O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 24
Capítulo 23




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O dia amanheceu extremamente nublado. Uma repentina massa de ar frio chegou à região metropolitana de Belo Horizonte durante a madrugada e deixou o céu enevoado. Uma garoa fina caía ininterruptamente desde o início da manhã e não dava sinais de que diminuiria ao longo do dia.

Mas como de costume, o clima não incomodava Guilherme. Ele até preferia os dias frios, pois sentia-se mais à vontade para pensar enquanto degustava um delicioso cappuccino. Havia ido para a delegacia mais cedo do que o habitual, a fim de revisar todo o caso do “Landau vermelho” mais uma vez e se preparar não apenas para tomar os depoimentos de Adam e Fernanda, mas também para ouvir Willian e Bárbara, que ele havia tido a precaução de convocar.

Havia assistido várias vezes ao vídeo da câmera de segurança que havia flagrado o capotamento do CrossFox de Gustavo, pois até então era a única imagem disponível do motorista do Landau. O detetive já tinha certeza de que o “Landau vermelho” não era o mesmo Landau que Adam havia mandado restaurar, mas quem dirigia o sedã ainda era uma incógnita. Nas imagens do vídeo, o motorista havia descido do veículo e caminhado até o Volkswagen em chamas, mas as sombras dos postes e das árvores da rua não permitiram que seu rosto fosse focalizado.

Mas para Guilherme esse detalhe já não tinha mais tanta importância. Pelo porte físico do motorista, pelo penteado e até por sua forma de andar, ele já sabia que aquele não era Adam. O gerente tinha os ombros mais largos e andava mais ereto, de forma mais elegante, enquanto o motorista do Landau parecia mais magro e desleixado. O cabelo de ambos também era bastante diferente. Adam sempre usava um penteado impecável com topete pompadour alto, enquanto o motorista do Landau parecia ter cabelos mais longos e repicados. No entanto, o detetive sabia que o fato de Adam não ser o motorista do “Landau vermelho” não o inocentava de imediato, apesar de deixar óbvio que ele não havia tido ligação direta com as mortes. Guilherme se pôs de pé e caminhou até um quadro branco na parede oposta, onde ele havia feito algumas anotações e fixado algumas fotos. No topo, ele havia colocado a matéria do jornal Super sobre a morte do delegado Lacerda e uma foto de Adam. Por baixo, havia traçado duas linhas em V como num organograma, cada uma apontando para uma das linhas de investigação que ele tinha até então.

A da direita, coroada pelo título “Vingança?”, desenrolava sobre uma possível retaliação de Adam pela morte do irmão. Por mais que não fosse o gerente quem estivesse ao volante do “Landau vermelho”, ele poderia muito bem ser o mandante das mortes. Sustentava esse raciocínio o fato de que todas as pessoas mortas tinham relação direta com a morte de seu irmão Alan. E a linha da esquerda, intitulada pelo detetive de “Acionistas?”, desenvolvia a idéia de que um dos acionistas e sócios de Antônio Peixoto, que esperava receber parte do patrimônio do empresário após seu falecimento, sentiu-se prejudicado pelo retorno de Adam ao país e estava tratando de incriminá-lo com as mortes, a fim de levá-lo à cadeia ou afastá-lo do país novamente e abrir mão das empresas deixadas por seu pai. Esse fato era sustentado principalmente pelo fato de o gerente possuir álibis — até então — sólidos para os assassinatos e, contraditoriamente à primeira linha de investigação, não ser ele quem dirigia o “Landau vermelho”.

Guilherme levou as mãos à cintura. Com base nos depoimentos que ele ouviria dali a pouco, ele decidiria qual rumo dar à sua investigação. O detetive suspirou e voltou para sua mesa, se sentando e finalizando o cappuccino que estava bebendo. Duas batidas na porta, e Amanda passou a cabeça pelo batente.

— Eles chegaram, Guilherme. — Ela anunciou.

O detetive assentiu com a cabeça, pondo-se de pé e pegando os arquivos do caso do “Landau vermelho”. Ajeitando o paletó e a gravata, Guilherme seguiu pelo corredor acompanhado por Amanda até chegar diante da sala de interrogatório, onde Fernanda e Adam já o esperavam. Cumprimentaram-se de maneira bastante formal e o detetive logo convidou Adam e adentrar a sala de interrogatório. O gerente assentiu e acompanhou Guilherme para dentro do recinto, cujo interior possuía apenas uma mesa com duas cadeiras no centro. Adam parecia um pouco tenso, mas de maneira geral aparentava estar bastante seguro.

Assim que se sentou e abriu a pasta que trazia consigo, Guilherme tirou um pequeno gravador de dentro do bolso e ligou-o, colocando-o sobre a mesa à sua frente. Sem parar sequer para tomar ar, o detetive deu início ao interrogatório. Não foi nada muito diferente da conversa que haviam tido anteriormente na Transportes Peixoto e na casa de Adam, exceto pelo fato de que Guilherme especificou as datas e horários aproximados dos assassinatos e pediu ao gerente que dissesse onde e com quem ele estava. Para as mortes do delegado Lacerda e de Ramon, Adam disse estar em casa. Para a de Arthur, ele alegou estar trabalhando. Para as de Gustavo, Heitor e Juliana, o gerente disse estar com Fernanda. E por fim, sobre a morte de Eduardo, Adam lembrou que ambos estavam juntos na casa dele.

O detetive nem se deu ao trabalho de perguntar onde o gerente estava quando o Landau foi avistado próximo à casa de Bárbara. Ele sabia que Adam estava em sua empresa.

— São álibis fracos, eu sei. — Adam disse, enquanto Guilherme folheava a pasta à sua frente — Se eu soubesse que essa merda toda ia cair na minha cabeça, eu tinha contratado alguém para ficar comigo 24 horas por dia.

— Ah, não, Adam. Seus álibis são bons. — O detetive fez um gesto negativo com o dedo indicador, sem levantar os olhos dos papéis que estava lendo — Os álibis verdadeiros geralmente têm mais furos do que uma roupa velha roída por traças. Eu fico preocupado é quando começam a surgir armaduras.

O gerente abriu os braços e deu um sorriso de leve, num gesto de obviedade, mas Guilherme ergueu o dedo no ar novamente e cortou-o:

— O que não te torna automaticamente inocente, Adam. — Ele ergueu os olhos — Ainda tenho mais alguns pontos a esclarecer.

Adam pareceu murchar, mas assentiu.

— Tudo bem.

— Você me disse que possui alguns desafetos aqui na região, mas a Fernanda mencionou ontem que você chegou a se desentender fisicamente com um deles. — Guilherme apoiou os cotovelos sobre a mesa e cruzou as mãos — Como foi isso?

— Ah, o cara é um babaca. — O gerente cruzou os braços e recostou-se na cadeira — Eu dei uns pegas na irmã dele na época do ensino médio, e ele nunca aceitou isso muito bem. Daí em diante ele sempre fez tudo para me atazanar. Me provocava, inventava boatos com meu nome, coisas assim. E há alguns dias, eu estava no shopping com a Fernanda e ele nos viu e veio caçar confusão.

— E você bateu nele?

— Não. Ele tentou me acertar com um soco e eu segurei a mão dele. Ele tentou de novo e eu o imobilizei no chão.

— Mas a Fernanda... — Guilherme começou a perguntar.

— Calma, eu chego lá. — Adam o interrompeu — Há poucos dias eu levei a Fernanda a uma churrascaria lá do bairro, e esse cara apareceu por lá com mais três amigos. Mesma coisa, eles nos viram e vieram procurar encrenca. Foi nesse dia que eu revidei.

— Você contra quatro? — O detetive inclinou a cabeça de lado, incrédulo.

— Sim.

— Hã... — Guilherme espalmou as mãos, num gesto de dúvida — Como?

— Sou faixa preta de kung fu, detetive.

O detetive recuou um pouco, sem saber ao certo como receber aquela informação.

— Hum, interessante. — Ele murmurou, pegando uma caneta e fazendo uma pequena anotação na contracapa da pasta diante de si — Como esse cara se chama?

— Jefferson. — Adam respondeu.

Guilherme assentiu em silêncio, ainda anotando. Levou quase um minuto com isso, e Adam apenas esperou. Quando o detetive finalizou suas anotações, ele bateu a ponta da caneta no papel algumas vezes e perguntou:

— E sobre os seus acionistas, Adam? O que você pode me dizer sobre eles?

O gerente alteou uma sobrancelha.

— Nada que eu já não tenha te dito antes. — Ele devolveu — Não sou exatamente o queridinho deles.

Guilherme assentiu com um movimento de cabeça.

— Sei que você é o acionista majoritário das empresas deixadas por seu pai. — Ele colocou — Após você, quem é o investidor com mais ações?

— O Celso. Ele é gerente da filial de Montes Claros da transportadora. — Adam respondeu sem pensar muito.

— E se você não tivesse voltado ao país, ou se tivesse decidido não assumir a posição do seu pai nos negócios, acha que ele é quem assumiria?

O gerente franziu o queixo e pensou por alguns segundos, mas fez que sim com a cabeça.

— É bastante provável. As ações do meu pai seriam distribuídas igualmente entre os demais investidores, e ele seria o acionista majoritário.

— Hum. — Guilherme murmurou de novo, fazendo mais uma anotação.

Adam apoiou os braços na mesa e se inclinou para frente.

— Você acha mesmo que um de meus acionistas pode estar por trás disso?

O detetive ergueu as sobrancelhas num gesto vago, ainda anotando.

— Não sei dizer. Ainda tenho muito a investigar. — Guilherme parou de escrever e ergueu os olhos — Muito obrigado, Adam. Por favor, peça à Fernanda que entre.

Sem aperto de mãos, sem despedidas formais. O gerente sabia que Guilherme já devia ter alguma teoria em mente e que não queria revelá-la, mas não questionou. Apenas acenou positivamente com a cabeça e se levantou, retirando-se. Fernanda entrou poucos segundos depois e fechou a porta atrás de si.

— Por favor, Fernanda, sente-se. — Guilherme indicou a cadeira diante de si.

A encarregada obedeceu. Ela parecia estar mais incomodada com aquilo do que Adam, mas o detetive não deu importância. Assim que a encarregada se sentou, Guilherme soltou:

— Como era a relação do Adam com o irmão dele?

Fernanda empertigou-se e piscou. Esperava que o detetive fosse perguntar algo referente à relação dela com o gerente, nada além disso. No entanto, ela se viu pega de surpresa.

— Hã... — Ela pensou um pouco — Muito boa. Quer dizer, os dois se amavam muito. Estavam sempre juntos, faziam tudo juntos. Era muito raro um deles sair sozinho.

— Diria que o apoio de um ao outro era incondicional? — Guilherme emendou, fazendo mais anotações.

— Sem dúvida. — Fernanda respondeu, segura — Quase todos os irmãos gêmeos são assim.

— Uhum. — O detetive assentiu, ainda olhando para o papel e anotando — Como o Adam reagiu à morte do irmão?

Fernanda corrigiu sua postura na cadeira. Aquela pergunta, feita de forma tão direta, pareceu um tanto... obscena e desrespeitosa. Ela franziu a testa.

— Como qualquer ser humano reagiria à perda de um irmão, detetive. — Ela respondeu, pausadamente — Ele sofreu bastante. Chorou muito, se isolou de tudo e de todos. No funeral, ele parecia ter entrado em estado de choque. Não falou um “a” sequer, estava pálido e com o olhar distante e vazio. — A voz dela falhou por um momento, e ela pigarreou — Foi muito difícil, e não apenas para ele.

Por um mínimo instante, Fernanda pensou ter visto um brilho de comoção passando pelo olhar de Guilherme, mas que logo desapareceu. O detetive fez mais algumas anotações e começou a rodar a caneta entre os dedos, recostando-se na cadeira.

— E o que você pode me dizer sobre a sua relação com o Adam? — Ele soltou.

— Não sei exatamente o que dizer, detetive. — Ela cruzou os braços sobre o colo — Namoramos na época do ensino médio, e ele terminou comigo depois que o Alan morreu. Ele disse que precisava de um tempo para si mesmo, e então... — Ela parou.

Guilherme fez um movimento de lado com a cabeça.

— Sumiu pelos doze anos seguintes. — Ele terminou a frase por ela.

Ela ergueu os olhos com um sentimento incômodo estampado no rosto, mas acabou por concordar.

— Isso mesmo.

— Em algum momento ele disse para onde iria?

— Não. — Fernanda nem pensou para responder.

— Nem os pais dele?

— Não. — Ela emendou — O senhor Antônio era bastante reservado com sua vida particular. Depois que o Adam... bem... depois que ele “sumiu”, perguntei ao pai dele para onde ele havia ido, mas ele nunca me respondeu. Ele só balançava a cabeça de um jeito vago e ficava em silêncio, como se não soubesse.

Guilherme estreitou os olhos.

— Os registros da Polícia Federal mostram que ele deixou o Brasil em um voo com destino à Filadélfia. Isso quer dizer alguma coisa pra você?

— Não. — Fernanda respondeu, firme — Como eu já disse, o Adam nunca me falou nada sobre sair do país.

O detetive permaneceu imóvel por alguns segundos, avaliando Fernanda, mas logo inclinou o corpo sobre a mesa e cruzou as mãos sobre o móvel.

— Tudo bem. Ele terminou com você e passou doze anos longe. — Ele alteou as sobrancelhas — Mas quando ele voltou, por que vocês decidiram reatar o namoro?

A encarregada abriu a boca para responder, mas fechou-a em seguida. Precisava pensar nessa resposta.

— Sentimentos são uma coisa complicada de explicar, detetive. — Ela colocou, pausadamente — Fiquei muito surpresa quando ele foi apresentado lá na empresa como o novo gerente. Quer dizer, ele sequer havia me procurado ou dado notícias que iria voltar ao país. Encontrei com ele de fato no dia seguinte, em frente à casa dele, e ele puxou conversa.

— E...? — O detetive a encorajou a continuar falando.

— Bom... — Ela espalmou as mãos — Eu mostrei a ele que eu estava bastante surpresa com o retorno dele. Perguntei a ele onde ele esteve esse tempo todo, mas ele foi evasivo. Só depois é que ele me contou que morou nos Estados Unidos e que fez acompanhamento psicológico por um tempo.

Guilherme empunhou sua caneta novamente e anotou mais alguma coisa.

— O que mais? — Ele perguntou.

— Ah... Depois disso, foi uma coisa meio espontânea. — Ela comentou — Ele me pediu desculpas por ter sumido sem falar nada, me chamou pra jantar na casa dele e conversamos um pouco. Ele me falou um pouco da vida, disse que estava sozinho aqui na cidade e perguntou se podia me chamar pra sair mais vezes, e eu não vi por que negar. — Ela fez um gesto amplo com a mão direita — Daí pra frente nossa relação simplesmente fluiu.

— Entendi. — O detetive continuou anotando — Me fale sobre os desentendimentos que o Adam teve com um tal de Jefferson.

Fernanda parou e deu uma risadinha abafada, tentando entender a súbita mudança de assunto. Guilherme levantou os olhos e apenas esperou.

— Ah, sei lá. Ele nunca gostou do Adam.

— Por quê?

— O Adam ficou com a irmã dele por um tempo, mas isso foi bem antes de nós namorarmos. Só que esse Jefferson nunca aprovou o relacionamento dos dois, e passou a fazer de tudo para infernizar o Adam. Sabe, ficava cutucando pra procurar confusão.

— Ele chegou a agredir o Adam alguma vez?

— Naquela época não. — Fernanda ficou mais séria — Mas há alguns dias, estávamos no shopping e ele nos viu e veio provocar o Adam. A gente se levantou em silêncio e estava indo embora, mas ele avançou e tentou acertar o Adam no rosto.

— E o que ele fez?

— Segurou as mãos do Jefferson e o imobilizou no chão.

— Aham. — Guilherme murmurou, fazendo que sim com a cabeça — O Adam também mencionou algo que aconteceu numa churrascaria.

— Sim, teve isso também. — Ela concordou — Estávamos jantando, e o Jefferson apareceu por lá com mais três amigos. Eles vieram caçar confusão e o Adam simplesmente revidou.

— Entendi.

Depois disso, Guilherme repetiu o mesmo que havia feito de início com Adam: apresentou as datas das mortes causadas pelo “Landau vermelho” e perguntou se em alguma daquelas ocasiões os dois haviam estado juntos. Fernanda apontou as datas referentes às mortes de Gustavo, Heitor e Juliana.

— O que vocês faziam nesses dias? — O detetive questionou.

— Nesse dia estávamos em uma confraternização em Nova Lima. — Ela apontou para a data da morte de Heitor — Nos outros dois, ficamos em casa.

— Ok. — Guilherme fez mais esta anotação — Uma última coisa, Fernanda. Sobre os acionistas do Adam. Caso ele não tivesse voltado ao país, você imagina quem teria assumido o lugar do Antônio?

Ela balançou a cabeça de um lado para o outro, num gesto vago.

— Como eu te disse antes, nunca foi confirmado nada para os funcionários da empresa, mas corria o boato de que poderia ser o gerente da filial Montes Claros.

O detetive fez que sim com a cabeça e largou a caneta.

— Então por enquanto é só isso. — Ele se pôs de pé, ajeitando o paletó — Muito obrigado, Fernanda.

A encarregada se levantou também, fazendo uma ligeira mesura para Guilherme, e seguiu para fora da sala. Adam estava parado no corredor, aguardando-a.

— E aí? — Ele perguntou.

— Ah, não foi nada de mais. — Ela respondeu, enlaçando seu braço ao dele — Só falei verdades.

Ele abriu um sorrisinho canastrão, enquanto caminhavam pelo corredor em direção à saída.

— Espero que sim.

— Ei, vocês dois! — A voz de Guilherme se fez ouvir por trás deles.

Pararam e se viraram, vendo o detetive vindo em direção a eles.

— Vou bancar o anfitrião bonzinho e acompanhá-los até a porta. — Ele disse — E também vou receber o Willian e a Bárbara.

Adam fechou o semblante, mas apenas concordou com a cabeça e se pôs a andar, no que foi seguido por Fernanda. O detetive enfiou as mãos nos bolsos da calça e os acompanhou. Estavam passando pela portaria principal da delegacia quando viram Willian e Bárbara parados na calçada ao pé da escadaria da entrada, conversando entre si. Ela estava com um semblante bastante desolado, enquanto ele parecia bastante incomodado. Ambos seguravam guarda-chuvas para se protegerem da garoa que ainda caía, e quando viram Adam e Fernanda no topo da escadaria não demoraram a se pronunciar.

— Nem depois de tantos anos você deixa de nos causar tormento, não é, Adam? — Willian gritou lá de baixo, com semblante severo, enquanto Bárbara cruzava os braços.

O gerente estacou onde estava, gélido, e Fernanda sentiu os músculos do braço dele se retesarem.

— Adam, não dê ouvidos. — Ela falou baixinho — Não entre no jogo deles.

Guilherme postou-se de lado, atento ao que estava para se desenrolar ali com um semblante felino no rosto, enquanto uma rajada de vento frio varria a rua.

— Seu irmão morreu há doze anos, Adam. Foi algo trágico, mas aconteceu. — Foi Bárbara quem gritou desta vez, com uma voz aguda — Nós pagamos por isso e seguimos com nossas vidas. Você devia fazer o mesmo.

Fernanda podia ver a mandíbula de Adam contraída e seus olhos estreitos. Ele estava se esforçando para se manter sereno.

— Nós temos família, Adam. Eu tenho dois filhos! — Bárbara continuou gritando, quase histérica — Por que você está fazendo isso com a gente?

O gerente desvencilhou-se de Fernanda e começou a descer a escadaria, apontando o dedo indicador na direção de Bárbara.

— Escuta aqui...

— Não, escute aqui você! — Willian se manifestou novamente — Depois que você sumiu do mapa, nós pagamos pelo que fizemos. Passamos quase um ano prestando serviços comunitários, e, depois disso, fomos viver nossas vidas em paz! E agora, doze anos depois, você reaparece do nada e, de repente, todo mundo envolvido no que aconteceu com o Alan começa a morrer. — Ele estava erguendo o tom de voz — Não tente bancar o santo, Adam! Todos nós sabemos que você não é.

O gerente estava a poucos degraus de distância, já com os punhos fechados.

— Não fale do meu irmão, Willian! Vocês não têm esse direito!

Fernanda e Guilherme previram o pior, e se puseram a descer a escada também.

— Adam, espere! — A encarregada chamou.

— Ele já morreu, Adam! — Willian abriu os braços na direção do gerente, num gesto nervoso e quase debochado — Não se preocupe, ele não vai ficar ofendido.

— Já mandei você se calar! — O gerente quase gritou, ainda mais próximo.

— Você não manda nada aqui, Adam! — Bárbara devolveu, ácida — E não venha causar mais encrenca. Não acha que já nos perturbou demais?

Adam estava a meros cinco degraus da calçada.

— Eu não fiz nada daquilo! Eu vou...

E, subitamente, um estrondo.

Um rugido alto, grave e impetuoso se fez ouvir, e um vulto enorme passou sobre a calçada a três palmos de Adam. Respingos de algo melado e vermelho bateram em seu rosto e mancharam seu terno, e de repente Willian e Bárbara já não estavam mais ali. Fernanda e Guilherme estavam quase o alcançando naquele momento, mas congelaram em seus lugares, assustados. Muitos metros rua abaixo, um ruído alto de pneus cantando se fez ouvir, e os três se viraram a tempo de ver o enorme Ford Landau derrapando de lado e parando com a frente voltada para a delegacia. Em seu rastro, os corpos mutilados de Willian e Bárbara estavam estendidos na rua.

Os poucos carros que passavam pela rua trataram de acelerar logo e sumir, deixando o lugar deserto e com um ar sinistro. Mais além, o motor V8 do Landau bordô roncava em marcha lenta, como um crocodilo que descansa às margens de um rio.

Guilherme ficou abobado. Sem dúvida, era o mesmo carro que havia visto no dia anterior, próximo à casa de Bárbara. Aqueles quatro faróis circulares pareciam olhos maliciosos que debochavam dele.

— Adam! — O detetive chamou — Onde está seu carro?

Mas o gerente nem se moveu. Parecia ter entrado em algum tipo de transe. Foi Fernanda quem agarrou a manga do paletó de Guilherme e apontou para o estacionamento da delegacia.

— Está ali!

O detetive se virou para ver e, não tão surpreso, viu que Adam havia saído de casa em seu próprio Landau restaurado. Apesar de exatamente idênticos, o sedã do gerente parecia, de alguma forma, mais pacífico. O Landau que roncava rua abaixo carregava consigo um ar diabólico, monstruoso.

Então, era isso mesmo. Dois Landaus.

Um som de aceleração chegou ao ouvido de todos. Se viraram e viram o Landau bordô se mover alguns centímetros. Seu motor foi acelerado algumas vezes, e o escapamento duplo ribombou gravemente. Ele estava se preparando para arrancar.

— Vamos sair daqui. — Guilherme pegou Fernanda pelo braço, empurrando-a escadaria acima de volta para a delegacia — Adam!

O gerente continuou imóvel. Estava encarando as próprias mãos e o peito, arfando pesadamente. O detetive não entendeu, até que viu as manchas vermelhas no terno dele. Ao atropelar Willian e Bárbara, o Landau havia feito chover sangue sobre Adam.

Sadicamente, a história se repetia.

— Adam! — Ele gritou de novo.

Rua abaixo, o Landau acelerou ainda mais forte. Seu freio foi solto, e o veículo começou a rodar.

— Adam!

Mas o gerente parecia não escutar.

E então um som agudo alto preencheu o ar. Fumaça cinza se ergueu dos pneus traseiros do Landau bordô quando ele acelerou com violência. O súbito aumento de giro do motor V8 retumbou pelos canos de descarga como o som gutural, grave e profundo de um trator. A traseira do sedã afundou sobre os amortecedores enquanto ele ganhava velocidade.

Guilherme nem precisou calcular a direção do Landau. Com movimentos rápidos, largou Fernanda e desceu os degraus de três em três. A garoa parecia estar engrossando e se transformando em chuva, mas ele nem pareceu notar. O ronco do V8 do Landau aumentava rapidamente, e o detetive olhou de lado. O sedã parecia voar baixo rumo ao pé da escadaria. Com um esforço quase sobre-humano, Guilherme pulou os últimos degraus e agarrou Adam pelo paletó, puxando-o com toda a força para trás. O gerente saiu do chão, e ambos caíram de costas nos degraus de mármore. Dois segundos depois o Ford bordô passou exatamente onde Adam havia estado, subindo com as rodas dianteiras na escadaria e colidindo violentamente contra os balaústres.

Toda a escadaria pareceu tremer com o impacto. Com muita dor nas costas e o ar lhe faltando nos pulmões, Guilherme se pôs de pé. O Landau estava a menos de um metro e meio à sua frente. Adam permanecia caído de costas, com os olhos vidrados.

— Adam! — O berro de Fernanda cortou o ar, e ela disparou escadaria abaixo.

O grito dela fez o Landau reagir. Seu motor havia morrido com a colisão, mas foi logo religado. O escapamento duplo ressoou novamente, e o sedã recuou lentamente para a rua. Seu capô havia virado para dentro, sua grade dianteira formando um V invertido, e seus dois faróis direitos estavam despedaçados. Instintivamente Guilherme se esforçou para enxergar através dos vidros escuros do veículo, mas não conseguiu ver nada além do vulto do motorista recortado contra o para-brisa.

Fernanda chegou até onde estavam e abaixou-se ao lado do namorado. Ao ver o rosto e a roupa dele manchadas de sangue, imediatamente se lembrou do dia em que Alan caíra do prédio e logo entendeu o porquê da inércia dele.

— Anda, Adam, levanta! — Ela o agarrou por um braço e se esforçou para levantá-lo — Temos que sair daqui! Levanta!

O V8 do Landau rugiu de novo. Ele havia recuado até o outro lado da rua, alinhando-se perfeitamente com a escadaria, e parecia prestes a arrancar de novo. A visão daquela dianteira deformada combinada com o som daquele motor que roncava em marcha lenta enregelou Guilherme e Fernanda.

— Vamos subir, rápido! — O detetive se virou, agarrou o outro braço de Adam e ajudou Fernanda e levantá-lo, uma vez que ele permanecia catatônico.

O Landau protestou ao vê-los carregando o gerente escada acima, acelerando seu motor com intrepidez e furor. Alguns policiais apareceram na porta da delegacia, atraídos pelo som da colisão do sedã com os balaústres e pelo rugido constante do motor. Vendo Guilherme e Fernanda arrastando Adam de volta para o prédio, se prontificaram a ajudá-los.

— Nós estamos bem! — O detetive gritou, apontando para o Landau do outro lado da rua — Preciso que parem aquele carro!

Os policiais viram o sedã bordô e trataram de sacar suas armas, apontando-as na direção do veículo. Seu motor imediatamente parou de ser acelerado e passou a rodar novamente na marcha lenta. O Ford voltou a parecer um réptil gigante à espreita de suas presas.

— Ei, você! Saia do carro com as mãos pra cima! — Um dos policiais gritou, balançando o dedo indicador na direção do Landau.

Mas o veículo permaneceu estático, seu motor ronronando. Guilherme, Fernanda e Adam chegaram ao topo da escadaria e o detetive se virou para olhar.

— Saia do carro! — Ele gritou.

Surpreendentemente, a rotação do motor começou a subir. Como se o sedã estivesse rosnando para os militares. Aquilo não ia acabar nada bem.

— Detetive...? — Um dos policiais se virou para Guilherme, incerto sobre o que fazer.

— Só atirem se ele arrancar. — O detetive devolveu, falando baixo.

E logo após algo chegou aos ouvidos de todos. Um som baixo, aquoso e arrastado. Todos se viraram para olhar e viram o que parecia improvável.

O corpo de Bárbara estava estendido no meio da rua banhado numa poça enorme de seu próprio sangue, as duas pernas arrancadas e atiradas a metros de distância e a cabeça arrebentada do lado esquerdo. Pouco além, Willian estava caído de bruços, suas pernas quebradas e contorcidas como duas letras M desenhadas por alguma criança sádica e seu rosto esfolado e ensanguentado.

Mas ele estava vivo. Resvalando de volta para a consciência, ele tentava soerguer o corpo e soltava murmúrios e gemidos de dor. Um suor frio escorreu pela fronte de Guilherme, e ele imediatamente voltou os olhos para o Landau. Ele sabia o que aconteceria na sequência.

O Landau, que acelerava para os policiais, subitamente aquietou-se e pôs-se a rodar em marcha lenta, curvando na direção de Willian. O motorista também havia o ouvido gemer. Um trovão retumbou no céu de súbito e assustou a todos. Os policiais desviaram suas armas e se distraíram, mas o sedã bordô continuou rodando em direção a Willian.

Mesmo caído e com as vistas embaçadas, o homem percebeu a aproximação do veículo. Sem conseguir gritar ou correr, tudo que ele pôde fazer foi se arrastar penosamente por alguns centímetros em direção à calçada. Entretanto, ele sabia que não seria suficiente. O Landau já estava a menos de dois metros dele, baforando pelo escapamento e parecendo rir da situação com aquela dianteira deformada. Willian virou o rosto e apenas esperou o inevitável.

E então, o Landau parou.

Da escadaria da delegacia, Guilherme viu as luzes de freio do veículo se acendendo e gritou, tentando chamar a atenção do motorista:

— Ei! Ei, você!

O detetive rapidamente tomou a arma de um dos policiais ao seu lado e correu escada abaixo.

— Pare! Não faça isso!

Os policiais acompanharam a reação do detetive e dispararam em direção ao Landau também.

Mas era exatamente o que o motorista parecia querer. Quando os militares se aproximaram e apontaram suas armas outra vez para o veículo, o motor V8 rugiu novamente. O Landau se pôs a rodar bem devagar para diante, seus canos de descarga espocando de forma grave. O enorme Ford atraiu toda a atenção dos policiais para si ao se pôr vagarosamente em movimento, e não entenderam o porquê daquilo até ser muito tarde.

De uma forma perturbadoramente doentia, o pesado sedã passou lentamente com uma das rodas dianteiras sobre a barriga de Willian, fazendo-o expelir um jorro espesso de sangue pela boca e pelo nariz. O homem até chegou a estender os braços para frente, mas caiu morto embaixo do veículo. Muitos dos policiais viraram o rosto ao ver a cena, mas a reação de Guilherme foi extremamente oposta.

Subitamente possesso de raiva e soltando um berro animalesco, o detetive empunhou a arma que trazia consigo e disparou várias vezes contra o Landau. As balas atingiram o sedã na coluna traseira e nas portas, fazendo-o arrancar de súbito. Seus pneus cantaram e sua traseira rabeou enquanto ele ganhava velocidade, e em poucos segundos ele dobrou a esquina e desapareceu.


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