O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 11
Capítulo 10




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A confraternização acontecia no salão de festas Domus XX, em Nova Lima. Era um antigo casarão colonial reformado e convertido em um espaço para eventos, que contava com pista de dança, bar e capacidade para até 2000 pessoas, mas que mantivera o estilo original no exterior. A noite estava fria, e a fina neblina que subia entre as serras deixava o local com um ar invernal. Gotículas de água congelada eram levadas pela brisa leve que soprava entre as árvores e rodopiavam pelo ar como fadinhas de cristal.

Adam e Fernanda chegaram no Fiat Toro do gerente e foram recepcionados logo na entrada por um valet, que os orientou sobre a disposição geral dos serviços do evento e ofereceu-se para manobrar a caminhonete. Depois que ele levou o veículo, Adam ofereceu seu braço para que Fernanda segurasse e adentraram o casarão.

Estavam particularmente esplêndidos. Como se tratava de um evento de gala, trataram de se vestir à altura. O gerente usava um terno slim fit azul-escuro de corte inglês com uma camisa branca, gravata e lenço de bolso prateados e sapatos brogue pretos. Já Fernanda trajava um vestido bege-claro liso, longo e de alças curtas, que valorizava bastante sua silhueta, combinado com uma echarpe fina jogada sobre os ombros. Usava também um par de sapatos peep toe de salto alto e brincos e uma pulseira de brilhantes. Seu cabelo estava preso num coque e uma tiara, também de brilhantes, ornava-o de forma elegante.

Passaram pelos recepcionistas do evento e foram informados sobre o número da mesa que ocupariam, na sequência sendo direcionados ao salão principal. Mesas de 10 lugares estavam dispostas pelo local e garçons circulavam entre as mesmas servindo champagne, vinho, canapés de cream cheese com caviar vermelho e salsa e tomatinhos-cereja recheados com abobrinha verde e queijo parmesão como entrada. Muitos dos convidados, líderes e representantes dos setores de transporte e logística de Belo Horizonte e redondezas, se conheciam e conversavam entre si. Falavam sobre a situação econômica do país, as melhores oportunidades de frete e prospecção de novos clientes.

E um detalhe que Fernanda não pôde deixar de notar é que a maioria esmagadora dos homens ali presentes — gerentes, supervisores ou encarregados — eram bem mais velhos que Adam, na casa dos quarenta anos para cima. Ele, com seus trinta e poucos, parecia um mero jovem aprendiz em meio a tantos seniores. Ainda correndo os olhos pelo salão, a encarregada não conteve o comentário:

— Você é o homem mais bonito daqui.

Ele a encarou de soslaio e abriu um meio sorriso.

— Não seja modesta. Somos o casal mais bonito da noite. — Ele deu um risinho divertido — Merecemos o prêmio de rei e rainha do baile.

Fernanda riu também, e por fim chegaram aos seus devidos lugares. Na mesma mesa estava sentado um gerente de uma oficina mecânica, que Adam já conhecia. Cumprimentaram-se e puseram-se a falar sobre caminhões: trocas de buchas e coxins, diferença na relação custo-benefício de um três-quartos para um toco e mais uma infinidade de coisas que deixou Fernanda atordoada. A encarregada acabou se distraindo com a esposa do gerente da oficina, com quem acabou conversando sobre o novo reality show da Rede Record.

A confraternização seguiu noite adentro de forma harmoniosa. A princípio apenas tocando uma música ambiente, logo teve início a programação do evento. No canto mais afastado do salão, num patamar elevado que fazia às vezes de palco em dias de festa, havia sido montado um tablado para palestrantes e conferencistas. O primeiro a subir para falar aos presentes foi um representante da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos de Belo Horizonte, que explicou que seu objetivo era fazer da capital mineira uma cidade ordenada, acessível e com boa mobilidade para garantir uma melhor qualidade de vida à população, e que a colaboração das empresas de transporte para atingir este ideal era indispensável.

E enquanto ele tecia seu discurso de abertura, o serviço de cozinha, que até então estava servindo apenas petiscos, entrou com pratos mais elaborados. Os garçons começaram a servir cavatelli com brócolis e molho vermelho, macarrão penne ao molho de vodka, salmão marinado com limão e ervas e lagostim com cenourinha e rúcula regado com molho de abacaxi, cada prato devidamente acompanhado pela bebida adequada. Adam e Fernanda optaram por não comer durante as preleções, mas pediram a um garçom que deixasse uma garrafa de champagne rosé Moët & Chandon na mesa deles.

Após finalizar sua fala, o secretário deu lugar a um representante de uma concessionária da Mercedes-Benz, que vinha apresentar a nova van Vito e oferecer aos frotistas o caminhão Accelo 1316. Com porte de caminhão três-quartos e adição de um terceiro eixo com suspensor, ele oferecia capacidade e desempenho de um caminhão médio com uma considerável economia de combustível e era a solução perfeita para entrega de cargas de maior volumetria nas ruas estreitas de Belo Horizonte.

Depois, subiu ao tablado o gerente de operações da FedEx Express, que falou sobre a compra da transportadora holandesa TNT, uma de suas principais concorrentes. Falou também sobre a integração das operações internacionais e domésticas e sobre como o cross docking pode ser utilizado para otimizar os procedimentos de carga e descarga nos armazéns das grandes transportadoras.

Vários outros palestrantes falaram durante a noite, sobre os mais diversos assuntos. Finalizadas as apresentações, um telão foi baixado sobre o tablado e começou a exibir anúncios e propagandas das empresas ali representadas, e Fernanda não ficou surpresa ao ver um comercial da Transportes Peixoto sendo exibido .

Coisa do Adam, ela pensou, vendo-o sorrir de canto sem se virar para ela.

Com o buffet ainda sendo servido, os convidados se dedicaram então às oportunidades de networking, sondando novos clientes e parceiros e já fechando um ou outro contrato de forma informal. Adam não ficou por menos. Levantou-se e estendeu a mão para Fernanda:

— Você vem?

Ela fez que não com a cabeça.

— Não. Vou ficar aqui. Isso é coisa de diretoria. — Ela brincou.

— Tudo bem. — Ele sorriu e, abaixando-se ligeiramente, beijou-a de leve — Não vou demorar.

— Ok.

E ele se afastou, pondo-se a conversar com gerentes de outras transportadoras.

— Ele é muito bonito. — A esposa do gerente da oficina confidenciou, chegando mais perto de Fernanda.

— Hã? — A encarregada se virou, abrindo um pequeno sorriso — Ah, sim. Ele é mesmo.

— Vocês ficam muito bem juntos. — Ela comeu um canapé — Onde você o conheceu?

— Estudamos juntos quando éramos mais novos. — Fernanda respondeu — Agora trabalho na empresa que ele gerencia.

— Ah, sim. — A outra assentiu, percebendo a expressão pensativa da encarregada — Aliás, vocês estão juntos, não é?

Fernanda pensou um pouco antes de responder. Havia tido aquela conversa com Adam mais cedo, quando tomaram café da manhã juntos. Haviam discutido exatamente isso: qual era o nível de intimidade deles.

— E daí se todo mundo ficar sabendo? — Ele havia dito — Até onde sei, não devemos satisfações a ninguém.

— Concordo. Então se alguém me perguntar alguma coisa sobre isso, o que eu respondo? — Ela havia questionado em seguida.

E a resposta, como tudo o mais nele, viera carregada de classe:

— Seja criativa.

Sorrindo mais uma vez consigo mesma, Fernanda então respondeu:

— Estamos, sim.

A esposa do gerente da oficina bebericou um pouco de champagne, assentindo.

— Se você dissesse que não, eu diria que você é louca. O Adam é um partidão. — Ela bebeu mais um pouco — Noivos?

— Não. — Fernanda negou — Por enquanto, estamos apenas namorando.

Colocar isso para fora em voz alta mais uma vez, após tanto tempo, soou um pouco estranho aos ouvidos dela. Parecia algo disforme, surreal. No entanto, erguendo os olhos e vendo Adam interromper sua conversa com os demais gerentes apenas para lhe dedicar um sorriso de canto e uma piscada de olho, ela soube que daquela vez haveria de dar certo.

 

o—o—o

 

O asfalto estava molhado devido à neblina que descia das serras e se tornava cada vez mais espessa, dificultando a visão, mas a Chevrolet Blazer permanecia incrivelmente estável nas curvas serpenteantes da BR-356.

Heitor estava cansado, pois havia trabalhado normalmente naquele sábado e ainda tinha que ir buscar a esposa na casa dos pais, na cidade de Itabirito, mas não se deixava abater pelo sono. Para se distrair, havia sintonizado o rádio numa estação de músicas gospel onde Aline Barros cantava Digno é o Senhor a plenos pulmões.

A estrada estava escura e deserta àquela hora da madrugada, a não ser pelos faróis que o seguiam de longe desde que havia passado pelo condomínio Alphaville, na saída da BR-040. A princípio Heitor havia estranhado, mas o outro veículo estava mantendo uma distância razoável da Blazer e ele preocupou-se apenas em tentar enxergar melhor através da neblina que cobria a rodovia.

Estava passando pela entrada das mineradoras do pico do Itabirito, iniciando então uma longa descida. Reduzindo de quinta para quarta marcha, Heitor tirou o pé do acelerador e deixou a caminhonete seguir, controlando apenas a direção e freando um pouco nas curvas mais fechadas.

No rádio, a voz da cantora bradava:

— Elevo minhas mãos ao Cristo que venceu. Cordeiro de Deus, morreu por mim... mas ressuscitou! Digno é o Senhor!

Um ronco grave de motor chegou aos ouvidos de Heitor, atraindo sua atenção. Olhando pelo retrovisor interno, percebeu que os faróis que o acompanhavam estavam bem mais próximos do que antes, e pareciam se aproximar ainda mais. Baixando os olhos para o velocímetro, viu que a Blazer estava a pouco mais de 80 quilômetros por hora. O veículo de trás devia estar a pouco mais de 90. Mas aquilo não o incomodou. Apesar de estreita, a estrada oferecia vários pontos possíveis para ultrapassagem. Se o outro carro quisesse passar por ele, ele simplesmente encostaria a caminhonete à direita da pista e o deixaria seguir adiante.

Estava passando agora pela ”Santa”, uma bica às margens da rodovia onde havia uma imagem de Nossa Senhora e a partir de onde a descida ficava ainda mais íngreme. O ponteiro marcador de velocidade da Blazer começou a subir pelo painel, passando dos 90 e estabilizando-se perto dos 100 quilômetros por hora. Em quarta marcha, o giro do motor era alto e o ruído invadia o habitáculo do SUV, mas Heitor sabia que era necessário descer com o veículo engrenado por aquela estrada por questões de segurança.

O carro de trás, entretanto, continuava se aproximando. Agora, estava a no máximo uns trinta metros atrás da Blazer. O som de seu motor era mais nítido agora, um borbulhar grave que denotava uma grande potência. Seus faróis dianteiros, antes apenas dois pontos de luz branca, agora revelavam-se um jogo de faróis duplos. O vulto do veículo ainda era indefinível devido à escuridão da noite, mas a distância entre as luzes dos faróis indicavam um porte bem maior do que o dos veículos de passeio atuais.

A neblina estava se tornando mais espessa, deixando Heitor ligeiramente nervoso. Os faróis de milha da Blazer iluminavam parcamente uns vinte ou trinta metros à frente, o suficiente para evidenciar que o asfalto estava ainda mais úmido. Ainda havia um longo trecho de descida à frente, e as curvas adiante eram ainda mais fechadas. Heitor pisou sutilmente no freio, reduzindo a velocidade do SUV de volta para a casa dos 80 quilômetros por hora, mas sua atitude serviu apenas para fazer o veículo de trás colar em sua traseira.

Menos de dois metros separavam os dois carros. Agora pelo retrovisor era possível distinguir também os contornos do capô e a grade dianteira do veículo de trás, uma sucessão de filetes cromados verticais de aparência austera.

Um Landau, Heitor percebeu. Perto demais.

Ele agiu conforme havia pensado antes, encostando a Blazer à lateral direita da via e dando passagem ao outro veículo, mas surpreendeu-se ao perceber que o sedã imitara seu movimento e seguia exatamente atrás de seu veículo. Foi nesse momento que ele percebeu que havia algo errado. Não havia razão para aquele carro estar o seguindo ou se mantendo tão próximo.

Heitor baixou os olhos para o painel novamente, percebendo que o ponteiro passava dos 90 mais uma vez. Uns cem metros à frente havia uma curva fechada à esquerda, e ele titubeou. Seria necessário frear e reduzir para terceira marcha, mas o vulto do Landau que o seguia o intimidava. Valendo-se de um ligeiro trecho reto da rodovia, ele golpeou o volante de súbito e fez a Blazer dançar na pista, rangendo os pneus, mas o movimento foi igualmente copiado pelo sedã.

Muito bem, então, ele pensou. Vamos ver se consegue fazer esta curva sem capotar.

Quando era mais novo, Heitor tinha o hábito de pegar o velho Opala Diplomata de seu pai e ir com os amigos para o circuito Mega Space, em Santa Luzia, participar de track days e arrancadões. Por consequência, tinha muita experiência em curvar carros com derrapagens de traseira.

Faltando pouco mais de vinte metros para a curva à frente, Heitor pisou na embreagem e reduziu o câmbio para a terceira marcha. O marcador do tacômetro disparou para os 4 mil giros, beirou os 5 mil e depois caiu para uma rotação menor, enquanto o escapamento espocava como tiros de metralhadora. Na sequência, ele virou o volante com força para a esquerda e sentiu as rodas traseiras aquaplanarem. A Blazer começou a derrapar, a traseira jogando para a direita e os pneus cantando. Heitor virou o volante à toda para a direita também, mantendo a derrapagem sob controle, e acelerou. Dotado de tração nas quatro rodas, o SUV não demorou a se estabilizar novamente.

Heitor suspirou, aliviado, e olhou pelo retrovisor interno. Quem quer que o estivesse seguindo, por qualquer que fosse o motivo, teria de ser o demônio ao volante para fazer aquela mesma curva àquela velocidade com um veículo tão pesado. E para sua total surpresa, os faróis duplos do Landau vieram se mostrar pelo espelho mais uma vez, e ainda mais próximos.

Ele mal derrapou, ele percebeu.

E pela primeira vez, Heitor teve medo. Havia visto uma reportagem recente sobre sequestros em rodovias, mas não imaginava porque ele seria visado. Sua Blazer, apesar de bem cuidada, era modelo 2003. Além do mais, era casado a pouco mais de dois anos e ainda morava de aluguel. Não tinha motivo para ser alvo de criminosos.

A não ser que...

Ele não teve tempo de pensar em uma segunda alternativa. Outra curva na rodovia, mais fechada que a anterior, exigiu ainda mais habilidade para ser feita. Desta vez, os quatro pneus da Blazer perderam contato com o asfalto, e por um instante Heitor chegou a pensar que perderia o controle do veículo. No último momento, no entanto, as rodas recuperaram a tração e a caminhonete equilibrou-se novamente. E o Landau, que vinha imediatamente atrás, apenas derrapou levemente de traseira e alinhou-se com a via, o que contribuiu apenas para aumentar ainda mais o nervosismo de Heitor.

A neblina estava ainda mais espessa. Já haviam percorrido um bom trecho do declive, e agora arrostavam os últimos quilômetros de descida até Itabirito. Após mais alguma curvas, Heitor se lembrou, havia um longo trecho em linha reta na encosta da serra. Talvez ali ele conseguisse manobrar a caminhonete de forma a deixar que o sedã a ultrapassasse, dando a ele alguma chance de reação. O maior inconveniente, ele também se lembrou, era o de que apenas uma frágil mureta de concreto separava a lateral direita da rodovia de uma encosta a pique com uma queda livre de, no mínimo, oitenta metros.

Os instantes que se seguiram foram de enorme tensão. Cada curva, cada chiado de pneu e cada ronco de motor causava um arrepio frio na espinha de Heitor. Os segundos pareciam passar vagarosamente enquanto a grade dianteira daquele Landau parecia sorrir para ele de maneira sádica pelo retrovisor. Por um único momento ele se permitiu pensar em sua esposa e no quão ansiosa ela devia estar para que ele chegasse, mas sua atenção logo voltou-se para a estrada coberta pela neblina e para o sedã que o perseguia.

E então, por fim, o trecho reto da rodovia despontou à frente da Blazer. Heitor mal esperou a caminhonete sair da curva e pressionou o acelerador, fazendo o ponteiro do velocímetro subir rapidamente para mais de 120. E por mais improvável que parecesse, o Landau o acompanhou de perto. Não só o acompanhou como também aproximou-se rápido e abalroou a traseira do SUV com força. Heitor foi jogado para frente com o impacto e sentiu a caminhonete dançar na pista. Suor frio escorreu-lhe pela testa. O motorista daquele sedã não estava disposto a sequestrá-lo. Nem a levar nada de valor que ele tivesse.

A realidade atingiu-o tão forte que chegou a doer. Uma onda de tristeza o invadiu em questão de segundos, fazendo-o se esquecer de olhar para o retrovisor no momento em que passava por um radar fixo à beira da estrada. Se ele tivesse olhando para trás naquele momento, teria visto o flash do radar disparar e iluminar por um segundo a carroceria de cor bordô do Landau. Teria visto que o sedã ganhava velocidade mais uma vez, vindo em direção à Blazer. Teria tido a chance, ainda que mínima, de desviar.

Mas isso não aconteceu. E novamente, a mais de 120 quilômetros por hora, o Ford atingiu a traseira da caminhonete com força, fazendo o vidro traseiro explodir. Heitor, num estado apático, não teve destreza manual suficiente para manter o veículo em linha reta. A Blazer rodou na pista, dando três voltas sobre si mesma e cantando os pneus violentamente, e por um instante, uma fração de segundo, Heitor pôde ver o rosto do motorista do Landau iluminado pelos faróis de sua caminhonete.

E a imagem desse rosto seria a última que ele levaria consigo, porque em seguida a caminhonete atingiu a mureta lateral da via, despedaçando-a como se fosse feita de palitos de dente, e despencou pela encosta da serra.


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