O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 18
Capítulo 17




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Adam já estava a meio caminho da sala de reunião quando foi alcançado por Guilherme.

— Adam, espere aí! — O detetive chamou.

O gerente parou e se virou, ajeitando as abotoaduras das mangas, esperando que o outro se aproximasse. Guilherme parou a poucos passos dele.

— Não pense que pode soltar uma informação como aquela e sair andando. — Ele disse, severo.

Adam cruzou os braços e alteou uma sobrancelha, avaliando Guilherme.

— Você trouxe alguma intimação, detetive? — Ele perguntou, abaixando o tom de voz.

Guilherme empertigou-se.

— Não.

— Algum mandado de prisão?

O detetive franziu a testa.

— Também não.

Adam assentiu.

— Então eu acho que posso sair andando, sim. — Ele encarou Guilherme nos olhos para ver se ele reagiria.

Mas não. O detetive limitou-se a devolver o olhar e permanecer fitando o gerente, pensativo. Se quisesse obter mais informações dele, teria de tentar outra abordagem. Adam pareceu adivinhar seus pensamentos.

— Tudo bem. Vou fazer uma coisa por você, detetive. — Ele disse, suspirando, e apontou o dedo indicador para Guilherme — Passe lá em casa hoje à noite para conversarmos com mais calma. Esse não é o tipo de conversa para se ter em um local de trabalho.

O detetive foi pego de surpresa. Nunca passaria por sua cabeça que Adam lhe faria aquele tipo de proposta.

— Ok, então. — Ele concordou antes que o gerente mudasse de idéia — A que horas?

— Costumo chegar às sete. Pode ser depois das sete e meia.

Dito isso, Adam se virou e entrou para a sala de reunião, fechando a porta atrás de si. Guilherme ainda permaneceu no mesmo lugar, estático e piscando algumas vezes para tentar assimilar a situação, mas acabou se virando também e descendo para o estacionamento. Pegou seu Civic e voltou para a delegacia.

O detetive nem tocou nos arquivos do caso do “Landau vermelho”. Passou o tempo especulando sobre o que Adam teria para lhe dizer. Enquanto não esclarecesse esse ponto, não teria cabeça para trabalhar com mais nada. No final das contas, Guilherme passou o dia fingindo estar ocupado com qualquer coisa apenas para evitar que o delegado Mascarenhas viesse lhe torrar a paciência.

Já estava escuro quando um trovão estrondoso, seguido pelo brilho alvo do relâmpago, trouxe Guilherme de volta à realidade. Se dedicara tanto a fingir que estava trabalhando que acabou não vendo as horas passarem, e encontrava-se agora organizando as gavetas de sua mesa. Olhando pela janela, o detetive notou que a chuva voltara, e dessa vez com ainda mais intensidade. Mas não seria problema. Desligando seu computador e pegando seu casaco sobretudo, fechou sua sala e saiu.

Guilherme estacionou seu Honda Civic diante da casa de Adam às sete e meia, e nem precisou tocar o interfone. O gerente estava na garagem, ainda de terno e gravata e retirando alguns papéis de dentro de seu Fiat Toro, e notou o detetive chegando. Como o portão já estava aberto, Guilherme foi entrando.

— Boa noite, Adam. — Ele soltou, dando uma ligeira corrida para escapar da chuva.

— Boa noite. — O gerente retribuiu o cumprimento, fechando o portão da garagem — Me desculpe pela bagunça, mas preciso dar uma limpada no carro.

— Eu entendo. — O detetive enterrou as mãos nos bolsos do casaco e desviou os olhos para a direita, vendo o enorme Landau de Adam estacionado ali.

Guilherme resistiu ao impulso de contornar o sedã para inspecioná-lo, mas não precisava nem se esforçar para perceber o estado impecável em que o mesmo se encontrava. Parecia ter acabado de deixar a linha de montagem, e mesmo sob as luzes fluorescentes da garagem, sua carroceria longilínea brilhava de forma suntuosa. Os quatro pneus de tarja branca eram novos e a capota de vinil transmitia um ar de requinte inexistente nos veículos atuais.

Por fim, reunindo uma pilha de papéis debaixo do braço, Adam convidou Guilherme a acompanhá-lo para dentro de casa. O gerente depôs os papéis sobre a mesa da sala de estar e apontou o sofá com uma das mãos para que o detetive se sentasse.

— Bebe alguma coisa, detetive? — Ele ofereceu.

— Água, por favor. — Guilherme respondeu, se sentando.

O gerente assentiu e seguiu para a cozinha. Voltou de lá com uma taça de martini para si, dando apenas uma parada no aparador da sala para colocar uma azeitona em sua bebida, e um copo de água gelada para o detetive.

— Obrigado. — Guilherme agradeceu, pegando o copo, enquanto Adam se sentava numa poltrona de frente para ele — Você tem uma bela casa.

— Obrigado.

— Mora sozinho aqui?

— Por enquanto. — O gerente usou o palito com a azeitona para mexer sua bebida — Ainda não estou pensando no futuro.

Guilherme fez que sim com a cabeça, decidindo entrar no assunto que pretendia.

— Estou curioso, Adam. — Ele comentou, tomando um pouco de água — Porque você decidiu me chamar para conversar?

— Porque eu acho que começamos da forma errada e que esta seria a coisa certa a se fazer. — O gerente cruzou as pernas de forma elegante e deu um ligeiro gole em seu martini — Você me pegou em um momento de correria, e eu estava de cabeça quente. Não tenho nada a esconder, então não vejo por que não te passar as informações que você precisa.

Guilherme franziu a testa, tentando não deixar sua surpresa transparecer. Talvez Adam não fosse tão antipático quanto dera a entender mais cedo. Pelo contrário, estava sendo até bastante conciliador.

— Ok. — Ele terminou de beber sua água — Vamos do início. Como te falei, ainda não estou te acusando de nada. Apenas preciso esclarecer alguns pontos antes de seguir em frente com minha investigação.

— Tudo bem. — Adam concordou.

— Como eu te disse, estou investigando essa série de mortes causadas por um Ford Landau bordô. Por alguma razão que ainda desconheço, todas as vítimas possuem ligação com o caso do seu irmão, há doze anos. O primeiro a ser assassinado foi o delegado Lacerda. Depois dele, foram o Ramon, o Arthur, o Gustavo e o Heitor. — O detetive fez uma pausa para se certificar que Adam o acompanhava, e percebeu que sim — Quando percebi a conexão entre as vítimas e o caso do Alan, pedi à Polícia Federal que levantasse as informações sobre sua família. Soube que seus pais já faleceram e que você esteve ausente do país pelos últimos doze anos e retornou a menos de um mês, provavelmente assumindo as empresas deixadas por seu pai.

— É mais ou menos por aí. — Adam fez um gesto positivo com a cabeça, dando mais um gole em seu martini.

— E como se não bastasse, você não apenas possui um Ford Landau bordô como também poderia ter um motivo para matar aquelas pessoas. Não me entenda mal, Adam, mas é difícil não criar uma certa suspeita sobre você. — Guilherme colocou, com um tom de voz cuidadoso, ao que o gerente assentiu — Mas até agora, isso é tudo o que eu tenho. A única coisa que posso fazer é falar e especular. Por isso, eu gostaria de ouvir o seu lado da história.

Adam ajeitou-se na poltrona.

— Não entendi.

— Quero que me conte sobre você. Como foi e como tem sido sua vida desde o acidente do seu irmão.

O gerente piscou, parecendo entender o que Guilherme queria. Dando mais um gole em seu martini e, pela primeira vez, fazendo uma careta ao engolir a bebida, pôs-se a falar.

— Não sei exatamente como começar, mas vamos lá. — Ele suspirou e seu semblante tornou-se subitamente triste — O acidente com o Alan aconteceu em nosso intervalo entre as aulas. Eu saí de sala para me encontrar com a minha namorada no refeitório, no primeiro andar. Quando estávamos voltando, ouvimos um grito acima de nós e um segundo depois alguma coisa caiu sobre o Monza do professor Eduardo, que estava bem ao nosso lado. Minha namorada e eu recebemos uma... uma chuva de cacos de vidros e respingos de sangue. Quando eu vi, era meu irmão. — A voz dele falhou e ele precisou tomar um pouco de ar antes de prosseguir.

Guilherme aproveitou a pausa de Adam para retirar seu celular do bolso interno de seu paletó e depositá-lo sobre a mesa, discretamente ligando o gravador de áudio. Adam finalizou seu martini e depôs a taça sobre a mesinha de centro. Em seguida, levou a mão esquerda ao peito e olhou pela janela, encarando o nada por alguns instantes.

—- Foi algo muito... — Ele buscou a palavra certa, firmando a voz — Foi uma consequência terrível por um motivo tão... bobo e tão fútil. E foi demais pra mim. — Ele encarou o detetive — Entenda, meu caro. O Alan e eu fazíamos tudo juntos. É claro, como todos os irmãos nós tínhamos lá nossas diferenças. Ele gostava de trabalhar com mecânica e funilaria numa oficina que meu pai tinha na época, e eu gostava mais era de dirigir. Ele tinha um estilo mais clássico, e eu era mais despojado. Mas independente disso, sempre tomávamos conta um do outro. Sempre estávamos juntos. E quando finalmente nos separamos... — Ele engasgou — Deu nisso.

Guilherme assentiu com a cabeça, mas se manteve calado. Daria a Adam o tempo que ele precisasse para falar.

— Como você disse mais cedo, detetive, algumas pessoas precisam se afastar do lugar onde sofreram algum trauma para conseguirem seguir em frente. Foi mais ou menos isso o que aconteceu comigo. — O gerente continuou — Eu não conseguia mais comer, nem dormir, nem pensar, nada. Eu só conseguia pensar no Alan. Para qualquer lado que eu olhasse, eu só via o Alan. Minha cabeça estava a mil. E quando por fim o delegado Lacerda inocentou a galera da escola, alguns dias depois...  — Ele parou, suspirando mais uma vez — Eu surtei.

Guilherme corrigiu sua postura no sofá, já pronto para disparar uma pergunta, mas Adam levantou as mãos espalmadas num gesto de esclarecimento.

— Não da forma que você deve estar pensando, detetive. — Ele explicou — Não peguei uma faca para matar ninguém, nem saí dirigindo aquele Landau por aí atropelando as pessoas. Não, não. — Ele descruzou as pernas, com a expressão ainda mais triste — O que eu quis dizer é que eu simplesmente não aguentava mais nada daqui. Então meu pai procurou um psicólogo e ele sugeriu que eu me mudasse para outro lugar.

O detetive deixou-se recostar no sofá novamente, atento a tudo que Adam dizia.

— E foi o que eu fiz. — Ele continuou, falando pausadamente — Liguei apenas para minha namorada para dizer que precisava dedicar um tempo a mim mesmo e... só isso. Meu pai providenciou minha estadia nos Estados Unidos e me mudei para lá.

— E você consultou algum psicólogo por lá?

— Claro. Fiz acompanhamento psicológico por vários anos. — Ele pegou a taça de martini na mesinha de centro e se levantou — Mais água?

— Não, obrigado.

O detetive devolveu o copo em que havia bebido e Adam rumou para a cozinha. Voltou de lá em menos de dois minutos, e a taça estava cheia de martini novamente. E enquanto o gerente se sentava e cruzava as pernas elegantemente mais uma vez, Guilherme notou que a mão com que ele segurava a taça tremia. Adam estava nervoso. Nervoso ou tentando reprimir algum sentimento. No entanto, o detetive decidiu não comentar aquilo.

— Como você já deve saber, minha mãe faleceu alguns anos depois. — O gerente prosseguiu, sem sequer dar um gole no Martini — Eu já estava até me preparando para voltar ao Brasil para passar algum tempo aqui. Para saber se eu conseguiria me estabelecer aqui, entende? Mas... aconteceu. E acabei optando por continuar por lá mesmo.

— E ninguém sabia onde você estava? — O detetive emendou a pergunta.

— Além dos meus pais, não. Não cheguei a pedir que eles me acobertassem, mas meu pai sempre foi muito discreto com nossos assuntos pessoais.

— Eu entendo. Seu pai era um homem de negócios, não ia querer ser ligado a nenhuma imagem negativa. — Guilherme também cruzou as pernas e segurou o queixo com uma das mãos — E porque você decidiu voltar apenas agora?

— Por consciência. — Adam respondeu, encarando a bebida em sua taça — Minha namorada me fez praticamente essa mesma pergunta quando nos reencontramos. Eu até respondi a ela que, de fato, não há nada que me prenda a esta cidade. O problema é que eu não poderia suportar ver os negócios do meu pai simplesmente serem entregues nas mãos de terceiros. Ele dedicou toda a vida dele às suas empresas, na tentativa de dar a melhor vida possível à nossa família. — Ele suspirou — Eu não poderia simplesmente... dar as costas.

O detetive assentiu lentamente.

— Compreendo. — Ele emendou — De forma que, creio eu, você não foi muito bem recebido por aqui.

— De forma alguma. — Adam complementou imediatamente — Eu já tinha meus desafetos de adolescência, detetive. Eu não era exatamente um santo, e os outros rapazes também não achavam legal que eu andasse por aí exibindo minhas roupas de marca e dirigindo o BMW do meu pai. Afinal de contas, nem carteira de motorista eu tinha. Mas agora... — Ele levantou a taça de martini e bebeu, fazendo outra careta — Mas agora a coisa é um pouco diferente. Desafetos de adolescente são facilmente relevados. O problema é que meu retorno ao país desagradou aos sócios do meu pai. Todos eles esperavam receber uma parte da herança dele, porque ninguém tinha certeza se eu a reclamaria ou não. Como você levantou nossos dados junto à Polícia Federal, imagino que você tenha uma idéia das cifras de que estamos falando.

— Centenas de milhões. — Guilherme comentou, quase num sussurro.

— Exatamente. — Adam assentiu — Veja bem, detetive. Além da Transportes Peixoto, meu pai também era dono de prédios de escritórios em BH e Betim, três oficinas mecânicas e uma empresa de locação de maquinário pesado aqui em Contagem, um condomínio com cinco galpões para alugar e vários outros estabelecimentos comerciais menores. Não vou conseguir me lembrar de todos agora, mas são mais de vinte.

— Caramba... É bastante coisa. — O detetive cruzou os braços e alteou as sobrancelhas, surpreso.

— Exatamente. — Adam depôs a taça de martini sobre a mesinha e inclinou o corpo para frente — Havia muito dinheiro envolvido, detetive. Quem não ia querer receber uma parte disso? Quando meu pai morreu, o advogado dele imediatamente me ligou e disse que os sócios já queriam dar início ao inventário para saber quem receberia o quê. Ele queria saber se eu tinha interesse em voltar para o Brasil e assumir tudo ou se eu abriria mão das empresas e ficaria apenas com o patrimônio pessoal do meu pai.

— Entendo. — Guilherme descruzou os braços uniu as pontas dos dedos diante do rosto num gesto pensativo.

De fato, Adam devia estar cercado de muito pouca amabilidade. Os sócios não deviam estar nem pouco felizes com o retorno inesperado do único herdeiro direto de Antônio. E aquilo levantava uma questão difícil.

— Adam, você sabe de alguém que possa querer prejudicá-lo? — O detetive disparou, sem encarar o outro.

O gerente titubeou, mas manteve-se firme. Apoiando os cotovelos sobre os joelhos e ainda mantendo o corpo inclinado para frente, respondeu:

— Eu poderia te fazer uma lista. Como eu disse, não sou a pessoa mais querida da região. Tenho meus antigos desafetos da época da escola e agora tenho meus sócios, nos quais eu também não deposito confiança total, mas não posso acusá-los de nada a não ser de ficarem de cara feia pra mim. — Ele fez um gesto vago com uma das mãos — A única coisa que sei é que todos me querem longe daqui.

Interessante, Guilherme pensou. Tenho aqui mais uma linha de investigação.

Havia ainda outro assunto sobre o qual o detetive queria conversar.

— Muito bem, Adam. — Ele recostou-se no sofá — Mudando de assunto, quero falar um pouco sobre seu carro também.

— Ok. — O gerente concordou.

— Quando você o comprou?

— Não comprei. Esse carro era do meu avô. Ele o comprou em 1982, ainda zero quilômetro. Na época ainda era moda andar com essas banheiras por aí. — Ele respondeu sem pensar muito — Depois que meu avô morreu, meu pai o trancou na parte coberta da garagem. Ele não gostava muito de carros grandes como esse. E agora, ele é meu.

— Ele ficou anos trancado aqui? — Guilherme indagou, ligeiramente incrédulo.

— Sim. Meu pai apenas pagava o IPVA e o licenciamento para mantê-lo legalizado, mas não andava com ele. Mas agora que ele é meu, decidi restaurá-lo. — Um tom de orgulho surgiu na voz de Adam — Ele ficou pronto há poucos dias.

— Você tem a documentação?

— Claro. — Adam se levantou e caminhou até seu quarto, voltando em poucos minutos e trazendo uma pequena pasta transparente — Aqui está.

Guilherme abriu a pasta e começou a ler os documentos, que eram quase um passo-a-passo do trabalho de restauração feito no veículo. Haviam ainda fotos do Landau desmontado sobre cavaletes e uma relação das peças que foram substituídas ou recondicionadas. Por fim, havia por último uma foto do veículo já pronto, brilhando como uma joia recém-polida. O detetive recolocou os documentos na pasta e devolveu-a a Adam.

— Se importa de eu der uma checada no carro? — Ele perguntou.

— De forma alguma. — O outro respondeu — Vou guardar estes documentos, mas pode ficar à vontade.

E enquanto Adam se retirava, Guilherme se levantou e desceu para a garagem, dando de cara com o Ford Landau bordô.

A primeira coisa que chamava a atenção naquele carro era o tamanho. Com quase 5 metros e meio de comprimento, 2 metros de largura e pesando quase 2 toneladas, era de longe o maior sedã já produzido no Brasil. Outro ponto de atenção era seu motor, o famoso — e temido entre os entusiastas — Ford V8 302, com 199 cavalos de força e quase 40 quilos de torque, o mesmo que equipava o lendário cupê Maverick. Contornando o veículo pela esquerda, chamou também a atenção de Guilherme o interior do sedã. Os apliques em madeira de jacarandá no painel e nas portas, bem como a forração dos bancos em veludo escuro e a alavanca do câmbio automático na coluna de direção, exalavam bom gosto, requinte e elegância. Os pneus, quatro Khumo com faixas brancas, haviam sido recém-colocados no veículo e estavam, como Guilherme constatou, muito pouco rodados. Os para-choques, frisos e o adorno de capô cromados brilhavam como prata reluzente. Chamar aquele carro de luxuoso era quase um pleonasmo.

Era um carro lindo, sem dúvidas. Mas por mais contemplativo ou impressionado que o detetive pudesse estar, não era a beleza do sedã que lhe pedia atenção. Com um olhar atencioso e quase clínico, Guilherme examinava cada centímetro da carroceria em busca de algo que não lhe parecesse certo. Um arranhão recente. Um amassado coberto por tinta. Uma lanternagem mal feita. Uma lente de farol trincada, ou...

— Lindo, não? — A voz de Adam se fez ouvir, cortando a concentração de Guilherme.

O detetive, que encontrava-se abaixado do lado direito do Landau, levantou a cabeça e viu Adam parado na porta que dava acesso à garagem, com os braços cruzados e o corpo recostado no batente. Guilherme se pôs de pé.

— De fato, Adam. Muito bonito, mesmo. Foi uma bela restauração. — Ele olhou para o carro de novo — Eu posso ver o motor?

— Claro.

O gerente adiantou-se e ergueu o capô do sedã, ligando o motor em seguida. O som grave e borbulhante do V8 preencheu a garagem, soando pelo escapamento duplo, e ofuscou totalmente o Fiat Toro parado logo a seu lado. Guilherme terminou de contornar o veículo e postou-se diante do capô aberto.

— É um ronco e tanto, hem? — Ele falou, elevando o tom de voz e debruçando-se para avaliar melhor o bloco do motor.

— É um carro de verdade, detetive. Não é igual a essas caixinhas de fósforo com motorzinho de dentista que fabricam hoje. — Adam devolveu, vindo para o lado dele.

Guilherme deu uma risadinha, concordando com o gerente. De fato, o som daquele motor despertava em qualquer entusiasta por carros a vontade de sentar-se atrás do volante e esmagar o acelerador sem medo de ser feliz, apenas pelo prazer de ouvir seu rugido grave fazer conjunto com o chiado de pneus cantando. Era quase hipnótico.

Mas não era para isso que Guilherme se atentava. Examinando o motor do sedã, ele buscava alguma inconformidade. Um vazamento de óleo, alguma folga em alguma peça, sujeira, manchas de graxa ou fuligem... mas não. O motor, assim como todo o Landau em si, estava imaculadamente limpo e parecia ter acabado de sair da fábrica. Até a cobertura do filtro de ar ainda estava com a etiqueta de identificação.

O detetive empertigou-se e se virou para Adam.

— Pois é, meu caro. Seu carro parece estar em perfeitas condições.

— Não é pra menos. — Adam abriu um sorriso estreito — Paguei uma pequena fortuna para colocá-lo em dia.

Guilherme assentiu, recostando-se contra o para-lama do sedã.

— Posso ser sincero com você, Adam?

O gerente franziu a testa.

— Claro.

— Estou num dilema. — Ele cruzou os braços — Você possui ligação com todas as vítimas do meu caso, possui motivo para tê-las matado e possui um veículo idêntico ao utilizado nos assassinatos. Lembrando que as mortes só começaram a acontecer depois que você retornou para o Brasil. Automaticamente, você o principal suspeito de ser o assassino que eu procuro. — Ele citou pausadamente, dando as devidas ênfases.

O semblante de Adam fechou-se, mas seu tom de voz permaneceu sereno.

— Porém...? — Ele arriscou, notando que Guilherme ainda não havia concluído seu raciocínio.

O detetive permaneceu calado por alguns instantes, mas por fim respondeu:

— Não sei. Alguma coisa me diz que tem algo mais nessa história.


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