O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 14
Capítulo 13




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O dia amanheceu com um clima insosso. A chuva do dia anterior havia diminuído, mas o ar parecia carregado de eletricidade estática. Havia trovejado durante a madrugada, mas agora o único ruído que provinha das nuvens era o de um vento moderado, frio e constante.

Mas Danielle não reparou nesses detalhes. Enrolada em um moletom do marido, preocupava-se apenas em preparar um café da manhã diferente e reforçado. Guilherme havia chegado tarde na noite anterior e parecia extremamente ansioso. Havia dito a ela que acordaria cedo e voltaria para a delegacia para continuar trabalhando em um caso que envolvia cinco mortes que ele suspeitava se tratarem de assassinatos.

Ela não ficava realmente preocupada com o que poderia acontecer a Guilherme em seu trabalho. Sabia que seu marido era extremamente competente e dedicado à profissão e confiava no bom policial que ele era. Ela se preocupava mesmo era com o que Guilherme poderia fazer a si mesmo. Às vezes ele se dedicava excessivamente ao trabalho, e não foram poucas as vezes em que ele se esgotou física e mentalmente enquanto trabalhava em algum caso promissor.

E parecia estar acontecendo de novo. Aquela excitação, aquela ânsia por resolver um mistério resplandecia nos olhos dele. Ele nem havia jantado na noite anterior, apenas tirara a roupa e se deitara, imediatamente caindo no sono. Danielle nem questionou, já estava acostumada a esta situação. Era algo dele, uma característica pessoal, não havia como mudar. Agora, enquanto fritava dois ovos e preparava algumas torradas, podia ouvir o marido tomando banho e cantarolando uma música do Seu Jorge. Ele ainda parecia bastante entusiasmado, porém mais relaxado. Isso acalmou Danielle um pouco.

Não demorou para que Guilherme aparecesse na cozinha enrolado numa toalha preta e com os cabelos ainda úmidos. Caminhou até a esposa, abraçou-a suavemente por trás e deu-lhe um beijo na nuca.

— Bom dia, amor. — Ele disse baixinho, roçando a barba pelo pescoço dela.

— Bom dia. — Ela devolveu, sentindo um ligeiro arrepio — Dormiu bem?

— Maravilhosamente. — Ele recostou a cabeça sobre o ombro dela — Sabia que eu adoro quando você usa minhas roupas?

— É, eu sei. Você está sempre dizendo isso. — Ela riu, retirando os ovos fritos da frigideira e colocando-os sobre fatias de pão sovado.

Guilherme soltou-se de Danielle e foi se sentar à bancada da cozinha.

— Por quê o café caprichado? — Ele perguntou, cruzando os braços sobre a bancada.

— Por que se eu não cuidar de você, você se mata de trabalhar. — Ela acenou com uma colher na direção dele — Então o mínimo que posso fazer é garantir que você comece o dia com energia.

Ele abriu um sorriso estreito.

— Eu te adoro. — O tom de voz dele era doce.

— Hummm. — Danielle murmurou, fingindo um tom desinteressado — Falou o policial durão.

Ele alteou uma sobrancelha.

— Não estou no meu horário de trabalho.

— Ainda. — Ela emendou, depondo um prato com os ovos fritos e algumas torradas diante do marido — E toma seu café logo, senão você vai se atrasar.

Guilherme abraçou-a pela cintura.

— Você é ótima. Eu não te mereço, sabia?

— É, talvez. Mas pelo menos você se esforça. — Ela fingiu-se de esnobe, mas acabou depositando um beijo leve nos lábios dele — Agora é sério. Anda logo, senão você se atrasa. Mais tarde a gente conversa.

E enquanto a esposa se afastava em direção ao quarto, o detetive pôs-se a comer e permitiu-se sorrir consigo mesmo. Considerava-se um homem extremamente sortudo por ter encontrado uma esposa tão atenciosa como Danielle. Ela antecipava-se às necessidades dele e respeitava todas as suas manias e obsessões. Ela até chegava a discordar de algumas coisas, mas sempre procurava resolver as diferenças com ele na conversa, nunca na discussão.

A esposa que ele havia pedido a Deus.

Terminando de comer, Guilherme voltou para o quarto e vestiu-se de forma habitual: sapatos sociais, terno e gravata pretos e camisa branca. Penteou os cabelos e escovou os dentes, pegou sua mochila e a chave de seu Honda Civic sobre a cômoda e deu um beijo na bochecha da esposa, que havia se deitado novamente.

— Até mais tarde, amor. — Ele sussurrou ao pé do ouvido dela.

— Até. — Ela respondeu com um meio sorriso, puxando ainda mais o edredom sobre si.

Descendo até a garagem, Guilherme pegou seu Civic e saiu. Ele não chegou a ver o trajeto que fez até a delegacia, pois sua mente concentrava-se apenas em levantar novas informações sobre as vítimas do “Landau vermelho”. Parando seu carro na vaga de costume, o detetive desceu e seguiu direto para sua sala, sem prestar muita atenção no que se passava à sua volta. Chegando lá, ele teve tempo apenas de abrir sua mochila e retirar os arquivos do caso em que estava trabalhando antes que o delegado Jorge Mascarenhas abrisse a porta com violência e entrasse na sala do detetive com certo afobamento.

— Guilherme! — Ele parecia exaltado — Estou com cinco equipes de reportagem aí na porta. Foram informados pelas delegacias de BH e de Itabirito que o caso do “Landau vermelho” que o Super noticiou está sendo investigado por alguém daqui, e aposto meu rabo como isso é coisa sua.

— Bom dia pra você também, Jorge. — O detetive deu a volta na mesa e se sentou — E sim, é coisa minha.

— Tem algo a ver com aquele acidente do CrossFox branco que você saiu para investigar naquele sábado de manhã? — O delegado levou as mãos à cintura, bufando.

— Tem, sim. Na verdade, foi aquele “acidente” que deu início a toda essa investigação. — Ele fez as aspas com os dedos. — A coisa é bem maior do que parece.

— Ótimo. Espero mesmo que você esteja com um bom caso em mãos, de verdade. — Ele apontou para a janela com um gesto brusco — O que eu não quero é furdúncio na porta da minha delegacia. Vá até lá e fale alguma para aqueles abutres.

Guilherme avaliou o delegado. Jorge era um ex-militar durão, de porte atlético e incrivelmente alto. Tinha exatos dois metros de altura e costumava ser bastante intimidador com seus subordinados. O detetive, entretanto, não costumava ser muito bonzinho quando tinha um caso em mãos.

— Peça a alguém que marque uma coletiva com eles para daqui a meia hora no auditório. — Guilherme disse, abrindo as pastas do caso do Landau e pondo-se a ler os arquivos novamente — Vou organizar as informações que levantei até agora e ver o que posso liberar.

— Não mesmo! — O delegado protestou — Você vai até lá agora, ou eu...

— É daqui a meia hora ou nunca, delegado. — Guilherme nem levantou os olhos — A não ser que você vá lá e fale qualquer asneira para dispersá-los.

Jorge piscou, aturdido. Já deveria estar acostumado ao jeito de Guilherme, mas sempre se surpreendia com a seriedade com que ele trabalhava. Era um policial muito competente, isso era inegável, e cuidava tão bem de seu serviço que chegava a ser grosso em alguns momentos.

— Perfeito. — O delegado bufou — Vou pedir à Janaína que os informe da coletiva e os direcione para o auditório. — Ele levantou o dedo indicador e aproximou-se de Guilherme — E eu espero que esse caso tenha algo que valha a pena, Guilherme. Espero mesmo.

Dito isso, virou-se e saiu, batendo a porta. O detetive apenas observou. Sabia que o delegado Mascarenhas era mestre em fazer show, por isso decidiu ignorar. Preocupou-se apenas em fazer um bom resumo das informações que havia levantado até então para apresentar na coletiva de imprensa improvisada que havia acabado de marcar. Não mencionaria a ligação entre as vítimas para que isso não afugentasse qualquer possível suspeito e nem para que a imprensa tivesse idéias para criar mil e uma teorias diferentes sobre o motivo por trás das mortes.

Depois de juntar informações básicas, porém concisas, sobre o “caso do Landau vermelho”, o detetive conferiu seu relógio, pegou uns poucos papéis e se levantou, indo em direção ao auditório enquanto ajeitava o paletó e a gravata. Chegando ao local, deparou-se com cerca de cinquenta repórteres que empunhavam microfones e gravadores, todos ávidos por conseguir algum furo de reportagem. Contornando o ambiente e indo se sentar por trás de uma grande mesa na parte extrema do local, diante de um grande painel com as insígnias da Polícia Civil, deu início à coletiva de imprensa falando sobre o caso de forma geral.

Falou sobre como o acidente do CrossFox de Gustavo, que fora o primeiro a ser investigado por ele, dera início a uma sucessão de casos semelhantes e igualmente misteriosos. Falou que a investigação já estava bastante avançada e que, em breve, teria novas informações.

— E todas essas mortes têm alguma ligação entre si, detetive? — Um dos repórteres aproveitou-se de uma deixa de Guilherme para perguntar.

— Supostamente sim, mas isso é tudo o que posso divulgar no momento. — O detetive respondeu.

— Detetive! — Uma jovem ergueu a mão no ar — Já é de nosso conhecimento que duas mortes foram provocadas por um veículo específico, um... — Ela consultou um bloco de notas onde havia rascunhado parte da reportagem do jornal Super — Um Ford Landau vermelho. Além destas duas, existe alguma outra morte que ainda não foi confirmadamente causada por esse carro?

— É um Ford Landau bordô, e não vermelho. — Guilherme corrigiu — E sim, até o momento temos outras duas mortes que acreditamos ter ligação com o caso, mas nada foi confirmado ainda.

A coletiva prosseguiu por mais meia hora. Os repórteres bem que tentaram arrancar de Guilherme alguma informação sobre uma possível ligação entre as mortes, fazendo as mesmas perguntas de mil formas diferentes, mas o detetive foi evasivo em todas as respostas. Ele assentia quando dizia que a investigação estava sendo produtiva, mas tornava-se esquivo quando questionado sobre mais detalhes. Finalizadas as perguntas e dispersada a imprensa, Guilherme levantou-se e caminhou de volta para sua sala, mas foi interpelado a meio caminho pelo delegado Jorge.

— É. Até que você falou bem, Guilherme. — Ele comentou.

— Dei a eles exatamente o que eles precisavam saber. — O detetive emendou.

— Ou seja: nada.

— E foi o que eu dei.

Chegaram à sala de Guilherme e o delegado Mascarenhas se afastou. O detetive estava dando a volta na sua mesa para se sentar quando se lembrou de algo. Deixando o corpo cair pesadamente sobre a cadeira, pegou o telefone e discou um ramal. O aparelho tocou algumas vezes antes de ser atendido.

— Legista.

— Oi, Diego, sou eu. — Guilherme soltou — Rapaz, preciso de mais um favor.

— Pode falar, Guilherme.

— Só estou te pedindo porque sei que você tem acesso mais rápido aos nossos arquivos mais antigos. — Ele disse — Preciso de um inquérito de doze anos atrás.

— Nomes e datas, por favor. — O legista pediu, pegando uma caneta para anotar.

— Não tenho a data exata de conclusão. Só sei que o inquérito foi conduzido pelo delegado Geraldo Lacerda e investigou a morte de um estudante chamado Alan Peixoto.

— Grande delegado Lacerda. Era um grande homem. — Diego comentou — Acho que me lembro desse caso. Ok, vou ver o que consigo. Me ligue daqui a uma hora.

— Certo. Obrigado, Diego.

— “Obrigado” nada. Depois você deixa cinquentinha aqui comigo e ficamos quites.

Guilherme riu e desligou, recostando-se em sua cadeira. Iria dar mais uma lida nos arquivos das vítimas do “Landau vermelho”, mas queria mesmo era ter logo em mãos uma cópia do inquérito que investigara a morte de Alan Peixoto e citava todos os falecidos. Porque, aí sim, conseguiria esclarecer ainda mais a ligação entre as vítimas e o enorme sedã bordô.

 

o—o—o

 

A chuva voltou a cair no início da tarde. Os relâmpagos espocavam como flashes de inúmeros paparazzi invisíveis que fotografavam a criação de Deus. Os trovões, antes distantes e fracos, voltaram a explodir no céu como uma guerra cósmica entre as nuvens. As comportas do firmamento pareciam ter sido abertas sem previsão de serem fechadas.

Mas Adam parecia não ligar para aquilo. Parecia não ligar para nada, na verdade.

Estava terrivelmente deprimido desde a noite anterior. O episódio na churrascaria havia estragado totalmente seu humor. Depois do incidente, havia levado Fernanda para casa e murmurado mil desculpas mesmo sob os protestos da namorada, que insistia em dizer que a culpa não era dele. Mesmo assim, havia voltado para casa, dormido mal e sentia-se choco naquela manhã.

Havia ido para a Transportes Peixoto com um semblante de poucos amigos. Havia chegado, parado seu Fiat Toro na vaga habitual e subido para o mezanino sem falar com ninguém pelo caminho. Chegando à sua sala, informou à sua assistente que não atenderia ninguém e enfiou-se em leitura de documentos e análise de indicadores de performance.

Assim havia passado a manhã, respondendo a um ou outro e-mail e com um sentimento pastoso e indefinível o incomodando. Já eram quase onze horas quando recebeu um e-mail do gerente da filial de Uberlândia questionando sobre um depósito bancário atrasado. Antes que a encarregada do setor financeiro se manifestasse, Adam levantou-se e procurou-a, informando que sairia para realizar o depósito pessoalmente.

Ele não se preocupava com o depósito, na verdade. Ele queria mesmo era aproveitar a chance de sair do escritório para espairecer um pouco. Não estava conseguindo livrar-se do mau humor, e esperava que uma saída rápida o distraísse. Pegando a quantia solicitada pelo gerente de Uberlândia, Adam desceu para o estacionamento, pegou sua caminhonete e seguiu para a agência bancária onde sua empresa tinha conta, no bairro Eldorado.

Ele passou pouco mais de 20 minutos dentro do banco, pois o depósito foi realizado em um caixa eletrônico. Feito isso, o gerente ajeitou o paletó e saiu, parando debaixo da marquise do prédio para se esconder da chuva. Havia parado seu Fiat Toro do outro lado da rua e esperava o melhor momento para atravessá-la. E enquanto isso, acabou deixando-se pensar em Fernanda. Em como ela estava bonita na noite anterior e em como ela demonstrava querer que a relação deles finalmente desse certo.

Um sorriso estreito se desenhou nos lábios dele. Por mais que a cidade inteira o odiasse, ele ainda tinha alguém ao seu lado. E contanto que esse alguém fosse Fernanda, ele não precisava de mais nada.

Um trovão repentino tirou Adam de seu devaneio. O som grave da trovoada ribombou pela cidade e estremeceu os prédios, e o relâmpago que se seguiu foi tão brilhante que chegou a ofuscar. O gerente titubeou, levando um pequeno susto, e fitou sua caminhonete. Já dava para atravessar a rua. Sem se preocupar em cobrir a cabeça, Adam apenas desacionou o alarme do Fiat Toro e correu até ele, abrindo a porta e pulando para dentro do veículo para escapar da chuva.

Ainda não havia recuperado o bom humor, mas pelo menos já não se sentia tão entojado. Finalizaria aquele dia da melhor forma possível, voltaria para casa e tomaria um banho longo e quente para relaxar. Depois, pensaria em convidar Fernanda para um programa mais casual e elegante para compensar a derrocada da noite anterior. Foi pensando nisso que o gerente ligou sua caminhonete e partiu, dirigindo de volta para a empresa.

Cinquenta metros mais trás, de dentro de um sedã de cor bordô, dois olhos analisavam cuidadosamente a movimentação de Adam. Do momento em que havia chegado ao banco ao momento em que saíra, atravessara a rua, pegara seu Fiat Toro e fora embora. O gerente parecia perdido em seus próprios pensamentos, travando alguma batalha interior. Não combinava muito com estilo dele, sempre frio e elegante. Era hora de agir novamente.

O Ford Landau foi ligado, seu motor V8 rugindo como um leão recém-despertado, e ganhou o tráfego pesado do início de tarde.


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