O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga
Guilherme foi conduzido à sala da gerência pela recepcionista. Adam estava de pé diante da janela falando ao celular com o vendedor de uma concessionária da Mercedes-Benz e acenou para que entrassem. A recepcionista puxou uma cadeira para o detetive e ofereceu-lhe uma xícara de café enquanto o gerente não finalizava sua ligação.
— Hoje não, Paulo. — Ele estava dizendo — Tenho mais três reuniões agora de manhã e à tarde devo estar fazendo serviço externo. Talvez eu te faça uma visita amanhã. — Ele escutou um pouco — Isso mesmo. Devo levar meu gestor de frota comigo também. Deixe um Axor 1933 disponível para que ele faça o test drive, se possível com um reboque. — Ele acenou com o dedo indicador para que Guilherme esperasse mais um pouco, ao que o detetive assentiu, e continuou ouvindo — Ah, então você conhece o Bruno? Menos mal. Pois bem, se eu for amanhã, será na parte da manhã. Caso ele aprove o caminhão, discutiremos o preço.
Adam voltou-se e caminhou até sua mesa. Sentando-se, abriu seu notebook e pôs-se a digitar um e-mail, ainda com o celular na orelha. Guilherme, por sua vez, estava mais concentrado em sua xícara de café. Enquanto assoprava a bebida para esfriá-la um pouco, no entanto, correu os olhos pela sala do gerente. Na parede por trás da mesa, enquadrada numa moldura preta e elegante, havia a foto de um casal de meia-idade. O homem tinha aparência séria, cabelos prateados e vestia um distinto terno preto. A mulher usava um elegante vestido verde-escuro e um discreto colar de pérolas e tinha os cabelos na altura dos ombros.
Os pais dele, Guilherme deduziu, notando que por baixo da primeira foto havia outra de Adam, ainda adolescente, abraçado a seu irmão Alan.
Fora isso, o derredor da sala era o ambiente típico da gerência. Nas prateleiras, inúmeros livros sobre Administração, Logística e Transportes. Na mesa de canto, várias revistas ligadas ao setor de transporte rodoviário. O detalhe que surpreendeu o detetive foi uma Bíblia aberta no Salmo 23 sobre a mesa, ao lado do telefone fixo.
— Ok, Paulo. A gente se fala amanhã. Até mais, meu caro. — Adam largou o celular, pegou o telefone fixo e discou um ramal — Oi, Bruno, é o Adam. Venha até minha sala, por favor. Quero conversar sobre a compra do Axor. — Ele desligou o telefone e voltou sua atenção para Guilherme — Me desculpe. Quando o assunto é compra, tudo vira um caos.
O detetive riu, dando um gole em seu café e estendendo a mão para o gerente.
— Detetive Guilherme de Paula. Polícia Civil. — Ele anunciou.
— Adam Peixoto. — O gerente retribuiu o aperto de mão com uma expressão serena no rosto — Minha recepcionista disse que você queria conversar comigo.
— Quero, sim.
— Sobre o quê, especificamente? — Adam recostou-se em sua cadeira, balançando a cabeça ligeiramente em negativa.
Guilherme engoliu o resto do café que havia na xícara e depositou-a sobre a mesa. Passou a língua pelos lábios para limpá-los e imitou o gesto de Adam, também recostando-se na cadeira onde estava sentado.
— São seus pais? — Ele apontou para a foto na parede.
O gerente se virou, encarando a fotografia emoldurada e deixando um ligeiro sorriso aparecer em seus lábios.
— São, sim. Eles tiraram essa foto no dia em que completaram quinze anos de casados. — O tom de voz dele era saudoso.
— E aquele é seu irmão? — Guilherme apontou para a foto de baixo.
— É, sim. — Ele respondeu, suspirando e baixando os olhos.
— Gostaria de conversar sobre o que aconteceu com ele.
A serenidade no semblante de Adam desfez-se imediatamente. Os cantos de sua boca se retraíram e suas sobrancelhas pareceram ficar ainda mais angulosas.
— Não converso sobre assunto com ninguém há muito tempo. — Ele disse.
— Eu imagino que sim. — Guilherme emendou com um tom de voz suave — Mas preciso te fazer algumas perguntas.
O olhar que o gerente dedicou a Guilherme foi estreito e frio, mas ele não deixou a elegância de lado.
— Tudo bem.
— Compreenda, senhor Peixoto...
— Adam. — O gerente corrigiu — Me chame apenas de Adam, por favor.
— Ok. — O detetive assentiu — Compreenda, é curioso. “Tropecei” no caso do seu irmão por acaso enquanto conduzia uma investigação, e preciso esclarecer alguns pontos. — Ele inclinou ligeiramente a cabeça — Porque você permaneceu tanto tempo fora do país, Adam?
A surpresa que estampou o rosto de Adam foi genuína.
— Como...? — A voz dele falhou.
— Além do inquérito sobre o que aconteceu com seu irmão, também tive acesso a alguns registros da Polícia Federal. Neles constam que você deixou o país alguns dias após o falecimento do Alan, doze anos atrás, e retornou há menos de um mês.
Adam abriu e fechou a boca e piscou algumas vezes, ensaiando uma resposta. Por fim, balançou a cabeça em negativa e empertigou-se na cadeira.
— Por quê quer saber?
— Como eu disse, Adam, é curioso. No inquérito sobre a morte do Alan, havia um memorando registrando um possível desaparecimento seu.
O gerente negou com a cabeça e soltou uma risada nervosa.
— Como é? — Ele piscou mais algumas vezes, aturdido.
— Exatamente o que você ouviu.
Adam riu, tentando disfarçar o nervosismo, mas não conseguiu. Acabou inclinando o corpo para frente e apoiando os cotovelos na mesa, espalmando as mãos na direção do detetive como se pedisse calma.
— Detetive... — Ele fechou os olhos por um momento, escolhendo bem as palavras — Se você teve acesso ao inquérito, sabe exatamente o que aconteceu com meu irmão. Sabe como ele morreu. Mais do que isso, sabe que aconteceu bem na minha frente. — Ele abriu os olhos e os sentiu marejando — Não espero que você entenda a dor que eu senti. Ninguém conseguiria entender. Ver o meu irmão caindo... Aquele som horrível... — A voz dele falhou e lágrimas teimosas correram de seus olhos — Foi apenas... horrendo. Foi demais pra mim. Por isso eu resolvi tirar um tempo para mim. Eu precisei me desligar daqui. Foi... — Ele arfou — ...traumático.
Guilherme cruzara as mãos sobre o colo e assentia com a cabeça.
— Certo. — Ele disse — Eu compreendo. Sei que traumas são difíceis de serem vividos e sei também que algumas pessoas escolhem se afastar do local onde o ato traumático aconteceu para evitarem pensar no fato. — Ele viu o gerente assentir em concordância — Entretanto, Adam, não é na morte do seu irmão que quero focar.
Adam limpava uma lágrima com a mão esquerda e deteve o gesto pela metade.
— Como assim?
Guilherme adiantou-se e escorou os braços sobre a mesa.
— O que exatamente você sentiu com o veredito do delegado Lacerda? Acha que foi justo?
A expressão aturdida se manteve no rosto do gerente.
— Isso é sério? — Ele perguntou, seus olhos se estreitando novamente.
— Sim. — Guilherme respondeu.
Adam passou as duas mãos pelo rosto, limpando-o, e depois se recostou sobre a mesa também. Parecia um executivo prestes a fazer uma negociação milionária, a não ser pelo misto de raiva e tristeza que emanava de seus olhos negros.
— Detetive... — Ele começou a dizer pausadamente — Eu entendo que você está apenas fazendo o seu trabalho, mas eu gostaria de saber por que está me perguntando isso.
— Eu te fiz uma pergunta, Adam. Me responda primeiro, depois te explico o por quê.
Qualquer amabilidade ou suavidade nas atitudes de Adam havia desaparecido. Sua expressão facial agora era tão fria quanto um iceberg.
— Eu o odiei, detetive. — Ele respondeu. Sua voz soou tão baixa quanto o sibilo de uma cobra e suas mãos se retesaram com tanta força que as veias chegaram a saltar — Odiei com todas as minhas forças. O delegado Lacerda inocentou um bando de assassinos. Durante a investigação, eu provei por A mais B que meu irmão e eu estávamos sendo vítimas de um ódio sem sentido naquela escola desde o instante em que nos matriculamos apenas pelo fato de virmos de uma família rica, e o que você acha que aconteceu? Nada, meu caro detetive. O delegado simplesmente ignorou meus argumentos e optou por deixar aqueles filhos da puta livres, prestando serviços comunitários fúteis.
O tom de voz de Adam era lento e sombrio e evidenciava tanto ódio, rancor e amargura que Guilherme ficou em alerta.
— Agora tente se colocar no meu lugar. — O gerente descruzou as mãos e espalmou-as sobre a mesa. As lágrimas que voltaram a correr de seus olhos e os cantos de sua boca ainda mais contraídos demonstravam o choro que estava por vir, mas a expressão dele ainda era gelada — Eu vi meu irmão despencar do quarto andar de um prédio e cair sobre o teto de um carro. Ouvi o corpo dele estourar como um tomate podre. Recebi uma chuva de cacos de vidro e sangue. Sangue dele. — Adam inclinou o corpo para frente, como se fosse se pôr de pé — Aí eu te pergunto, detetive: o que mais eu deveria sentir com o veredito do delegado Lacerda além do mais puro e genuíno ódio?
Guilherme recuou, ligeiramente temeroso. A expressão facial no rosto do gerente era a da uma cascavel prestes a dar um bote mortalmente venenoso. Seus olhos estavam vidrados e fixos nos do detetive.
— Ok, Adam. — Guilherme disse, num tom comedido — Você sabe que ele morreu, não é?
O gerente respirou fundo, mas a expressão em seu rosto se manteve.
— Eu fiquei sabendo. — Ele respondeu, assentindo.
— Como soube?
— Minha namorada me contou. Depois, vi na televisão.
Guilherme ergueu as sobrancelhas.
— Hum. — Ele murmurou — Só isso?
Adam estreitou os olhos ainda mais.
— Eu deveria saber mais?
O detetive negou com a cabeça, mas continuou falando:
— Não sei. — Ele cruzou os braços — E sobre os seus antigos colegas de classe? Sabe como têm vivido?
— Você está me provocando, detetive, ou é apenas impressão minha? — Adam quase cuspiu a pergunta — Se você quer me perguntar algo, seja direto.
Guilherme piscou. Toda a atitude corporal do gerente era ameaçadora. E apesar de sua baixa estatura, Adam parecia forte o bastante para derrubá-lo sem muito esforço. O detetive decidiu deixar os rodeios de lado.
— Estou investigando uma série de assassinatos, Adam. Até o momento, cinco pessoas foram mortas do mesmo modus operandi. Perseguidas e mortas por um carro.
— E o que o caso do meu irmão tem a ver com isso? — O gerente emendou, ainda com os olhos semicerrados.
O detetive empertigou-se.
— Desses cinco, o primeiro a morrer foi o delegado Lacerda. Ele teve o carro atingido na traseira por um Ford Landau bordô, perdeu o controle e caiu de um viaduto. — Ele percebeu uma mudança brusca na postura de Adam. O gerente arregalou os olhos e recostou-se novamente em sua cadeira, mas Guilherme prosseguiu com sua narrativa — Alguns dias depois, um tal de Ramon foi esmagado contra um muro por um carro no bairro Cinco. A perícia não conseguiu descobrir o modelo, mas constatou que era um carro de cor bordô.
Adam havia deixado toda a frieza de lado. Agora sua expressão era de puro choque. Guilherme, todavia, continuou falando:
— Depois, teve um tal de Arthur. Ele foi prensado contra o chão por algo pesado, como se tivesse sido atropelado. O corpo dele estava marcado de graxa e fuligem, mas haviam marcas de cor bordô no carro dele, que também foi destruído na ocasião. — Ele cruzou as mãos sobre o colo novamente — E depois foi um tal de Gustavo. O carro dele capotou e atingiu um poste de luz, incendiando-se em seguida. Ele também foi atingido por um Ford Landau. E depois teve o Heitor. A caminhonete dele também foi jogada para fora da rodovia por um Landau da mesma cor.
A cada nome citado pelo detetive, Adam parecia encolher na cadeira. Estava com os olhos estatelados e a boca ligeiramente aberta, numa atitude completamente perdida.
— Puxei a ficha de cada um dos falecidos e descobri algo interessante. Com exceção do delegado Lacerda, todos os outros haviam concluído o ensino médio na mesma escola e haviam sido citados no mesmo inquérito policial, doze anos atrás. — Guilherme finalizou — Agora eu te pergunto, Adam: eu preciso mesmo te dizer onde o caso do seu irmão entra nisso?
A expressão chocada no rosto do gerente se manteve. Ele subitamente parecia ter perdido a capacidade de falar.
Aí tem coisa, Guilherme pensou. Se ele sabe de algo, vou pegá-lo.
O detetive ergueu o queixo, demonstrando que esperava uma resposta. Adam balançou a cabeça algumas vezes, genuinamente perdido.
— Eu... Quer dizer... Não consigo acreditar. — Ele murmurou — Isso é verdade mesmo?
— Não costumo brincar em serviço, meu caro. — Guilherme emendou.
Adam arfou, baixando os olhos.
— Todos eles... Todos estavam... Estavam... — Ele balbuciou, mas se deteve pela metade da frase.
— Isso mesmo. Todos estavam relacionados no inquérito sobre a morte do seu irmão. — O detetive completou o raciocínio do gerente.
Aquilo pareceu acionar algum gatilho na mente de Adam. A expressão glacial voltou aos olhos dele.
— Você está me acusando de alguma coisa, detetive?
Guilherme negou com a cabeça.
— Ainda não.
— Ainda?
— Isso mesmo. Ainda. — Ele foi curto e grosso — Preciso te fazer mais uma pergunta.
— Que seria...?
O detetive empertigou-se.
— Qual carro você dirige?
Adam chegou a abrir a boca para responder, mas foi interrompido por uma gritaria no corredor. Antes que pudesse se levantar para ir ver do que se tratava, a porta foi aberta por Bruno, que entrou andando de costas e gritando com uma das assistentes do setor financeiro:
— Eu quero do jeito que eu quero, na hora que eu quero. Se não for assim, não quero mais!
— Eu não esperava isso de você, Bruno! — Ela gritou de lá.
— Ah, tá, agora a culpa é minha por você depositar confiança numa pessoa que não sabe nem descascar laranja? — Ele fechou a porta e se virou, dando de cara com Guilherme e Adam — Eita, preula. Bom dia, chefe. — A expressão no rosto do gerente congelou-o — Eu... dei manota, né?
Adam ajeitou o paletó e corrigiu sua postura na cadeira.
— Bruno, este é o detetive Guilherme. — Ele foi polido, fazendo a apresentação.
Os dois trocaram um aperto de mão e Bruno aproximou-se da mesa. Só então Adam notou a pasta que ele carregava.
— Eu trouxe os dados do Axor. — O gestor de frota anunciou — Também trouxe os do Volvo FH12 e do Scania R420, apenas para efeito de comparação. Está tudo naquele e-mail que te enviei.
Adam pegou a pasta que Bruno estendeu e começou a folheá-la.
— Porque você estava brigando com a Sara? — Ele perguntou, sem tirar os olhos dos papéis.
— Porque ela é sem noção. — Bruno respondeu depressa — Pedi a ela pra comprar pra mim um grampeador de 100 folhas para amanhã, mas ela disse que só pode me comprar um de 50 folhas. E só na semana que vem!
O gerente ergueu os olhos.
— Tudo isso por causa de um grampeador?
O gestor de frota deu ombros, e Adam apenas suspirou. Bem que Fernanda havia o alertado que Bruno era meio amalucado.
— Muito bem. — Ele fechou a pasta e devolveu-a para o gestor de frota — Me espere na sala de reunião. Quero olhar melhor os dados do Volvo. Vou apenas terminar com o detetive aqui.
Bruno assentiu, fez uma mesura para o detetive e saiu. Adam aproveitou o momento para se pôr de pé.
— Como vê, detetive, tenho outros assuntos para tratar. — Ele caminhou para a porta ajeitando a gravata — Se quiser conversar mais, agende um horário com minha assistente. Agora por favor, me dê licença.
Guilherme continuou sentado, encarando o gerente. Ele realmente desconfiava que Adam sabia de algo, mas não pôde deixar de notar um detalhe: a surpresa do gerente ao receber a notícia sobre as mortes havia sido genuína. A expressão nos olhos dele era quase impossível de ser fingida.
Tudo bem, Guilherme concluiu para si mesmo. Não vou conseguir tudo de uma vez.
— Ok, Adam. — Ele disse — Precisamos mesmo conversar um pouco mais.
O outro assentiu.
— Então, até mais.
O gerente se virou e seguiu pelo corredor, mas parou a meio caminho. Virou-se e voltou até sua sala, colocando metade do corpo pela abertura da porta.
— A propósito, detetive, eu tenho dois carros. — Ele disse, respondendo à última pergunta de Guilherme e fazendo-o erguer os olhos — Um Fiat Toro verde e... um Ford Landau bordô.
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