O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 19
Capítulo 18




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A chuva forte, entremeada por trovões e relâmpagos constantes, contribuía apenas para deixar o ambiente da catedral ainda mais sinistro. Pela nave da igreja, ecoava de forma intermitente uma reza.

— Ave-Maria, cheia de graça... O Senhor é convosco...

Permeados à reza, eram ouvidos também o tilintar de um molho de chaves e o andar cadenciado do vigilante noturno, geralmente sobrepostos.

— Bendita sois vós entre as mulheres... Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...

Um relâmpago brilhou nas nuvens, clareando a terra com sua luz prateada, entrando pelos vitrais da catedral e dando a uma imagem de Nossa Senhora uma momentânea aparência de caveira. As demais imagens de santos, espalhadas em pedestais ao longo do local, pareceram adquirir expressões faciais ainda mais sofridas do que as que já possuíam.

Eduardo, que vinha caminhando pelo corredor central, estacou por um segundo. Um arrepio frio correu-lhe pela espinha e ele fechou os olhos com força, apertando as mãos e estendendo os braços junto ao corpo. Sempre tivera medo de igrejas, principalmente as catedrais católicas. Criado em uma família extremamente religiosa, por várias vezes havia sido forçado pela avó a comparecer às missas, mas sempre evitava encarar as imagens de santos. As expressões penosas ou vazias das estátuas eram perturbadoras para o jovem, que crescera sem conseguir se livrar dessa sensação.

Ele já trabalhava como vigia noturno há alguns anos, mas pouquíssimas vezes havia estado em igrejas durante a noite. Mas em todas essas vezes, havia sentido aquela mesma angústia.

Em todas as vezes, não, ele se lembrou. Hoje está mil vezes pior.

Isso por causa das mortes. Por um acaso, havia se encontrado com um antigo colega de escola no dia anterior e havia sido colocado a par de algo bizarro.

— Já soube das mortes? — O colega havia perguntado após alguns minutos de conversa.

— Mortes? — Eduardo ficara confuso — Não. Quem morreu?

— Você não soube? — A surpresa do colega havia sido evidente — O Ramon, o Arthur, o Gustavo, o Heitor e a Juliana. Todos morreram atropelados ou em acidentes de carro, tudo nos últimos quinze dias.

Eduardo havia ficado boquiaberto, com um semblante letárgico.

— Não acha que é muita coincidência? — O colega perguntara — Ninguém processou isso direito ainda.

Não é coincidência, Eduardo pensou mais uma vez, voltando a andar pelo corredor da igreja.

Porque ele sabia. Todos aqueles nomes juntos em uma notícia tão fúnebre só queria dizer uma coisa: Deus estava se vingando de cada um deles. Isso mesmo, cada um dos envolvidos na morte de Alan Peixoto estava pagando o devido alto preço. E a desgraça toda não se resumia à morte do rapaz, mas também ao desaparecimento de seu irmão Adam e do suicídio de sua mãe, anos depois.

— Pai nosso que estás no Céu... Santificado seja o Vosso nome... — Ele deu início a uma nova reza, aproximando-se do meio da nave da catedral.

Outro relâmpago espocou no céu, e o trovão imediatamente estremeceu a igreja. Eduardo estacou novamente, sentindo suas costas enregelarem mais uma vez.

Não devíamos ter provocado o Alan daquele jeito. De fato, nunca tivemos motivo para implicar com ele ou com o Adam, o vigilante recordou.

Porque ele também estava lá. Na derradeira provocação a Alan, quando Adam deixara a sala para se encontrar com Fernanda... Quando Gustavo, em companhia de Arthur, tentara puxar a calça do rapaz para envergonhá-lo... E quando ao fugir, Alan fora bruscamente atingido por um dos rapazes e despencara do quarto andar.

Ele também estava lá, rindo, debochando e incentivando. E ele também pagaria o preço por aquilo.

— Venha a nós o Vosso reino... Seja feita a Vossa vontade...

O tom de voz de Eduardo traía seu nervosismo. Após todos aqueles anos, estava se cumprindo sobre eles a passagem de Mateus 10:34, onde Jesus dizia: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada”. Porque o vigilante sabia que Cristo, mais do que amoroso e dedicado, era extremamente justo. Jesus não deixaria que eles escapassem impunes.

É isso. Estamos todos pagando por nosso erro, ele concluiu para si mesmo, suspirando.

— Assim na terra... Como no céu...

Outro trovão sacudiu as paredes do templo, e, imediatamente após, um rugido grave e borbulhante ecoou do lado de fora da igreja. Parecia o som de uma fera, um monstro jurássico saído de algum recanto obscuro. Aquilo atraiu a atenção de Eduardo. Levantando a cabeça, percebeu que aquele som provinha de detrás do templo, exatamente por trás da parede do altar, de onde pendia uma gigantesca cruz de madeira na qual havia pregada uma imagem de Cristo, morto e ensanguentado.

Um novo relâmpago iluminou a terra, inundando a catedral por um momento, e novamente aquele som grave se fez ouvir, assemelhando-se a um rosnado. A luz pálida e tremulante da descarga elétrica fez com que a imagem de Jesus crucificado parecesse estar ofegando, e aquele som grave ecoando através da parede e dos vitrais trouxe à mente do vigilante a imagem de um demônio escuro e ardiloso.

Ele começou a tremer.

— O pão nosso de cada dia nos dai hoje...

Pelo amor de Deus, Eduardo, isso é só algum carro manobrando, a mente dele forçou-se a se concentrar. Não há motivos para ficar assim.

Sem saber exatamente o porquê, o vigilante retirou sua lanterna do suporte que a prendia ao seu cinto e empunhou-a. Estava exatamente no meio da igreja, e começou a avançar lentamente na direção do altar. Cada passo produzia o som de madeira estalada sob seus pés, como se o clima no ambiente já não fosse suficientemente funesto. Pé após pé, Eduardo avançou a três quartos do corredor.

Uma nova sequência de relâmpagos e trovões ribombou no céu. Agora Eduardo encarava fixamente a imagem de Jesus Cristo, rezando como se Ele pudesse ouvi-lo, mas a expressão amarga da estátua não lhe trazia nenhum sentimento bom.

— Perdoai as nossas... as nossas ofensas... — A voz dele vacilou — Assim como nós perdoamos... — Ele ergueu a lanterna — ... a quem tem nos ofendido...

Eduardo acendeu a lanterna, direcionando o facho de luz à estátua no altar. Ato contínuo, uma luz forte e branca brilhou pelos vitrais posteriores da igreja, e aquele rugido grave se fez ouvir novamente. Iluminadas por trás, as cenas bíblicas representadas nos vitrais pareceram se transformar em obscuras obras góticas.

Lentamente aquele grave som metálico pareceu estabilizar-se, enquanto o facho de luz branca que iluminava os vitrais pareceu deslocar-se para a esquerda. Era evidente que o carro de onde provinha aquele rugido de motor estava contornando a igreja. Eduardo acompanhou o movimento do facho de luz através das janelas.

— Não nos deixeis cair em tentação... — A voz do vigilante noturno era quase um sussurro.

O facho de luz passou pela última janela e sumiu, mas o tenebroso som borbulhante ainda era ouvido contornando a construção. De lanterna em punho, Eduardo recuou pelo corredor até parar diante de uma das primeiras fileiras de bancos. De onde estava, conseguiu ver a luz branca surgir por baixo da porta dupla de entrada da igreja. O veículo parecia ter parado bem diante dela, de frente para o templo.

Como se quisesse entrar, o pensamento cravou-se na mente do vigilante como um ferrolho. Aquilo o fez tremer ainda mais. A luz da lanterna, direcionada para o chão, oscilava loucamente enquanto o molho de chaves preso ao cinto de Eduardo tilintava de leve.

Me perdoe, Deus. Eu sei que errei. Eu não deveria ter participado do que aconteceu ao Alan, e sei que o Senhor vai me cobrar por isso, ele começou a rezar mentalmente num ritmo frenético, enquanto o rugido grave que provinha lá de fora parecia aumentar. Mas me perdoe, Deus. Por favor, me perdoe.

O som do motor do veículo continuou aumentando, mas o facho de luz que iluminava a porta permaneceu parado. Tremendo descontroladamente, sem saber dizer se era devido ao seu temor por igrejas ou se devido àquela situação sinistra, o vigilante tentou finalizar a reza que vinha recitando.

— Mas livrai-nos... Livrai-nos do mal... — A voz dele tremia tanto quanto ele e soou baixa e destoada quanto um disco arranhado — Livrai-nos... Livrai-nos... Do mal...

Um som alto e estridente cortou os ares, agudo como um grito feminino, seguido por mais um aumento do som borbulhante do motor. O facho de luz pareceu saltar para frente e tornava-se cada vez mais intenso, como se corresse velozmente de encontro à porta da igreja. A consciência atingiu Eduardo a tempo apenas de fazê-lo reagir, pulando de lado entre os bancos e caindo desajeitadamente sobre o próprio ombro.

Um violento impacto, súbito e brutal, destroçou a porta dupla de entrada da catedral. Lascas de madeira destroçada voaram para todos os lados, e os castiçais gêmeos que ladeavam o início do corredor foram violentamente derrubados. Por um segundo todo o templo pareceu tremer com a força da colisão, enquanto o som da tempestade que desaguava do lado de fora e do rugido do motor pareciam estar mais altos do que nunca.

Erguendo-se desajeitadamente entre os bancos e arriscando um olhar para o lugar onde até segundos atrás estava a porta de entrada, Eduardo vacilou e permaneceu atônito por alguns instantes, não crendo no que seus olhos viam. Parado na entrada da igreja como um gigantesco animal, com a dianteira virada para o altar e um jogo de faróis duplos clareando o interior da catedral de forma sombria, um Ford Landau bordô parecia espreitar o local à procura de algo.

Ou de alguém.

Eduardo abaixou-se entre os bancos novamente, sentindo seu ombro latejar onde atingira o chão, e tateou o cinto à procura de sua arma. Era uma reação instintiva, de sobrevivência, e falava mais alto do que qualquer medo. Além do mais, ele era vigilante noturno. Havia sido treinado para lidar com situações como aquela. Quer dizer, não com um carro invadindo uma igreja, mas com situações que envolvessem frieza e coragem.

Desabotoando o coldre e empunhando um revólver calibre 38, Eduardo suspirou fundo uma vez e ergueu o busto sobre o banco que o escondia, apontando a arma na direção do sedã.

— Ei, você! Parado! — Ele gritou.

A reação veio em menos de dois segundos. Aquele som alto e agudo se ouviu novamente, e o vigilante constatou que provinha dos pneus traseiros do veículo cantando ao arrancar. Em seguida, a enorme dianteira do Landau guinou para a direita, apontando os quatro faróis em sua direção. O veículo vinha para atingi-lo. Reagindo por instinto mais uma vez, Eduardo jogou-se sobre os bancos e pulou de volta para o corredor um segundo antes do sedã vir esmagar seu focinho contra os bancos. Mais madeira estraçalhada voou pela igreja.

O vigilante recuou alguns passos pelo corredor e apontou seu revólver para o veículo mais uma vez, empunhando-o com as duas mãos e mirando na janela do motorista.

— Parado aí, desgraçado, ou eu atiro!

Mas o Landau não hesitou antes de fazer o motor rugir mais uma vez e recuar de ré, voltando para sua posição inicial na entrada da igreja. Com uma guinada rápida de volante, o veículo alinhou-se com o corredor central, ficando de frente para Eduardo.

Então é isso, ele pensou, por fim. Esse é o preço que vou ter que pagar. Mas não vai ser assim tão fácil.

Levantando a arma na direção do para-brisa, o vigilante apertou o gatilho. A detonação do tiro brilhou fracamente, e a bala foi se perder no vidro escuro do sedã. Eduardo esperava que o veículo fosse arrancar novamente e avançar para ele, e já estava pronto para reagir.

Mas não. O Landau permaneceu onde estava, parado, com apenas três dos quatro faróis dianteiros acesos e a grade de filetes cromados verticais e a borda do capô entortadas para dentro como a boca de um sapo deformado. E aquela visão era muito mais sinistra. Era como se o veículo estivesse o avaliando. Como se ele e o vigilante fossem rivais em algum tipo de duelo silencioso, sabendo que apenas um sairia dali.

Eduardo piscou, aturdido, ainda com a arma em punho. Tentou divisar algo pelo vidro do carro, na esperança de se certificar que atingira o motorista, mas o para-brisa era tão escuro que ele não conseguia ver nada. De alguma forma, entretanto, aquele borbulhar grave do motor parecia dizer a ele que não, ainda não havia acabado.

E de fato, não havia. Acelerando uma, duas, três vezes, o Landau andou alguns centímetros e parou novamente. Era como se ele estivesse incitando Eduardo a fugir apenas para ter o prazer de persegui-lo. Era uma visão doentia, irreal. O cérebro do vigilante não conseguia processar aquilo. Por fim, ele ergueu a arma novamente e atirou mais uma vez contra o vidro dianteiro.

E aquilo tirou o Landau de seu torpor. O sedã partiu a toda velocidade novamente, guinchando os pneus e rabeando a traseira, e avançou na direção de Eduardo. O vigilante, meio pego de surpresa com a reação súbita do veículo, virou-se e disparou à toda na direção do altar. Enquanto corria, percebeu que sua sombra crescia cada vez mais diante de si, o que significava que o corredor era largo o bastante para que o sedã passasse por ele, e passasse rápido.

Chegando ao altar, Eduardo contornou o púlpito e se jogou sobre o pedestal que sustentava uma imagem de Nossa Senhora, tentando subir ali. Mal havia erguido as pernas, viu o Landau destruir o púlpito com o para-choque e vir enterrar a dianteira contra a coluna de mármore do pedestal. Um som de vidro e metal se partindo preencheu o ambiente, enquanto o capô do sedã adquiria uma forma ainda mais ondulada e mais um de seus faróis se apagava. O pedestal onde Eduardo havia subido tremeu com a colisão, mas a coluna de mármore resistiu.

Rugindo o motor em protesto, o Landau recuou alguns metros e avançou contra a coluna novamente. O choque foi quase tão violento quanto o primeiro, e uma das calotas do sedã escapou do aro e rolou para junto da sacristia. A coluna de mármore balançou novamente, mas resistiu.

— Isso, isso mesmo! — Eduardo gritou, exultante — Vá batendo até seu motor fundir! Aí quero ver você descer dessa banheira e me enfrentar cara a cara!

Por um instante, o vigilante pensou ter visto uma reação por trás do vidro escuro do veículo, como se o motorista tivesse se empertigado ao volante. Mas estava escuro demais para ter certeza. O sedã recuou novamente, fazendo a madeira do piso ranger sob seu peso, e postou-se a alguns metros de distância. Sua frente estava ainda mais destruída, com a grade destroçada e torcida se assemelhando aos dentes de um tubarão, e seus faróis com as lentes quebradas. Um deles ainda estava aceso, mas o outro já estava semiapagado, emitindo uma fraca luz alaranjada.

Eduardo pensou que havia acabado. O motorista finalmente desistira daquela perseguição bizarra e resolvera se acertar com ele por si mesmo.

Isso mesmo, Deus, ele voltou a rezar em pensamento. Se esse cara descer desse carro, quem quer que ele seja, eu acabo com ele. Me ajude a permanecer firme, Senhor.

O estranho sentimento angustiante que afligia Eduardo momentos antes havia sido substituído por um mix de adrenalina com tensão. Ainda pedindo mentalmente a Deus que o ajudasse a enfrentar aquela situação, ele sentiu que um sorriso surgia em seus lábios enquanto ele observava o sedã parado a alguns metros. Um sentimento de êxito começava a surgir em seu peito quando o rugir do motor do Landau o desfez.

Inadvertidamente, o veículo partiu de onde estava com ímpeto, sua traseira afundando sobre os amortecedores, e avançou ainda outra vez. Ganhou velocidade rapidamente e atingiu o pedestal com a quina esquerda do compartimento do motor, destroçando outro farol e arrancando um grande pedaço de mármore da coluna. E, desta vez, surtiu efeito. Eduardo sentiu o pedestal balançar e ouviu o mármore se partir em quatro ou cinco partes enquanto tombava para frente. O vigilante veio abaixo junto com a imagem de Nossa Senhora.

Atordoado pela queda, Eduardo não viu o Landau recuar, e também não viu quando ele avançou em sua direção novamente. O vigilante só o notou quando já não havia mais tempo hábil para reação. O para-choque do sedã empurrou a imagem de Nossa Senhora com violência para frente, prensando a perna de Eduardo entre ela e o altar. O som desagradável de ossos se quebrando se sobrepôs por um instante ao som potente do motor, e o vigilante soltou um berro de dor.

Ele tentou virar o corpo e soltar a perna presa, sentindo lágrimas quentes brotando de seus olhos e rolando por seu rosto, mas viu que seria inútil. Sua perna estava prensada como uma posta de carne entre a pesada imagem de Nossa Senhora e o altar, e mesmo sem o peso do sedã forçando a estátua seria quase impossível para ele se soltar sozinho.

Apoiando-se sobre as duas mãos, Eduardo abaixou a cabeça e pôs-se a chorar.

Por favor, Deus, me perdoe. Me dê uma chance de me redimir do que eu fiz ao Alan, ele voltou a rezar. Sei que não sou merecedor, mas também sei que o Senhor é bom e Sua misericórdia dura para sempre.

O sedã acelerou e recuou mais uma vez, fazendo uma ligeira manobra para alinhar a carroceria com o local onde Eduardo estava. O vigilante encarou o veículo com o rosto banhado em lágrimas.

Me perdoe, Deus. Apenas me perdoe.

O motor do veículo rugiu novamente. Aquela frente deformada, com um único farol aceso, viria na direção dele a qualquer instante. Por desencargo, ele ainda tentou livrar a perna presa, mas foi em vão.

E só então, encarando o sedã outra vez, lembrou-se do walkie-talkie que trazia consigo. Tateando o cinto, localizou o aparelho e apertou o botão do comunicador.

— Charlie, QAP? — Ele chamou.

O Landau permaneceu imóvel. Eduardo ainda o encarava, vendo pontos brilhantes dançarem diante de seus olhos enquanto uma onda de dor subia de sua perna para seu baixo ventre.

— Prossiga. — Alguém da central respondeu pelo rádio.

— Aqui é o Delta. — Ele apertou o botão do comunicador e se pôs a falar novamente — Preciso de suporte.

Ele não precisava de suporte. Ele sabia que a equipe da empresa onde ele trabalhava não poderia fazer mais nada para ajudá-lo. Ele só não queria ser morto por aquele sedã bizarro e só ter seu corpo descoberto horas depois, já frio e deformado. Aquela idéia o aterrorizava mais do que a própria idéia de sua morte.

— Qual é a ocorrência? — A central questionou.

Eduardo se engasgou com o próprio choro.

— Eu estou... Estou com um 10-34 em andamento. — Era o código que eles usavam para invasão.

Seguiu-se um bipe no walkie-talkie, e então a central respondeu:

— QSL, estamos enviando reforço.

O vigilante ergueu o rádio pela última vez, arfando e fitando o Landau com o rosto marcado pelas lágrimas.

— TKS.

E largou o comunicador no chão, sendo iluminado pela luz branca de um relâmpago e imediatamente ouvindo o ribombar do trovão.

Parado como estava, o veículo parecia debochar da situação. Aquela frente enorme e deformada, com os filetes da grade dianteira quebrados e imitando dentes afiados, parecia rir dele. Parecia que o sedã estava parado apenas absorvendo o sentimento do momento. Ainda arfando e sentindo o corpo formigar da cintura para baixo devido à perna esmagada e ao sangramento, Eduardo recostou-se contra o altar e apenas esperou.

Me perdoe, Deus, sua mente ainda dizia. Me perdoe por não ter sido forte o bastanteMas que seja feita a Tua vontade.

O motor do Landau rugiu, mas ele continuou imóvel. No entanto, o vigilante reconheceu que aquilo era um sinal. O veículo estava prestes a arrancar novamente. Só havia mais uma coisa que Eduardo precisava fazer: terminar a oração que havia iniciado momentos antes.

Abrindo a boca e recitando os versos vagarosamente, ele prosseguiu:

— Livrai-nos... Livrai-nos do mal...

O sedã acelerou outra vez, e as luzes dos freios se apagaram.

— Pois Teu é o reino, o poder e a glória...

O veículo arrancou de uma vez, rabeando a traseira e deixando marcas negras e tortuosas no piso da igreja.

— Para todo sempre... — Eduardo fechou os olhos e escorou a cabeça contra o altar, engolindo em seco — Amém.

O som do motor se tornou cada vez mais alto, cada vez mais alto, até parecer ser a única coisa no Universo. O doentio farol alaranjado aproximou-se rápido e, enfim, alcançou-o. O sedã colidiu contra o altar e atravessou-o, enterrando-se contra a madeira até quase a metade dos para-lamas. Um dos pneus dianteiros estourou e o adorno cromado do capô desprendeu-se e caiu ao chão. E quando o veículo por fim se imobilizou, começou a correr por baixo dele um líquido vermelho-vivo morno.

Estava acabado.

O Landau ainda permaneceu onde estava por algum tempo, iluminado intermitentemente pela luz dos relâmpagos que atravessava os vitrais da igreja, mas logo sirenes começaram a ser ouvidas ao longe. Aquilo esboçou a reação do sedã. Cuidadosamente, o veículo manobrou de ré e recuou pelo corredor central da igreja, deixando lascas de madeira e pedaços de cromado pelo caminho. Chegando ao final do corredor, manobrou penosamente e saiu de frente pelo buraco onde outrora era a porta de entrada da catedral, ganhando a noite e silenciosamente desaparecendo rua abaixo.


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