demônio! Borrachudo do inferno!

E sumiu.

Apenas Bruno sendo Bruno.

Ainda rindo e balançando a cabeça, Fernanda despediu-se de Kenner e saiu do armazém, contornando-o e caminhando até o fundo do pátio, numa área de uso exclusivo do setor de Frota. Correndo da chuva e abrigando-se debaixo do telhado da rampa de manutenção dos veículos ao lado de um reluzente Axor branco, a encarregada aguardou pacientemente até que o gestor de frota voltasse arrastando o pneu da carreta a tiracolo.

— Você está legal? — Ela perguntou, vendo o rapaz chegar.

Bruno largou o pneu ao lado do caminhão e debruçou-se sobre o para-barro traseiro, frouxo como uma maria-mole e ensopado como se tivesse caído de roupa dentro de uma piscina.

— Tô morto. — Ele soltou, bufando — Já é o sexto pneu que troco só hoje.

— E porque você não manda os caminhões para a borracharia? — Fernanda cruzou os braços.

Bruno ergueu a cabeça, tirando seu celular e seu crachá do bolso e largando-os sobre o tanque de combustível do caminhão.

— A cada troca de pneu que eu mesmo faço, economizo entre 120 e 200 reais para a empresa. E quanto mais eu conseguir economizar, melhor vai ser a minha performance financeira e maiores as chances de eu receber um aumento de salário. — Ele respirou fundo e bufou de novo — Vale a pena o esforço.

Fernanda ergueu uma sobrancelha, segurando um sorriso debochado.

— É, seu argumento é bom, mas... Você precisa aprender a escorar os pneus. — Ela parou a frase no meio, apontando para o pátio da empresa.

— O quê? — Bruno não entendeu.

A encarregada apenas fez um gesto de cabeça e o rapaz se virou para olhar, percebendo que o pneu que ele havia trazido estava rolando para longe novamente.

— Aaaaaaah, droga! — Ele se levantou e saiu correndo de novo — Volta aqui, capetaaa!

Fernanda não se conteve e desatou a rir novamente. Não pelo infortúnio de Bruno, mas da reação exagerada dele. Não havia nada que ele fizesse que não fosse cômico. O bom e típico sagitariano.

Cruzando os braços, ela suspirou e dispôs-se a esperar que o gestor de frota voltasse para que ela lhe contasse sobre o ataque do Landau e pedir a ele que tentasse acionar o dispositivo de rastreamento que ela jogara contra o sedã. Se Bruno conseguisse, ela descobriria o “esconderijo” do veículo e levaria a informação até Guilherme. O caso seria solucionado graças a uma idéia relativamente simples do amalucado gestor de frota. Agora ela se sentia um pouco mais otimista.

Segurando um sorrisinho no canto da boca, Fernanda deu uma olhada em volta e percebeu o celular de Bruno largado sobre o tanque de combustível do caminhão cujo pneu ele estava trocando, e de repente algo se revirou dentro dela. Uma certa apreensão, talvez. Durante a madrugada, Adam havia perguntado a ela mais duas vezes sobre o que ela havia jogado contra o Landau, e em nenhuma das vezes ela havia respondido. Mesmo que Bruno tivesse tido a melhor das intenções ao ajudá-la e mesmo se a intervenção dele de fato levasse à localização de quem quer que estivesse dirigindo o Landau, ele ainda assim havia se utilizado de recursos da empresa para tal e seu emprego estaria em risco. Além disso, ela não podia deixar de lembrar que, no fim das contas, estavam lidando com uma mente perturbada, doentia, e que qualquer interferência poderia adicionar quem quer que fosse à lista de perseguidos do Landau sem nenhuma hesitação.

Fernanda sentiu-se subitamente mal por querer envolver Bruno naquilo. Ele não tinha nada a ver com o que havia acontecido a Alan doze anos antes, que era a premissa principal das ações do motorista do Ford bordô, e nem com a investigação policial em andamento, e ela não queria que o gestor de frota corresse nenhum risco desnecessário. Movida então por uma súbita inspiração, ela se adiantou e pegou o celular de Bruno sobre o tanque do Axor, desbloqueando-o.

Ela correu os dedos pelo menu principal do aparelho e percebeu um ícone azul em formato de globo com uma lupa por cima, sob o qual se lia SpyTrac. Era o app de rastreamento que a Transportes Peixoto usava para monitorar seus caminhões. Fernanda tocou sobre ele e esperou. O login foi automático, e logo se abriu na tela do celular um enorme mapa do Brasil ponteado por incontáveis pontos verdes e vermelhos. Por baixo do mapa havia as opções Empresa e Filial, e a encarregada selecionou T. Peixoto e BHZ entre as opções salvas. O mapa na tela reduziu-se para o estado de Minas Gerais, mas o número de luzinhas coloridas na tela ainda era enorme. Não havia a menor possibilidade de descobrir qual deles seria o do rastreador jogado contra o Landau.

Fernanda bufou, frustrada, soltando um xingamento entre os dentes. Ela não conhecia o aplicativo e pouquíssimas vezes havia ouvido Bruno falar com alguém na empresa sobre rastreamento de veículos. Balançando a cabeça em negativa, correu os dedos pela tela do aparelho e intentou colocá-lo de volta sobre o tanque do caminhão, mas um pequeno detalhe na parte inferior da tela chamou-lhe a atenção.

A encarregada aproximou o telefone do rosto e percebeu que havia uma aba minimizada na parte inferior da tela do SpyTrac onde se lia Nº de frota e Localização. Por intuição, Fernanda correu o dedo indicador pela tela do celular e uma janela se abriu, mostrando uma tabela onde havia centenas de números de frota informados e suas respectivas localizações através do estado. Fazendo uma leitura objetiva dos números de frota ali dispostos, a encarregada reconheceu alguns dos caminhões de entrega de sua filial. Alguns outros números pareciam ser dos linehauls, as carretas que faziam viagens entre filiais.

Passando a planilha para cima e segurando um arquejo de surpresa, Fernanda percebeu que o último rastreador listado, à frente do qual piscava uma luz vermelha, era diferente de todos os demais. Primeiro, porque no campo onde deveria estar o número de frota havia a palavra Indefinido em letras brancas garrafais. Segundo, porque sua localização não estava posicionada em nenhuma rodovia ou rua urbana, mas sim em um ponto a nordeste da Serra da Piedade, depois da cidade de Caeté, e indicada apenas em coordenadas.

Aquele rastreador não estava sendo utilizado por um caminhão da Transportes Peixoto. Porque aquele rastreador, ela teve certeza, estava preso à traseira do “Landau vermelho”, onde quer que ele estivesse. Com um sentimento estranho e gelado virando-lhe o estômago e fazendo-a sentir como se um buraco negro enorme se abrisse em sua barriga, Fernanda selecionou aquele rastreador na planilha.

As luzes coloridas sumiram e o mapa de Minas Gerais se tornou menor. Uma única luzinha vermelha piscava na tela agora.

Solitária. Escarlate.

Maldita.

O sentimento que inundava Fernanda naquele momento era impossível de ser descrito. Era uma mistura de enregelar do estômago com frio na espinha com tonteira que estava quase fazendo-a cair de costas. Sem saber exatamente o que fazer, ela olhou em volta, entre as coisas de Bruno, e procurou uma caneta e um pedaço de papel. Encontrando-os, rapidamente anotou as coordenadas indicadas pelo rastreador e guardou o papel no bolso de sua calça. Depois saiu do aplicativo SpyTrac e colocou o celular de Bruno de volta onde estava.

Sem se preocupar em esperar o rapaz voltar, ela se virou e correu de volta para o armazém. Uma ideia maluca passava por sua cabeça, estranha, algo rancorosa e vilanesca e estranhamente satisfatória, e a confusão de sentimentos que a afligia naquele momento a estimulava a colocá-la em prática. Mas antes disso, ela precisava descobrir o ponto exato indicado por aquelas coordenadas.

O motorista do Landau não seria o único a jogar aquele jogo.

 

o—o—o

 

Guilherme não soube como receber aquela informação.

Estava a mais de dois minutos calado, com a boca aberta num “O” de espanto, encarando Adam sem uma expressão definida e tentando digerir tudo que o gerente havia acabado de lhe contar.

Jefferson estava detido desde o dia anterior e o “Landau vermelho” havia sido encontrado, apreendido e agora estava sendo minuciosamente analisado na oficina da delegacia. Aquele relato de Adam não se encaixava ao caso, como uma peça sobrando em um quebra-cabeça já concluído.

E, ironicamente, Adam sentia exatamente a mesma coisa. Ao ser informado pelo detetive de que Jefferson estava preso e o Landau já havia sido localizado, seu cérebro quase deu um nó. Guilherme havia dito que o sedã que haviam apreendido estava com marcas de tiros e colisões pela lataria, mas o Ford bordô que atacara a ele e Fernanda na noite anterior brilhava como um zero-quilômetro. Não fazia sentido.

Por fim, foi Guilherme quem quebrou o silêncio.

— Isso não faz o menor sentido. — Ele conseguiu dizer, num tom de voz comedido, mais para si mesmo do que para Adam.

O gerente alteou as sobrancelhas, num gesto de puro desaforo.

— Ah, claro, eu decidi destroncar meu braço por acaso e quis inventar uma desculpa pra isso. – Ele resmungou, ranzinza, mostrando o braço esquerdo apoiado em uma tipóia.

— Não foi o que eu quis dizer. — Guilherme emendou, apoiando os cotovelos na mesa e unindo as mãos diante do rosto.

— Mas foi o que toda a sua linguagem corporal quis dizer. Eu quase fui morto, Guilherme. De novo! — Adam rebateu, alterando a voz — Quem quer que esteja por trás dessa zona toda, ainda não foi preso. O Landau que vocês acharam não é o “Landau vermelho” verdadeiro. Você não pode cruzar os braços agora.

O detetive recostou o corpo contra a cadeira, incomodado, mas não disse nada. Ele sabia que Adam estava certo. E se havia mesmo mais um Landau à solta por aí, Guilherme o encontraria. Mas até lá, teria que repensar todo o caso novamente. E para isso, Adam poderia ser útil.

Mas antes havia algo que ele queria fazer. Ele se pôs de pé e chamou o gerente:

— Venha comigo.

Dito isso, seguiu para fora de sua sala, no que foi seguido pelo gerente. Seguiram pelo corredor em direção aos fundos da delegacia, desceram alguns lances de escada e logo estavam no pátio dos fundos. Atravessaram o pátio depressa para escapar da chuva e caminharam até um pequeno prédio de um único andar, diante do qual havia várias viaturas, algumas delas desmontadas.

— Esta é a nossa oficina. — Guilherme anunciou — É onde fazemos a manutenção das nossas viaturas e onde fazemos perícia e inspeções em veículos apreendidos quando necessário.

Adentraram o local e logo deram de cara com o monolítico Ford bordô parado bem no meio do recinto. Adam estacou ao vê-lo e parou bem na entrada na oficina, como se o sedã fosse, de alguma forma, o fazer mal apenas pelo fato de estar ali.

Guilherme percebeu.

— Este foi o Landau que apreendemos ontem. — Ele anunciou, contornando o sedã e apontando alguns detalhes na carroceria — Ele estava abandonado algumas ruas abaixo da casa do Jefferson. Como pode ver pelas marcas de tiros na capota e pelos estragos na dianteira, é o mesmo veículo que nos atacou aqui na frente da delegacia.

Mas Adam permaneceu quieto, fitando o Landau com os olhos ligeiramente arregalados. Havia algo naquele carro que o estava inquietando. Algo errado. Apesar de parecer idêntico ao seu próprio Landau, o sedã danificado diante dele parecia ser um veículo completamente diferente. Vê-lo assim, tão de perto, o permitiu sentir isso.

O detetive analisou o gerente por um momento.

— Está tudo bem, Adam? — Ele indagou.

O outro não respondeu. Saindo do torpor em que havia entrado, avançou com passos hesitantes na direção do Landau e tocou o capô com a mão direita, como se quisesse sentí-lo. Depois, caminhou ainda mais lentamente pela lateral direita do veículo, avaliando cada milímetro da extensão da carroceria. Parou por um momento para observar o interior do sedã, franzindo a testa, e depois seguiu em frente.

Guilherme avaliava a atitude de Adam em silêncio. O gerente parecia estranhar aquele carro, e o sexto sentido do detetive apitava e fazia sua nuca coçar. Havia algo interessante naquilo.

Terminando de contornar o sedã bordô e parando diante do enorme porta-malas, Adam sentiu que o ar lhe faltava. Seus olhos se esbugalharam. Seu coração pareceu bater descompassado, e sua pressão pareceu oscilar. Um suor estranhou correu-lhe pela fronte, e ele balançou a mão direita no ar num gesto mole, apontando na direção do veículo.

Porque aquele veículo em si era exatamente o que ele precisava para provar sua inocência diante de tudo que estava acontecendo. Na verdade, era a prova cabal de que outra pessoa estava tentando incriminá-lo.

O detetive cruzou os braços e aproximou-se dele, curioso.

— O que foi, Adam?

Ele permaneceu com o braço estendido na direção do sedã, mas se virou para olhar para Guilherme. Uma expressão confusa estava estampada em seus olhos.

— Este carro não é um Landau.


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