O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 27
Capítulo 26




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Foi o ronco monstruoso do escapamento do Landau que chamou a atenção de Adam. Antes mesmo de interromper o beijo que estava dando em Fernanda, ele abriu os olhos e percebeu as luzes do Ford sedã vindo rápido na direção deles.

Agindo por puro instinto e com reflexos rápidos como os de um gato, o gerente segurou a namorada pelos ombros e girou o corpo para a esquerda, levando-a consigo. Fernanda nem teve tempo de perguntar o que estava havendo, pois o Landau atingiu a guia do meio-fio e subiu na calçada com violência, raspando o para-choque e o assoalho no concreto e soltando faíscas assustadoras. Sua suspensão rangeu e seu escapamento duplo retumbou como o urro de um dinossauro enorme e sombrio. O chão estremeceu ligeiramente com o choque.

Ainda meio perdidos, Adam e Fernanda se viraram para olhar, sem acreditar no que viam diante de si. Aquela carroceria bordô enorme, que parecia ter dois quilômetros de comprimento, coroada por aquela capota preta sinistra e sustentada por aqueles pneus de tarja branca que davam ao veículo um ar de limusine funerária. Os canos de descarga expeliam uma fumaça tênue, mas ecoavam um som borbulhante e potente que dava calafrios.

Mas o pior de tudo eram os vidros. Escuros, pretos como uma noite sem estrelas, mas que passavam a impressão de olhos malignos que perscrutavam tudo à sua volta. Adam e Fernanda viam suas imagens refletidas nas janelas do carro com nitidez, mas a ideia de que alguém os observava por trás daqueles vidros era perturbadora.

— Não... Não é possível... — Fernanda gaguejou, estupefata.

Adam, ao seu lado, estava com a boca semiaberta, mas não emitia som algum. Seu cenho estava franzido e seus olhos arregalados no mais puro choque.

Um barulho de engate foi ouvido, e as luzes de ré do sedã se acenderam. O potente motor V8 foi acelerado, roncando no melhor estilo dos muscle cars americanos, e o Landau começou a rodar lentamente para trás, alinhando-se na direção do casal petrificado que encarava o veículo.

Um arrepio gelado subiu pela espinha de Fernanda ao ver aqueles quatro faróis e aquela grade cromada apontados em sua direção. Ela segurou o braço de Adam com as duas mãos e puxou-o na direção do portão da casa dele.

— Adam, vamos sair daqui. — Ela conseguiu dizer, elevando o tom de voz.

Mas o gerente permaneceu firme onde estava. Seu único movimento era um balançar lento de cabeça em negativa, como se o cérebro dele se recusasse a processar a imagem daquele Landau ali, parado no meio da rua. Aquele veículo parecia ter algo hipnótico, que colocava as pessoas que o fitavam em algum tipo de transe mortífero.

Era macabro.

O motor do Ford rugiu novamente e as luzes de ré se apagaram. Fernanda percebeu.

— Adam... — Ela puxou-o novamente, com mais força — Adam, pelo amor de Deus!

Ele piscou, como se voltasse a si, e virou a cabeça na direção da namorada. E isso despertou a reação do sedã. Seus pneus traseiros cantaram alto e a traseira rabeou quando o veículo arrancou. Os quatro faróis circulares pareceram saltar para frente, como se quisessem esmagar Adam e Fernanda contra o muro.

Parecia algo certo, mas os reflexos rápidos do gerente os salvaram mais uma vez. Percebendo a aproximação do Landau, Adam conseguiu segurá-la pelos braços e empurrá-la para longe. O sedã atingiu o meio-fio com força novamente e mais faíscas brilhantes irromperam do para-choque, e o gerente se deu conta de que não teria tempo hábil para sair da frente do veículo. O rugido alto do motor V8 se aproximou rápido, se aproximou até encobrir todos os demais sons do mundo, e o Landau colidiu contra o muro. Lascas de concreto foram atiradas para longe como estilhaços de uma explosão e uma nuvem de poeira se ergueu. O som do choque foi abafado, mas ao mesmo tempo ensurdecedor.

Caída ao chão, Fernanda assistiu a tudo com riqueza de detalhes.

— Adaaam! — Ela berrou, lágrimas quentes instantaneamente surgindo em seus olhos.

Mas tudo que se ouvia era o ronco borbulhante do escapamento duplo do Landau. A poeira levantada pela colisão não deixava ver nada além da luz tênue dos faróis prensados contra o muro. Fernanda balançava a cabeça em negativa, recusando-se a acreditar no que havia acabado de testemunhar. Baixando o rosto, as lágrimas correram livremente.

O sedã continuava estático, como se apreciasse o momento. Macabro. Sinistro.

Diabólico.

Um estalo metálico se fez ouvir, como uma pancada. Fernanda nem deu atenção. Não queria olhar para aquele Landau medonho. Outro estalo se seguiu, seguido de outro, e mais outro. Aquilo não provinha do motor do Ford. Vencida pela curiosidade mas sentindo-se extremamente esgotada, a encarregada ergueu os olhos e o viu. A nuvem de poeira estava se dissipando com o vento, e Fernanda pôde ver um vulto sobre o capô quilométrico do sedã.

Era Adam, caído de costas desajeitadamente sobre a dianteira do Landau e tentando se reerguer.

Quando ele dera por si que não conseguiria escapar do ataque do veículo fugindo para os lados, seu único recurso foi saltar o mais alto que suas pernas conseguiam, permitindo que o capô passasse por baixo dele e ele aterrissasse sobre a carroceria do sedã. Empoeirado e aparentemente machucado, o gerente agora tentava se levantar.

Com muita dificuldade e apoiando-se apenas com o braço direito, Adam soergueu o corpo e se virou na direção da namorada. Fernanda soltou um som nervoso pela boca, uma mistura de risada com suspiro de alívio. Sim, ele estava bem, ela pôde notar.

O motorista do Landau, entretanto, também notou. O som do motor V8 sendo acelerado foi a comprovação de que precisavam. Engatando a ré novamente, o sedã recuou de volta para a rua com rapidez, fazendo com que Adam rolasse pelo capô e caísse de costas na calçada. Fernanda saiu do torpor em que estava e correu até ele.

— Adam!

Chegou até ele e ajoelhou-se, segurando-o pelos ombros e ajudando-o a se sentar. Ele soltou um gemido de dor.

— Ai! — Ele pressionou o braço esquerdo contra o corpo, gemendo e fechando os olhos — Acho que destronquei o braço.

Sua bochecha direita, suas pernas e seu peito estavam ralados, com sangue aflorando na pele. Fernanda permaneceu onde estava, sustentando-o. Quando ele finalmente abriu os olhos para fitá-la, havia neles um semblante triste.

— E agora? — Ela perguntou, sabendo o que aconteceria em seguida.

— Saia daqui. — Ele devolveu, com voz firme.

Ela fez que não.

— Você sabe que não vou te deixar aqui sozinho. — Ela concluiu, melancólica.

Ele franziu a boca, resignado.

— É, eu sei.

E o rugido do escapamento do Landau roncando do outro lado da rua era o ponto final daquele diálogo. A luz que provinha daqueles faróis circulares era como uma aura quente que os envolvia e, de uma forma estranha, os confortava. Porque aquilo acabaria ali. O “Landau vermelho” finalmente cumpriria seu objetivo final.

Cientes disso, achegaram-se um ao outro com os olhos fechados e apenas esperaram.

O som alto de pneus cantando preencheu o ar, como se o sedã ensandecido comemorasse sua vitória com um grito histérico. Suas rodas giraram em falso e sua traseira derrapou de lado novamente quando ele arrancou com ímpeto, como se ele debochasse da situação do casal prostrado sobre a calçada. E sua grade dianteira de filetes cromados verticais era como um sorriso sinistro, doentio, saído diretamente de algum recanto obscuro do Inferno.

Com os olhos fechados e as testas unidas, Adam e Fernanda escutavam o som do motor V8 cada vez mais alto, mais alto, e esperavam pelo momento em que o som simplesmente os alcançaria. O mundo parecia ter entrado em câmera lenta ou em algum efeito slow motion do Snapchat, pois o rugido do Landau que avançava na direção deles parecia aumentar de maneira leve e gradual apesar de toda a sua potência. O ronco do sedã estava ainda mais alto, mais alto, e então... Um baque surdo e repentino, um som metálico estilhaçante se fez ouvir, seguido pelo chiado grave de uma frenagem brusca e pneus se arrastando. E o som do motor do Landau agora parecia mais distante e incerto. Confusos, Adam e Fernanda abriram os olhos lentamente e se depararam com uma cena improvável.

O Landau havia chegado bem perto de atingi-los de fato, mas um ônibus da linha 2950 havia virado a esquina da Rua Portugal em alta velocidade e se deparado com o sedã atravessado no meio da rua. Sem conseguir frear a tempo, o ônibus atingiu o para-lama traseiro esquerdo do sedã e o fez rodar sem controle de volta para a rua.

O motorista do ônibus puxou o freio de mão do veículo e desceu, vindo conferir o estrago no coletivo e levando as mãos à cabeça. Olhando de lado, percebeu Adam e Fernanda na calçada.

— Ei! — Ele chamou — Vocês estão bem?

— Estamos! — Fernanda gritou de volta — Mas cuidado! Saia daí!

Ela apontava para o Landau com aflição. O motorista do ônibus percebeu o desespero dela e caminhou na direção do Ford bordô.

— Ei, você! O que pensa que está fazendo? — Ele gritou para o veículo.

O motor do Landau parecia ter se desregulado com o impacto do ônibus, e a parte traseira da carroceria parecia empenada. O som que provinha dos canos de descarga parecia um potente estertor de morte, como uma máquina agonizante.

— Saia daí e venha ver o que você fez! — O motorista do ônibus gritou para o sedã, ainda mais próximo.

De onde estava, Adam segurou Fernanda pelo braço e afastou-a de si.

— Faça alguma coisa. — Ele apontou para o motorista do ônibus com um gesto de cabeça.

Fernanda assentiu, recolhendo precariamente sua bolsa no chão, e se pôs de pé, correndo para a rua e gritando:

— Não! Senhor, afaste-se desse carro! — Ela apontava para o homem enquanto corria — Saia daí!

O motorista do ônibus parou onde estava e se virou para Fernanda, assustado com a atitude dela, e o Landau pareceu aproveitar essa distração para reagir. Seu motor foi acelerado e o veículo se pôs em movimento, rodando lenta e erroneamente rua acima. Seu eixo traseiro havia empenado com a colisão do ônibus e o sedã parecia mancar, mas ele ainda rodava. Ele ia fugir, como sempre fazia.

Fernanda hesitou por um segundo ao ver aquilo, sentindo uma pontinha de alívio surgindo dentro de si ao ver o Ford bordô indo embora, mas a voz de Bruno estalou em sua mente tão repentinamente quanto um tapa na testa.

Se o Landau aparecer e você conseguir colocar o rastreador nele, você me liga e eu imediatamente aciono o sinal de rastreamento dele, ele havia dito a Fernanda dias antes, após sua apresentação no Minascentro, ao entregar-lhe dois aparelhos de rastreamento.

Sem pensar muito, a encarregada abriu sua bolsa e tateou seu interior às cegas, procurando os dois pequenos aparelhos que havia deixado ali. Ela sabia que não teria outra oportunidade tão boa quanto aquela para colocar essa idéia em prática, então ela precisava aproveitá-la, e depressa. O Landau já estava quase chegando na esquina da rua.

Ainda tateando o interior da bolsa, Fernanda amaldiçoou a si mesma por carregar tantos objetos ali. Sem paciência e com medo de o sedã escapar, ela virou todo o conteúdo da bolsa no chão. Ainda caído sobre a calçada, Adam observou a atitude dela, intrigado. O motorista do ônibus também percebeu o que ela fazia e se aproximou.

— Está precisando de ajuda, moça?

Mas ela logo achou o que queria. Um aparelhinho branco, semelhante a um isqueiro, caído logo ao lado de seu estojo de maquiagem. Ela o pegou com firmeza, se levantou e correu atrás do Landau.

Ela se lembrava vagamente de que Bruno havia dito que um dos rastreadores acenderia uma luz verde e o outro uma luz vermelha na tela do aplicativo de rastreamento em seu celular, mas Fernanda nem se deu ao trabalho de verificar qual rastreador era aquele. Ela apenas correu, arfando pesadamente, tentando alcançar o Landau que já dobrava a esquina da rua.

E o motorista do sedã pareceu notar a aproximação dela, pois o som que provinha dos canos de descarga aumentou consideravelmente e o carro começou a manquitolar ainda mais intensamente sobre seu eixo empenado. Fernanda estava a menos de 15 metros do veículo e, ao perceber que o mesmo acelerava, decidiu arriscar.

Reunindo toda a força de seu braço e deixando-se ser impulsionada pelo turbilhão de sentimentos que a perturbava naquele momento, ela ergueu a mão e arremessou o pequeno rastreador na direção do veículo. O tempo pareceu se fragmentar e rolar lentamente como água na sarjeta. Tudo pareceu ficar suspenso no ar, como se o mundo estivesse mergulhado numa bolha de apreensão, até que, após dois ou três segundos, um som metálico foi ouvido.

O rastreador havia atingido o Landau.

Aquilo, porém, pareceu espicaçá-lo ainda mais. O escapamento duplo rugiu e o carro acelerou com ímpeto, rangendo o pneu traseiro esquerdo, que rodava de banda devido ao eixo empenado. Sua sinfonia desconjuntada preencheu a noite por alguns instantes, até que finalmente suas luzes traseiras sumiram de vista e o veículo desapareceu.

Fernanda ainda permaneceu algum tempo parada no meio da rua, respirando fundo. Ela havia, sim, acertado o Landau. Mas saber se o rastreador havia se fixado à lataria do veículo era outra história. Todavia, ela confirmaria isso com Bruno mais tarde. Voltando a si, se virou e correu de volta até Adam, que era ajudado pelo motorista do ônibus a se pôr de pé.

Fazendo uma avaliação rápida, Fernanda percebeu que, além do braço possivelmente destroncado, ele havia batido a cabeça em algum lugar, pois um hematoma roxo se formava em sua fronte esquerda. O canto esquerdo de sua boca também estava cortado, mas não chegava a sangrar. Ao ver a namorada se aproximar, ele tentou endireitar sua postura.

— Você está bem? — Ele perguntou, esticando a mão direita e segurando-a pelo braço.

Foi um toque firme, mas gentil e cauteloso, repleto de angústia e preocupação. Fernanda pousou sua mão direita sobre a dele e sorriu-lhe.

— Estou, sim.

A troca de olhares que se seguiu foi mágica, como todos os momentos íntimos deles. Apesar do que havia acabado de acontecer, mais uma vez eles deixaram o sentimento que fluía entre eles falar mais alto. Sem poder se conter, a encarregada se aproximou e enlaçou Adam com os braços, recostando a cabeça sobre o ombro dele.

Percebendo que iria sobrar, o motorista do ônibus pigarreou e tratou de se manifestar.

— Vocês eu não sei, mas eu vou chamar a polícia. Não entendi nada do que aconteceu aqui.

E enquanto o homem se afastava, Adam sussurrou:

— O que foi aquilo que você jogou no Landau?

Fernanda pareceu ficar um pouco mais tensa. Se revelasse do que se tratava, ela colocaria o emprego de Bruno em risco, mesmo sendo por uma boa causa. E apesar de amalucado, o gestor de frota havia sido o único até então a aparecer com uma boa idéia para descobrir quem estaria por trás do volante do “Landau vermelho”.

Desvencilhando-se do namorado e se afastando um pouco, ela escolheu bem as palavras e fez um gesto vago.

— Apenas algo que eu gostaria de testar. — Ela respondeu — Você sabe... Um palpite.

Um “palpite”, ela havia dito.

Um plano que ela torcia arduamente para que desse certo, era o que ela pretendia dizer.


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