O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 20
Capítulo 19




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A chuva permanecia torrencial pela manhã, e mais uma vez o ritmo de trabalho no armazém da Transportes Peixoto era de correria. Uma carreta carregada de eletrônicos havia apresentado um defeito mecânico e sua chegada à empresa estava atrasada, e agora a transportadora corria o sério risco de perder o prazo de entrega da mercadoria. Uma equipe de conferentes e operadores de carga havia sido designada especialmente para recepcionar a chegada da carreta e descarregá-la a tempo de distribuir a carga nos caminhões menores para que seguissem para as respectivas entregas, enquanto o cavalo mecânico defeituoso seria direcionado à concessionária da Mercedes-Benz.

Fernanda estava no armazém dando orientações à equipe quando percebeu Adam se aproximando. Apesar da elegância habitual, seu andar parecia incerto e o semblante no rosto dele era estranho.

— Bom dia. — A encarregada o cumprimentou quando ele chegou mais perto.

— Posso falar com você um minutinho? — Ele foi direto.

Fernanda ia perguntar do que se tratava, mas percebeu um ligeiro, quase imperceptível, tremor no canto dos lábios dele. Não era algo que ele quisesse falar na frente de mais alguém.

— Tudo bem. — Ela se virou para os demais integrantes da equipe — Com licença, senhores.

Adam se virou e seguiu para o meio do armazém, em um corredor sem movimento, e escorou o corpo num enorme porta-paletes. Fernanda se aproximou e cruzou os braços.

— O que aconteceu, Adam? Você parece tenso. — Ela soltou — Tem a ver com aquele detetive que esteve aqui ontem?

Ele levantou os olhos.

— Como você soube?

— Ah, foi por acaso. — Ela deu de ombros — Parece que o Bruno o viu sentado na recepção falando com a secretária.

Adam estreitou os olhos por um momento, mas depois suspirou.

— Na verdade, tem a ver, sim. — Ele disse, engolindo em seco — Fernanda, você se lembra de todos os envolvidos no... no que aconteceu com o Alan?

A encarregada piscou e franziu a testa, estranhando a pergunta, mas por fim concordou.

— Sim. Por quê?

O gerente assentiu, suspirando.

— Porque estão sendo mortos.

Fernanda pensou não ter ouvido direito.

— Como é? – Ela indagou, incrédula.

— Eu sei, nem eu entendi direito. — Adam cruzou os braços também — Mas era sobre isso que o detetive queria conversar comigo. Alguém está matando os envolvidos no caso do Alan.

Um sentimento de horror envolveu o estômago de Fernanda, que subitamente parecia ter se tornado uma grande pedra de gelo. Sua boca secou e involuntariamente se abriu num gesto de espanto, mas Adam continuou:

— Ele foi até minha casa ontem à noite e conversamos por algum tempo. Alguém dirigindo um Landau bordô matou o delegado Lacerda, o Ramon, o Arthur, o Gustavo e o Heitor. Tudo isso tendo início na mesma época em que retornei ao país.

A encarregada balançou a cabeça, sentindo como se tivesse levado um choque.

— Adam! Mas como você...

— Calma aí! — Ele exclamou, estendendo as mãos espalmadas na direção dela — Você não acha que fui eu, não é?

Ela piscou, atordoada demais com a informação que havia acabado de receber. Seu namorado, entretanto, continuou falando:

— Eu vou ter que prestar depoimento amanhã na delegacia. Já falei tudo o que eu tinha para falar com o Guilherme ontem mesmo, lá em casa, mas ele quer algo formal para colocar na investigação dele. É muito provável que ele te procure e te peça para depor também.

Fernanda arfou.

— Como assim, Adam? Espere um pouco, eu estou confusa.

O gerente suspirou outra vez, enfiando as mãos nos bolsos e encarando os próprios sapatos.

— Me desculpe. É que eu estou agitado. — Ele olhou em volta, certificando-se de que ninguém os ouvia, e então prosseguiu — Deixe-me explicar melhor. Ontem, o detetive me procurou e começou a me perguntar sobre os motivos que me levaram a me ausentar do país por tanto tempo e sobre o que eu pensava acerca do veredito do delegado Lacerda no caso do meu irmão. Quando respondi, ele me perguntou se eu sabia como estavam meus antigos colegas de classe e me contou que alguns deles haviam sido mortos por alguém que dirigia um Ford Landau bordô.

A encarregada arfou novamente. Aquele era o tipo de coisa que só se via em filmes de suspense.

— Como eu tinha uma reunião com o Bruno para tratar assuntos de frota, convidei o detetive para ir à minha casa à noite. — Adam continuou — Ficamos algumas horas conversando sobre a investigação e o tempo que passei fora, e ele acabou me dizendo que me considerava suspeito de envolvimento no caso. Nada mais óbvio, é lógico. Fiquei doze anos fora do país e assim que eu retorno as pessoas envolvidas na morte do meu irmão começam a ser mortas por alguém que possui um veículo idêntico ao meu.

— E porque ele não te prendeu? — Fernanda conseguiu perguntar.

— Porque ele não pode provar que eu estou envolvido. Ele só tem evidências de que um Landau esteve envolvido em todas as mortes, mas não pode provar que seja o meu Landau. Ele também pode alegar que eu tenho motivos para querer matar aquelas pessoas, mas não pode provar que fui eu quem as matou. — Ele balançou a cabeça, seu olhar ficando mais severo — Além do mais, quando nos reencontramos você viu como meu carro estava. Velho, sujo, desbotado e quase desmontando no meio da rua. Tive que fazer alguns pequenos consertos no motor para conseguir levá-lo para a restauradora, e você também viu isso. Não tinha como usar aquele carro para nada, quanto mais para perseguir e matar alguém.

— E você contou isso para o detetive?

— O que você acha? — Ele abriu os braços — Ele me deu as datas das mortes. O delegado Lacerda, o Ramon, o Arthur, o Gustavo e o Heitor, todos foram mortos antes do meu carro sair da restauradora.

Fernanda estava com uma tremenda cara de paisagem, sem saber direito o que sentir ou pensar. Era muita informação para ser processada, ela precisava de um tempo.

— Tá bom. — A encarregada assentiu — Mas por que alguém estaria fazendo isso? E justamente com você?

O gerente suspirou, como se a resposta fosse mais do que óbvia.

— Os acionistas e sócios do meu pai estavam loucos para abocanhar a herança que ele deixou. Muito provavelmente queriam que fosse divida proporcionalmente entre eles de acordo com o número de ações de cada um. — Ele olhou nos olhos dela — Fernanda, o patrimônio que meu pai deixou está na casa das centenas de milhões de reais. Qualquer um ia querer embolsar uma parte disso, de forma que a minha decisão de retornar ao Brasil e assumir os negócios não foi bem recebida por ninguém.

De repente, tudo o que Adam havia dito pareceu se encaixar como um set gigante de Lego, apesar de ainda faltarem alguns detalhes. Fernanda descruzou os braços e segurou o queixo com a mão direita.

— Então alguém está querendo te prejudicar.

O tom de voz dela era pastoso, como se ela estivesse falando dentro de uma lata, e seu olhar era um misto de espanto e dúvida. Adam abriu os braços novamente.

— Não é óbvio? — Ele deu uma risada nervosa e abaixou o tom de voz — Você não chegou a pensar que eu tivesse matado alguém, não é? Pelo amor de Deus, Fernanda, no dia em que o Gustavo foi morto nós estávamos transando na sua casa!

— Ei! — Ela exclamou, espalmando as mãos — Eu não disse isso! Não pensei nisso nem por um segundo! Só que é informação demais para receber assim, de uma vez. Não processei tudo ainda.

O gerente baixou os braços e suspirou novamente, aproximando-se dela.

— Me desculpe. — Ele a segurou pelas mãos — Eu só queria que... Bom, eu só queria te contar o que está acontecendo antes que a coisa chegasse até você de forma errada.

— Vamos fazer o seguinte. — Ela pousou uma mão no peito dele e ajeitou-lhe a gravata — Vamos sair para almoçar juntos e você me dá os detalhes com mais calma, ok? Eu também preciso de um tempo para digerir essa informação.

Adam esboçou um sorriso estreito e aliviado.

— Certo. A que horas...

— Bom dia, chefe! Será que eu... Eita, preula! — A voz de Bruno interrompeu o casal — Me desculpem, eu não queria interromper.

Fernanda e Adam se afastaram um pouco e se viraram para olhar, dando de cara com o gestor de frota parado no início do corredor. O rapaz enrolava as mãos na altura do peito num gesto de total ansiedade.

— O que foi, Bruno? — Fernanda perguntou.

— Eu... É que... Bom, é que... — Ele não sabia se falava ou se sorria.

— Está tudo bem? — Adam questionou.

Bruno suspirou e encarou o gerente.

— Chefe, eu posso sair mais cedo hoje?

— “Cedo” quanto? — Adam alteou uma sobrancelha.

— Depois do almoço. Preciso estar no centro de BH às três.

O gerente avaliou o rapaz mais uma vez.

— Como estão as nossas manutenções?

— Estão todas em dia. Já montei até um cronograma para as manutenções deste mês e do mês que vem e te enviei por e-mail. O título é “Cronograma Preventivas”. — Ele se lembrou de algo — Ah, e já acertei tudo com o pessoal da Minasmáquinas para o conserto da carreta que está chegando. O Paulo já está no aguardo.

O gerente alteou as sobrancelhas e, por fim, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Então não vejo problema. Depois você compensa com horas extras.

Bruno abriu um sorriso satisfeito.

— Valeu, chefe!

— É melhor você voltar para o seu setor. — O gerente disse, virando-se para a encarregada — Peça à equipe prioridade total no descarregamento dessa carga de eletrônicos.

— Ok, Adam. Te vejo no almoço. — Ela piscou e se virou, passando um braço pelo ombro de Bruno — Vem, maluquinho. Vamos trabalhar.

Quando percebeu que Adam não conseguiria mais ouvi-los, Fernanda debruçou-se mais sobre o gestor de frota.

— Tá bom, senhor. Agora me conta o que você vai aprontar. Você não vai sair daqui para ir à Guaicurus, não é? — Era uma rua famosa por seus prostíbulos.

— Não, não, não é nada disso. — Ele se afastou dela, mas manteve o sorriso no rosto — Vou me encontrar com o pessoal do grupo de teatro lá no Minascentro para um último ensaio geral. Hoje é a estréia do Vegas 90’s.

A encarregada se lembrou de que Bruno costumava atuar aos fins de semana.

— Você não me contou que ia ter uma apresentação. — Ela comentou.

— Nem eu sabia. — O rapaz parecia prestes a derreter de entusiasmo — Eu não ia participar deste espetáculo, mas um dos rapazes ficou doente e não vai poder ir. Então me ligaram e me pediram para atuar no lugar dele.

Fernanda parou de andar e cruzou os braços.

— Você está quase entrando em parafusos, menino. Sobre o que é este espetáculo?

Bruno parou de andar também.

— Se chama Vegas 90’s. É uma apresentação de noventa minutos onde homenagearemos as principais atrações de Las Vegas. Na verdade, vai ser uma coisa mais musical, mesmo.

— Que legal! — A encarregada alteou as sobrancelhas e sorriu também — Me conta mais.

— Ah, é mais ou menos isso mesmo. — O rapaz abriu os braços — Vamos ter danças, representações e cantores homenageando o Cirque Du Soleil, as fontes dançantes do hotel Bellagio, os cassinos e os alguns artistas que tiveram residência fixa por lá, como Elvis Presley, Frank Sinatra, Elton John e por aí vai.

— Caramba! Vai ser uma superprodução, então. Onde vai ser?

— No teatro Topázio do Minascentro. Mais de 1700 lugares disponíveis e todos estarão ocupados

Fernanda teve um ligeiro sobressalto.

— Nossa! É muita coisa, mesmo. E o que você vai fazer?

Bruno pareceu sorrir ainda mais.

— O rapaz que adoeceu ia fazer homenagem à Celine Dion, inclusive a abertura e o encerramento do show. Você sabe, ela é a artista mais famosa em Las Vegas desde Elvis Presley e o show dela é a atração que mais fatura na cidade. Não tinha como ela ficar de fora.

— Hummm. — A encarregada murmurou — Agora entendi. E você é super fã dela.

— Claro, né?! Ela é apenas a melhor. — O rapaz piscou e encarou Fernanda — Ei! Agora que o fulaninho lá não vai, eu tenho direito a um ingresso para algum amigo meu. Você não gostaria de ir?

A encarregada pensou um pouco.

— A que horas vai ser?

— Vai começar às oito e meia. Dá tempo de você ir em casa e se arrumar.

Fernanda pensou um pouco, mas acabou concordando. Não tinha nada programado para aquela noite, mesmo.

— Tudo bem. Eu vou lá te prestigiar. — Ela passou o braço pelo ombro dele novamente e começou a andar — Agora vamos voltar ao trabalho. A carreta que está chegando ainda vai nos dar problemas.

 

o—o—o

 

Na delegacia, Guilherme ocupava-se em organizar mais uma vez os arquivos do caso do “Landau vermelho”. O investigador Marconi, da Polícia Federal, havia lhe enviado um e-mail com todas as informações que ele havia lhe passado anteriormente, e agora uma versão impressa do mesmo estava sendo colocada junto aos demais arquivos do caso.

O detetive também estava tomando as providências para o depoimento que Adam prestaria no dia seguinte. Os dois haviam tido uma longa e proveitosa conversa no dia anterior, mas o detetive queria tudo formalizado.

Tem coisa a mais nessa história, ele pensava consigo mesmo desde a noite passada. Não tem como o Adam ter matado aquelas pessoas.

Porque, de fato, não tinha mesmo. O Landau de Adam estava na oficina sendo restaurado e o gerente alegou estar em outros lugares no momento das mortes. Assim que ele prestasse depoimento, Guilherme convocaria outras pessoas para sustentar ou confrontar a declaração do gerente. Mas mesmo assim, ele suspeitava de que aquele caso não seria resolvido de maneira tão simples.

A porta foi aberta de supetão e Amanda entrou seguida por mais dois detetives. Os três pareciam bastante esbaforidos.

— Guilherme, você está muito ocupado? — Ela disparou.

O detetive estranhou a atitude da colega e empertigou-se na cadeira.

— Não. O que aconteceu?

— Temos novidades para você. — Ela depôs alguns papéis sobre a mesa dele — O seu Landau atacou de novo.

— Como? — Guilherme pareceu não ter entendido direito.

— Aqui. — Ela apontou um dos papéis sobre a mesa, ao qual havia uma foto anexada — Esta garota foi atropelada várias vezes por um veículo pesado. Isto foi anteontem. O corpo foi encontrado por um morador do bairro, que informou ter ouvido um barulho de motor no meio da madrugada e saiu na janela a tempo de ver um “banheirão” fazendo a curva na esquina e fugindo do local.

O detetive piscou algumas vezes.

— E porque você acha que tem a ver com meu caso? — Ele perguntou.

— Por causa do “banheirão”. Quando mostrei a imagem de um Landau para o morador, ele reconheceu o carro. — Amanda consultou o papel sobre a mesa rapidamente — O nome da moça era Juliana. Tem alguma Juliana listada nos seus arquivos?

Guilherme abriu a pasta do caso do “Landau vermelho” e puxou um dos primeiros arquivos. Era a relação dos alunos citados no inquérito sobre a morte de Alan. E para sua surpresa — ou não — havia uma Juliana naquela lista.

O detetive assentiu.

— O que mais?

Um dos detetives que havia entrado atrás de Amanda se adiantou, puxando outro papel e depondo-o diante de Guilherme.

— Na noite passada, um vigilante noturno chamado Eduardo foi perseguido e morto por um carro dentro de uma igreja em BH. Havia marcas de pneus, cacos de vidro e peças pequenas espalhadas por todos os lados. — Ele colocou a mão por dentro do paletó e puxou um pequeno pacote, jogando-o sobre a mesa do detetive — Também haviam traços de tinta de cor bordô nas colunas da igreja e em alguns bancos. E isso aí estava caído no chão próximo ao corpo.

Guilherme pegou o pequeno pacote e ergueu-o no ar. Dentro dele havia uma peça metálica retangular de pouco mais de 10 centímetros de comprimento, com uma cruz em forma de “mira” no centro e um parafuso na base.

— Você sabe o que é isso, não é? — O detetive perguntou.

— O emblema de capô de um Landau. — Guilherme respondeu, imediatamente correndo os olhos para a lista em sua outra mão e constatando que também havia um Eduardo lá.

Guilherme pôs-se a pensar e fez-se um momento de silêncio. Ficaram assim por quase um minuto, até que Amanda perguntou:

— São vítimas do “Landau vermelho” mesmo, não são?

Ele assentiu.

— Sim.

— E agora?

Não tem como ser o Adam, a frase se repetiu na cabeça do detetive. Eduardo havia sido morto enquanto o gerente estava com ele. Tinha de ser outra pessoa. Mas... quem? Não tem como ser o Adam.

— Guilherme! — Amanda chamou-o novamente — E agora?

O detetive vacilou.

— Eu... Ainda não sei.


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