O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 15
Capítulo 14




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A chuva deu uma leve estiada pouco após as oito horas da noite, e Fernanda aproveitou a deixa para descer para a casa de Adam. Ela tinha visto o namorado apenas uma vez durante o expediente do trabalho, e não havia gostado do semblante caído dele. Sabia que ele estava chateado por causa do incidente na churrascaria, e sentiu-se na obrigação de tentar animá-lo um pouco.

O portão estava aberto, como de costume. Fernanda entrou e seguiu para a casa, passando pela copa e seguindo na direção da sala de estar, cuja luz era a única acesa. A encarregada pensou que encontraria Adam treinando kung fu novamente, mas não. O gerente estava sentado à mesa diante de seu notebook aberto e consultava várias folhas de papel ao lado. Ainda vestia o mesmo terno preto com gravata vermelha com que havia ido trabalhar naquele dia e usava um fone de ouvido com microfone sem fio no ouvido esquerdo. Quando viu Fernanda chegando, apontou para o celular sobre a mesa e fez um discreto sinal de mão para que ela esperasse. Parecia extremamente cansado.

— Oi, Adam, desculpe a demora. — Alguém disse ao celular em tom de voz exaltado. O aparelho estava no viva-voz.

— Como eu dizia, Alex. — Adam começou a falar, voltando a atenção para o notebook — Não vou negociar os prazos de entrega do parceiro de Teófilo Otoni. Apenas algumas poucas cidades mais ao norte estão sendo atendidas com três dias devido a restrições de acesso, todas as demais são atendidas com dois. Até o momento não recebi nenhuma reclamação de nenhum cliente sobre atraso de entrega e meu indicador de performance está dentro da meta, então não tenho porque mudar os prazos de entrega de todas as cidades para três dias.

— Mas Adam, está ficando complicado fazer o acompanhamento deste parceiro. Todos os dias eu tenho que gerar os relatórios de armazém e ficar filtrando quais cidades entregam com dois dias e quais entregam com três antes de ligar para o parceiro para despachar as pendências. Levo de uma hora e meia a duas horas para fazer isso.

— Eu sei, e é para isso que você é pago. — Uma linha de expressão surgiu na testa do gerente, e ele ajeitou o fone de ouvido — Se você tiver alguma idéia melhor de como fazer o acompanhamento do parceiro, apresente-a na próxima reunião geral. Até lá, preocupe-se apenas em contribuir para que a performance do parceiro permaneça acima dos 98 por cento.

— Adam...

— Por favor, Alex, não estou com clima para choradeira. Se você está se sentindo sobrecarregado ou acha que não está conseguindo conciliar sua demanda de serviço, me procure pessoalmente para conversar. Este assunto não é coisa para se tratar por telefone.

O outro bufou.

— Tudo bem, então. Boa noite, chefe.

— Boa noite.

Desligando o telefone, Adam retirou o fone de ouvido e jogou-o sobre a mesa. Cruzou as mãos diante do notebook e encarou Fernanda com um semblante fatigado, suspirando.

— Agora não é a melhor hora, Fernanda.

Ela se aproximou, postando-se por trás da cadeira onde ele estava sentado e massageando-lhe os ombros. Ele gemeu involuntariamente, fechando os olhos e deixando escapar ruídos abafados da garganta.

— Pela última vez, Adam, o que aconteceu ontem não foi culpa sua. — Ela disse, friccionando os polegares contra a nuca dele — Você apenas se defendeu. Só isso.

O gerente até esboçou responder, mas acabou apenas suspirando mais uma vez. Permaneceu com os olhos fechados e baixou a cabeça para frente, para que Fernanda pudesse massagear-lhe melhor o pescoço.

— Está bom assim? — Ela perguntou, enquanto pressionava-lhe o trapézio com as duas mãos — Você está muito tenso.

— Uhum. — Ele apenas murmurou, sem abrir a boca.

— O que o Alex queria? — Ela perguntou, mudando de assunto, apenas para fazê-lo falar.

— Encontrei com ele hoje à tarde e ele disse que iria me ligar para tratar os prazos de entrega de um dos parceiros do interior. Mas não é nada demais. Ele só está sendo preguiçoso, mesmo. — Ele deu uma risadinha — E a propósito, ele é um de seus assistentes. Tome uma atitude logo.

— Pode deixar, vou conversar com ele amanhã. — O tom de voz dela traiu uma leve irritação — A empresa tem uma hierarquia a ser respeitada. Ele não pode sair ligando para o gerente quando bem entender. Ele precisa entender isso.

Adam levantou a cabeça e abriu um sorriso canastrão.

— É isso aí. Gosto assim.

— É, mas não vim aqui pra falar de trabalho. — Ela emendou — Vim para saber como você está.

A mudança de expressão no rosto dele foi brusca, e o olhar que ele lançou à namorada foi triste.

— Terrível. — A voz dele adquiriu um tom melancólico — Eu estou me esforçando para compensar o tempo que perdemos, e sempre que...

— Adam, por favor. — Ela pousou um dedo sobre a boca dele, enlaçando-o com os braços na sequência — Eu sei que você tem se esforçado, e valorizo muito isso. De verdade. O que eu não quero é que você fique se colocando para baixo porque alguns desafetos antigos não te querem por perto. Você é melhor do que isso.

— Mas...

— Você é melhor, Adam. — Ela o abraçou mais firme — Eu te conheço bem. Sei quem você é e do que você é capaz. Sei que você é um empresário bem sucedido e um homem de muita classe, que não pode permitir que um incidente como esse estrague seu ânimo.

Ela nem precisou fitá-lo para perceber o sorriso estreito que ele abriu. Ele, entretanto, afastou-se um pouco para o lado para conseguir olhá-la nos olhos.

— Você é um santo remédio, sabia? — Ele comentou, num tom doce e sussurrado.

— Eu faço a minha parte. — Ela devolveu, encarando-o também.

Ficaram assim por algum tempo, trocando olhares e sorrisos silenciosos. Não havia necessidade de mais nada naquele momento. Poderiam permanecer naquela posição por horas, apenas deixando que seus olhos transmitissem tudo o que desejavam dizer um ao outro.

Mas o magnetismo que fluía entre eles insistiu em falar mais alto. Desfazendo o sorrisinho que ostentava, Adam aproximou seu rosto do de Fernanda e capturou os lábios dela com os seus. Foi um beijo leve, suave e cauteloso, quase uma carícia. Foi uma forma delicada e cálida de finalizarem o assunto, pois não era mais necessário o uso de palavras entre eles naquele instante.

Sentindo uma energia intensa fluir dele para dentro de si, Fernanda contornou a cadeira e foi sentar-se sobre o colo dele, imediatamente sentindo a reação natural dele elevando-se por baixo do fino tecido de sua calça social. Ela deslizou as mãos pelos ombros e nuca dele e apertou-o contra si, intensificando o beijo. Ele imediatamente correspondeu, enlaçando-a com os braços e pressionando-a de encontro a seu próprio corpo.

E estava ditada a regra da noite. Era assim que eles compensariam um ao outro pela frustração da noite anterior. Segurando a namorada com força pelo quadril, Adam ergueu o corpo e levou-a consigo, caminhando em direção ao sofá. Ao se virar para deixar a mesa, porém, fez com que algo esbarrasse em seu notebook. O site Youtube estava aberto e um vídeo aleatório de uma das playlists de Adam começou a tocar. Era a música-tema do filme O Homem Bicentenário, e nenhum dos dois preocupou-se em pausá-la.

Depondo a namorada sobre o sofá, o gerente ocupou-se em se livrar rapidamente de seu paletó e sua gravata, enquanto ela tratava de tirar a própria blusa. Após livrar-se de sua camisa e jogá-la em um canto qualquer, Adam deitou o peito despido sobre o corpo de Fernanda e passou a beijar-lhe o pescoço de forma provocante e, ao mesmo tempo, carinhosa. Usou os dentes para brincar com a pele da namorada, dando-lhe leves mordidas nos lobos das orelhas e sobre os ombros, e ela riu de puro prazer.

Enquanto ocupava-se com isso, Adam aproveitou para retirar os sapatos, empurrando-os com os pés, desafivelar o próprio cinto e abaixar sua calça. Seu membro pulsava sob sua cueca boxer azul e exageradamente justa, e Fernanda não escondeu sua satisfação ao ver o namorado seminu. O gerente levou as mãos à cintura dela e deixou o peso de seu corpo pressionar o dela contra o estofamento do sofá, e ela abafou um murmúrio lascivo que brotou de sua garganta.

Ele ia tomar o controle da situação, como sempre fazia. Ele ia ditar o ritmo, ele sempre fazia isso. Mas não naquela noite. Movida por uma súbita inspiração, Fernanda enlaçou o corpo de Adam com os braços e girou-os, fazendo-o se sentar. Pego de surpresa, ele interrompeu o beijo e encarou-a.

— Mas o que...

— Ssssh. — Ela calou-o com um beijo leve — Apenas aproveite.

Pondo-se de pé, a encarregada livrou-se de sua calça e do sutiã, ficando apenas com a calcinha preta que usava. E enquanto tirava a roupa, fazia movimentos ondulantes de quadril na direção do namorado, como uma dancinha sensual tosca. Adam olhava-a de cima abaixo, num misto de diversão e deleite. Abriu os braços e escorou-os no encosto do sofá, obedecendo à recomendação da namorada de apenas aproveitar. Ela, por sua vez, segurou o elástico fino da calcinha com os polegares e, dando prosseguimento ao seu projeto de dancinha seduzente, ajoelhou-se no sofá e sentou-se sobre Adam novamente. O olhar dele já era de pura perversão. Vez ou outra, ele mordia o próprio lábio inferior e deixava escapar um gemido arfado entre os dentes, denotando o quanto ele queria possuí-la. Mas o controle era dela. Ela estava por cima, então ela ditava as regras.

Acariciando os ombros e o peitoral do namorado com leveza e carinho, Fernanda foi deslizando o próprio corpo para baixo. Perdeu um bom tempo desenhando o contorno dos músculos do abdômen dele com a ponta dos dedos até que, por fim, encontrou a borda da cueca dele e puxou-a para baixo com cadência, olhando-o bem nos olhos. A ânsia estampada no olhar dele era quase proibitiva. Por fim, terminando de despir o namorado, Fernanda deixou a cueca dele cair no chão e ergueu o corpo novamente, ocupando-se em tirar a própria calcinha. Adam até tencionou levar as mãos ao corpo dela para ajudá-la, mas ela o repreendeu com um olhar.

— Tudo bem. — Ele entendeu o recado e repetiu a fala dela — “Apenas aproveite”.

Ela assentiu e se livrou da lingerie, sentando-se sobre o namorado mais uma vez. O contato do membro ereto dele com o baixo ventre dela causou um enorme frisson em ambos. Ao mesmo tempo, Fernanda alcançou a boca dele novamente e depôs ali um beijo quente, permissivo e intenso. Adam não se conteve e acabou enlaçando-a com os braços mais vez, pressionando o corpo dela de encontro ao seu e beijando-lhe os seios com força. Era uma forma bruta, lasciva e extremamente carnal de demonstrar o desejo que sentia por ela e o quanto queria compensá-la por tudo que haviam passado.

Aproveitando a investida do namorado, Fernanda baixou a mão direita e segurou o membro dele, guiando-o para dentro dela. A sensação de senti-lo preenchê-la era inebriante, e ela não conteve um gritinho de tesão. E então, sentindo seu baixo ventre ferver como a fornalha de uma locomotiva a vapor, a encarregada apoiou-se no encosto do sofá e começou a erguer e baixar o corpo, sentindo Adam entrar e retirar-se dela. Devagar e cautelosa no início, ela aos poucos foi acelerando a velocidade de suas investidas de quadril para movimentos rápidos e fortes.

Adam não conseguiu manter o beijo dos dois. Fechando os olhos e reclinando a cabeça para trás, gemia livremente de prazer enquanto segurava a namorada pela cintura e a ajudava a se movimentar sobre ele. Era uma dança primeva, tão antiga quanto a própria humanidade e tão intensa quanto uma explosão nuclear. Era um mix de sensações que bambeava o corpo e efervescia a alma de ambos.

E quando por fim o orgasmo chegou, ele veio intenso, longo e profundo. Adam corrigiu sua postura e cravou os dentes no ombro de Fernanda, enquanto ela inclinava-se para frente e enterrava as unhas nas costas dele. Permaneceram alguns instantes assim, abraçados e arfantes, como motores que precisam de resfriamento após um superaquecimento. Depois, afastaram-se alguns poucos centímetros para que pudessem olhar nos olhos um do outro.

Foi Adam quem quebrou o silêncio.

— Delícia. — Ele soltou, num sussurro.

Ela deu uma risadinha e depositou um beijo leve na boca dele.

— Sabe o que é melhor? — Ela perguntou.

— O quê?

Ela abriu um sorriso cínico, apesar da respiração ofegante.

— Você é muito lindo. E é só meu.

Adam riu e ergueu um braço para coçar a nuca.

— Boba. — Ele adiantou-se e beijou-a novamente — É por isso que eu te adoro. Você sabe me fazer rir.

— Que bom. — Ela saiu de cima dele e sentou-se ao lado — Foi muito bom, mas e aí? Tem alguma coisa aqui para bebermos?

Ele a encarou em silêncio, ostentando um sorriso estreito e satisfeito, e levantou-se. Caminhou até o aparador de madeira no lado oposto da sala e tirou uma garrafa e duas taças de lá. Voltando para o sofá, passou uma das taças para Fernanda e ergueu a garrafa, anunciando:

— Càlem safra 1961. É um vinho português conservado em casco e engarrafado em 1989. — Ele se fez de pretensioso — E aí, o que me diz?

Fernanda sorriu antes de responder. Após um momento tórrido como o que haviam acabado de ter, beber vinho só poderia indicar uma coisa.

— Quem topa uma segunda rodada?

 

o—o—o

 

O Chevrolet Classic branco encostou silenciosamente rente ao meio fio. O taxista olhou em volta, aturdido, e depois fitou sua passageira pelo retrovisor.

— Tem certeza que o lugar é este, moça?

A ruiva sentada no banco de trás também olhou ao redor e conferiu seu celular mais uma vez.

— Sim, é aqui mesmo.

O taxista tornou a olhar em volta. Estavam em uma rua sem saída no limite do bairro Parque São João, em Contagem, ladeada por vários terrenos baldios tomados por vegetação e iluminada por um único poste de luz cuja lâmpada piscava de forma intermitente. A passageira estava bem vestida, com um corpete justo e sapatos de salto alto, e não parecia interessada em fazer manutenção na rede elétrica do local ou catalogar diferentes espécies de mato.

O motorista virou-se para olhá-la melhor.

— Tem certeza? — Ele perguntou, receoso.

A ruiva empertigou-se. Deu uma rápida olhada em seu telefone novamente, respirou fundo e respondeu:

— Tenho, sim. Quanto deu a corrida?

— Vinte e oito.

Ela puxou três notas de 10 reais de sua bolsa e as deu para o motorista.

— Obrigado. — Ele agradeceu e pegou o dinheiro — A senhora quer que eu venha buscá-la mais tarde?

— Eu te ligo se precisar. — Ela finalizou.

O taxista acenou positivamente com a cabeça e se ajeitou no banco, enquanto a passageira desembarcava. Após isso, retornou com o Chevrolet e afastou-se, ainda tentando pensar em algum motivo que levasse uma mulher tão bonita a se dirigir a um lugar ermo e escuro como aquele àquela hora da noite.

Juliana pensava o mesmo. Ainda parada no mesmo lugar desde que descera do táxi, olhava em volta com certo receio. Parecia não haver mais ninguém por ali além dela e de algumas corujas que piavam no escuro. Ela, no entanto, sabia por experiência própria que “mato tem olhos e parede tem ouvidos”.

Ela destravou o celular e digitou:

já cheguei. onde vc tá?

A mensagem dela não demorou a ser respondida.

onde combinamos.

Juliana levantou os olhos do aparelho e deu mais uma conferida em seu entorno. Não havia nenhuma residência ou carro à vista, e ela começou a se preocupar. Não tinha como ter errado o local, o próprio cliente havia enviado a localização para ela. Respirando fundo, começou a andar vagarosamente para o fim da rua, aproximando-se do poste de luz. Uma voz em sua cabeça lhe dizia para que ela se virasse e fosse embora, que aquilo era loucura, mas ela precisava do dinheiro.

Ela não se orgulhava de se prostituir. Não era o meio de vida que ela planejara para si mesma. Todavia, era uma solução imediatista para se manter até que concluísse a faculdade. A economia do país não estava em seus melhores dias e estava cada vez mais difícil conseguir um emprego. Até lá, ela precisava dar um jeito de se sustentar. Um jeito ou algo mais.

Chegando mais perto do poste no fim da rua, Juliana conseguiu divisar um vulto largo e mais escuro, que ela julgou ser um carro, em um espaço aberto entre a vegetação, e ensaiou um suspiro de alívio. Já havia passado por situações como aquela antes. Quase sempre eram clientes casados que sentiam-se estressados com sua vida rotineira e queriam “comer por fora” sem chamar a atenção.

Ela levantou seu celular, desbloqueou-o e digitou:

prontinho, baby.

Quase imediatamente os quatro faróis altos do veículo foram acesos sobre ela, como olhos brilhantes que se abrem repentinamente, e o rugido do motor sendo acelerado preencheu o ar. O carro, um enorme sedã com capota de vinil, arrancou de onde estava com ímpeto, os pneus traseiros derrapando e jogando terra e grama para trás, e avançou sobre Juliana.

Ela foi salva por seus reflexos. Ainda nem havia largado o celular quando percebeu as luzes do veículo sendo acesas e vindo em sua direção. Ela se jogou de lado sem nem parar para pensar, caindo sobre uma pequena moita na sarjeta e soltando um grito de dor, e sentiu o carro passar por ela baforando ar quente. Ouviu os pneus chiando quando o sedã foi freado com força e viu as luzes de ré acendendo. O motor rugiu alto novamente e o carro recuou, mas Juliana levantou-se e pulou para frente de novo, quase atingindo a estaca de uma cerca com a cabeça. A traseira do sedã subiu no meio-fio, rangendo a suspensão e os pneus, e afundou contra a vegetação do terreno baldio.

Arfando, Juliana aproveitou para fugir. Pondo-se de pé, ela largou o celular e a bolsa no chão e correu o máximo que pôde, tentando não tropeçar com seus sapatos de salto alto. A esquina com a rua mais próxima estava longe, mas ela torcia para que o carro tivesse ficado enganchado sobre a calçada. O som possante do motor sendo acelerado mais uma vez, entretanto, foi uma negação ao desejo dela. Olhando de soslaio para trás enquanto corria, Juliana percebeu o veículo retornando para a rua vagarosamente e parando, como um animal sorrateiro espreitando sua vítima.

A ruiva virou-se para frente novamente e esforçou-se ainda mais para correr, sua respiração entrecortando-se entre arfadas curtas e gritinhos espontâneos. Lá de trás, o sedã acelerou uma, duas, três vezes e então partiu. Seus pneus chiaram mais uma vez, um som estridente e alto como o grito de uma mulher ensandecida, intercalado ao ruído do escapamento duplo que espocava como o de um trator. O veículo ganhou velocidade rapidamente, numa fúria demoníaca, e Juliana percebeu que ele avançava em linha reta diretamente para ela.

Ela viu sua sombra crescer à sua frente rapidamente enquanto o sedã se aproximava, e tentou pensar em várias formas de escapar àquele ataque. Ao mesmo tempo, tentava imaginar por que alguém a atacaria daquela forma. Seu cérebro, porém, confundiu-se com tantos pensamentos ao mesmo tempo e tudo que ela conseguiu fazer foi gingar o corpo para a direita, tentando sair da trajetória do veículo. O motorista, no entanto, pareceu adivinhar o último e desesperado pensamento da moça e deu uma guinada forte com o volante para a direita também, atingindo-a bem no meio das costas.

Juliana foi erguida do chão, os sapatos escapando de seus pés, e atirada a muitos metros de distância. Seu corpo bateu forte ao cair no chão e rolou pelo asfalto, deixando pedaços de tecido e pele e marcas de sangue para trás. Sua coluna estava partida em dois pontos diferentes e uma de suas escápulas havia sido deslocada com a força do impacto.

Mas ela ainda estava viva. Atordoada após bater a cabeça no pavimento inúmeras vezes e sentindo alguns dentes quebrados em sua boca, a ruiva ergueu os olhos apenas para deparar-se com o enorme sedã parado a poucos metros dela. Visto assim de perto, ele parecia ainda mais medonho. Aquela grade dianteira de filetes cromados verticais parecia a própria máscara da Morte.

O veículo havia parado após uma longa derrapada de traseira. As marcas serpenteantes dos pneus eram visíveis no chão, apesar da noite escura. Agora, permanecia imóvel, inexorável como um gigantesco bloco de granito. Seu motor trabalhava em marcha lenta, mas o escapamento grave ainda deixava evidente sua potência absurda. Um filete discreto de sangue corria sobre um dos faróis circulares, dando um ar de Laranja Mecânica ao carro.

Juliana vacilou, sentindo a força de seu corpo se esvair. Erguendo a mão direita espalmada na direção do carro, tentou dizer:

— Por favor... Não... Por fav...

A ruiva não teve tempo de concluir o que quer que tenha pretendido dizer. O motor do sedã rugiu mais uma vez, e o veículo avançou sobre ela. Passou sobre seu corpo, produzindo o som horrendo de um estouro pastoso e úmido, e brecou após alguns metros. O carro permaneceu um tempo parado, como se avaliasse a situação, mas logo suas luzes de ré se acenderam e ele recuou cantando os pneus. Mais uma freada brusca e mais uma arrancada impetuosa, e o som de esmigalhamento se repetiu ainda outra vez. Agora, a massa deformada no meio da rua parecia mais uma enorme estopa velha ensopada de sangue do que um ser humano propriamente dito.

Como dado por satisfeito, o Ford Landau acelerou novamente, rangendo os pneus traseiros, e arrancou. Saiu rabeando a traseira, como um bêbado que comemora o gol do seu time do coração, e sumiu na noite.


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