O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 12
Capítulo 11




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A chuva se derramou de vez na tarde do domingo. O céu fechou-se de nuvens negras e os trovões e relâmpagos foram ficando cada vez mais constantes enquanto a noite avançava. Na manhã de segunda-feira a chuva não havia diminuído, mas o detetive Guilherme não deu muita atenção. Colocando apenas um sobretudo impermeável sobre seu terno preto, pegou seu Honda Civic e seguiu para a delegacia.

Estava extremamente focado naquele dia. Havia passado praticamente o domingo inteiro pensando nas informações que o legista havia lhe dado, tentando pensar numa conexão entre a morte de Gustavo e as outras duas, todas elas envolvendo um veículo de cor bordô. Não tinha como provar que o Landau que fizera o CrossFox de Gustavo capotar estava envolvido nas demais mortes, mas era impossível não ligá-las ao sedã.

Chegando à delegacia, Guilherme estacionou o Civic na vaga habitual e seguiu diretamente para sua sala sem falar com ninguém, sentindo-se aéreo. Mal havia tirado o sobretudo quando a porta foi aberta por Amanda, a detetive que trabalhava na sala ao lado.

— Bom dia pra você também, Guilherme. — Ela cumprimentou, num tom debochado.

— Bom dia, Amanda. — Ele devolveu sem olhá-la, ajeitando a gravata e se sentando.

— Você está bonito hoje. — A detetive comentou — Com cara de agente do FBI.

Guilherme não deu atenção. Bem à sua frente estavam os relatórios deixados por Diego, o médico-legista. Pegou-os e começou a lê-los imediatamente, com uma expressão sisuda no rosto, percebendo imediatamente que Diego havia resumido aquelas informações muito bem. Não havia muito mais o que tirar dali.

— Caso novo em plena segunda-feira? — Amanda perguntou, vendo a concentração do colega.

— Sim. Me passaram no sábado. — Ele respondeu por entre os dentes.

— Hum. — Ela murmurou, puxando uma cadeira e se sentando, deixando evidentes suas pernas bem torneadas — Do que se trata?

— Ainda não sei, mas acho que sejam assassinatos. — Ele virou uma página — Mas preciso levantar mais informações.

Amanda assentiu, descruzando os braços e levantando algo na direção do detetive.

— Você já viu o jornal de hoje?

— Não. — Ele nem levantou os olhos.

— Pois deveria. — Ela manteve o braço erguido — Eu sempre achei o Super muito sensacionalista, mas hoje eles se superaram.

Guilherme levantou os olhos por um segundo e ficou imediatamente estático. Sentiu como se alguém empurrasse um enorme bloco de gelo para o fundo de sua garganta. Sua boca pareceu subitamente seca e seus olhos ficaram vidrados. Amanda estava segurando o exemplar diário do jornal Super Notícia, e o título da matéria, em letras garrafais, saltava aos olhos: O Landau vermelho. À direita do título, numa imagem ligeiramente borrada, era possível ver dois veículos em alta velocidade numa rodovia. Não era possível distinguir o carro da frente com clareza, mas o de trás era inconfundível, pelo menos para Guilherme. Com uma capota de vinil preto de aspecto retrô e uma carroceria desmesuradamente grande, o Ford Landau saltava aos olhos.

— O que foi? — Amanda percebeu a cara de paisagem de Guilherme.

— Me dê o jornal. — Ele pediu, no que foi prontamente atendido.

Com o jornal em mãos, Guilherme percebeu que a foto que estampava a matéria muito provavelmente havia sido tirada por um radar fixo, e que um contraste de cores bastante singular causado pela mistura do flash do radar com as luzes traseiras dos veículos havia deixado o Landau com uma doentia cor vermelha.

O detetive se pôs a ler a notícia.

 

Um homem morreu em um estranho acidente por volta das 3h00 da madrugada de domingo na BR-356, a seis quilômetros da entrada da cidade de Itabirito, quando o carro que dirigia, uma caminhonete Chevrolet Blazer, avançou pela mureta de proteção da rodovia e caiu em um desfiladeiro de mais de oitenta metros. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, o motorista, identificado como Heitor dos Santos Filho, morreu no local.

A princípio a Polícia suspeitou que o motorista tivesse dormido ao volante ou guiava em uma velocidade incompatível com o trecho, mas um detalhe ainda sem explicação chamou a atenção dos militares. Cerca de cem metros antes do local por onde a Blazer saiu da pista, um radar fixo às margens da rodovia capturou a imagem de outro veículo, um Ford Landau sem identificação, acompanhando a caminhonete de forma perigosa a mais de 120 quilômetros por hora.

 “Não descartamos a hipótese de um racha”, disse o inspetor Mauro Carvalho, que coordenava a equipe policial no local. “Mas temos que lembrar também que neste trecho de serra é frequente a ocorrência de neblina e geada, o que pode deixar a pista bastante escorregadia. Até mesmo uma ultrapassagem mal feita pode causar um grave acidente”, ele reforçou.

A rodovia foi fechada no sentido Ouro Preto para que um guindaste pudesse içar a caminhonete para darem início aos trabalhos da equipe de perícia. Até o fechamento desta edição, a pista ainda não havia sido liberada.

 

A continuação da matéria era uma compilação de orientações da Polícia Rodoviária sobre atenção no trânsito e depoimentos emocionados da família do falecido. Guilherme fez uma “leitura dinâmica” do resto da reportagem e quase perdeu um detalhe no canto inferior da página. No entanto, outra fotografia, bem menor do que a que ilustrava a matéria, chamou a atenção do detetive. Era praticamente idêntica à primeira, a não ser pelo veículo da frente, um sedã escuro que estava com a tampa do porta-malas erguida e parecia derrapar sem controle pela entrada de um viaduto. O veículo de trás, obviamente, também era um Landau.

Ao lado da pequena foto havia um subtítulo, e Guilherme resolveu continuar lendo.

 

Coincidência?

Há quem acredite, entretanto, que a morte de Heitor não tenha sido acidental. Há duas semanas, o delegado reformado Geraldo Lacerda morreu quando seu Ford Fusion despencou do viaduto da Avenida João César de Oliveira, em Contagem, e explodiu em seguida. A polícia acreditou tratar-se de um acidente, mas imagens obtidas através das câmeras de segurança de uma fábrica próxima ao local revelaram que o carro do delegado foi, na verdade, abalroado na traseira por um Ford Landau.

“Não foi um acidente”, disse o tenente reformado Francisco Alves, colega de Lacerda, durante o velório do militar. “O carro do Geraldo foi cruelmente empurrado para fora da via. Isso foi um assassinato brutal e sádico”.

Apesar da placa do Landau não ter sido identificada, a Polícia acredita que se trate do mesmo veículo fotografado na BR-356. Os militares agora procuram alguma ligação entre as mortes de Heitor e do delegado Lacerda e ainda não descartaram nenhuma hipótese.

 

Guilherme não leu o resto da matéria. Acabou largando o jornal sobre a mesa com um gesto lerdo, sentindo como se tivessem enfiado um quilo de algodão dentro de sua cabeça. Amanda, ainda sentada de frente para ele, alteou uma sobrancelha.

— O que foi, Guilherme? — Ela perguntou, preocupada.

O detetive não respondeu. Levantando-se rapidamente, foi até um escaninho próximo à janela e abriu uma gaveta, pegando uma pasta grande e um pincel atômico. Voltando para sua mesa, pegou os arquivos deixados pelo médico-legista, que descreviam as mortes de Ramon e Arthur, e juntou ao que já tinha conseguido sobre a morte de Gustavo, enfiando tudo na pasta. Por fim, movido por uma súbita inspiração, pegou o pincel atômico e escreveu na frente da pasta o título da matéria do jornal: O LANDAU VERMELHO.

Amanda apenas observava a movimentação do colega.

— Se te conheço bem, parece que você tem algo grande nas mãos.

Guilherme assentiu.

— Ainda não posso provar nada, mas parece que tenho, sim. — Ele pegou seu sobretudo e vestiu-o novamente — Vou dar uma saída. Se alguém perguntar por mim, peça pra me ligar.

Amanda apenas assentiu e observou-o deixar a sala, ligeiramente esbaforido. Conhecia bem o detetive para saber quando ele estava entusiasmado com algo. E daquela vez ele parecia muito animado.

Guilherme, por sua vez, sentia como se tivesse ganhado na loteria. Desde o momento em que assistira à filmagem da câmera de segurança que mostrava o Landau se jogando contra o CrossFox de Gustavo, ele sentia que ali havia um caso a ser trabalhado. As mortes de Ramon e Arthur, apesar de não possuírem uma ligação óbvia à primeira, também o haviam inquietado. E por fim, a notícia do jornal quase o levara à euforia. Há muito tempo ele queria um caso intrigante, que o tirasse de sua zona de conforto. E com toda certeza, aquele Landau tinha algo a lhe oferecer.

Ele pegou seu Honda Civic no estacionamento e saiu. Passou por três delegacias em Contagem, Belo Horizonte e Itabirito e conversou com várias pessoas por várias horas sobre os casos em questão, mas finalmente conseguiu com que todos fossem repassados a ele. Agora, parado no restaurante de um posto de gasolina em Nova Lima, às margens da BR-040, tirou a papelada de dentro da pasta mais uma vez e pôs-se a estudá-la novamente enquanto aguardava seu almoço ser servido.

Apesar de sua empolgação, Guilherme leu e releu os relatórios inúmeras vezes mas não conseguiu descobrir nenhuma ligação óbvia entre as cinco vítimas. A única certeza é que três delas haviam sido mortas por alguém que dirigia um Ford Landau de cor bordô, e as outras duas envolviam um veículo da mesma cor. Talvez a ligação que ele procurava estivesse em detalhes pequenos, e ali não era o local para procurar por eles.

Sentindo o vento frio e úmido soprar, o detetive pegou seu celular e discou um número. Ouviu três toques e a ligação foi atendida.

— Amanda.

— Oi, Amanda, sou eu. — Ele anunciou — Preciso de um favor.

— Oi, Gui. Pode falar.

— Estou voltando para a delegacia, mas parei para almoçar aqui em Nova Lima. Preciso que puxem as fichas completas de algumas pessoas. Passagens, citações, multas de trânsito, tudo. Um pente fino completo. — Ele disse — Você pode fazer isso por mim?

— Estou um pouco agarrada aqui, mas dou um jeito. — Ela respondeu — Me passa os nomes.

Guilherme passou os nomes completos das cinco vítimas.

— Ok, devo levar umas duas horas para conseguir tudo. — Amanda calculou mentalmente — Precisa de mais alguma coisa?

— Não, só isso. Vou só terminar de almoçar e já estou descendo para aí.

— Tudo bem, então. Se você não tiver chegado ainda, vou deixar as fichas dessa galera em cima da sua mesa.

— Ótimo. Muito obrigado, Amanda.

— Por nada, querido. Se cuida.

E ela desligou. Praticamente ao mesmo tempo, uma das atendentes do restaurante chegou com o almoço de Guilherme e ele se pôs a comer. Sentia que ia precisar de bastante disposição para cuidar do que ele já chamava de “caso do Landau vermelho”.

 

o—o—o

 

A segunda-feira estava sendo de correria na Transportes Peixoto. Um súbito aumento na volumetria de carga estava deixando os encarregados frenéticos, pois precisavam descarregar as carretas que chegavam e liberá-las para serem carregadas novamente em pouquíssimo tempo.

Fernanda quase não parou em sua sala. Depois de resolver as principais pendências de seu setor, também foi para o armazém ajudar a coordenar a operação. Ainda não tinha visto Adam, e suspeitava que ele havia tirado o dia para visitar alguma de suas outras empresas.

Bruno apareceu na transportadora pouco após o almoço. Havia passado a manhã no escritório da seguradora da empresa para tratar do acidente com a carreta de Montes Claros, e chegou ao armazém com o semblante fechado e olheiras enormes.

E um tremendo mau humor.

— Boa tarde, senhor. — Fernanda cumprimentou-o, enquanto mostrava a um conferente qual carga devia ser carregada.

— Só se for pra você. — O rapaz devolveu, sem sequer parar para conversar — A minha está uma droga.

— O que aconteceu? — A encarregada deixou o carregamento de lado e acompanhou-o.

— Mulher de TPM é uma merda. — Bruno resmungou — Sério, muito merda.

Fernanda entendeu do que se tratava.

— Você e a Carol brigaram? — Carol era a namorada dele.

— Sim. — Ele concordou e pôs-se a desabafar — Eu fico o final de semana inteiro viajando pra resolver aquela pendenga da carreta acidentada, quase não durmo de tanto dirigir, chego tarde no domingo e vou direto pra casa dela pra receber um pouco de carinho, e o que acontece? A desgramada ficou fazendo doce e não queria nem dar umazinha.

A risada de Fernanda foi involuntária, e contribuiu apenas para deixá-lo ainda mais incomodado.

— Você ri? — Ele começou a acenar com as mãos — Eu fiquei lá igual um idiota, insistindo, implorando, pedindo pelo amor de Deus pra gente ir pro quarto. E quando finalmente fomos, ela ficou lá parada, parecendo uma geladeira. — Ele bufou — Quando ela sai com os amigos para as festas, ela faz de tudo. Dança Bonde das Maravilhas, faz a velocidade cinco da dança do créu, faz quadradinho de oito, de nove, de quinze, faz quadradinho de 847, faz mil quadradinhos. E quando vai pra cama comigo, fica lá, paradona, com cara de paisagem, igual uma estátua de gelo, a Elsa do Frozen.

A encarregada se esforçou para conter uma nova risada. Bruno era um ser humano tão excêntrico que até o seu mau humor chegava a ser engraçado, mas Fernanda não queria deixá-lo mal.

— Bruno, isso não é o fim do mundo.

— Calma lá, eu ainda não acabei. — Ele a interrompeu, parando de andar — Depois que tiramos a roupa, foi outro desgosto. A infeliz não me fez nem o favor de depilar a Chewbacca. Ela tirou a calcinha e, de repente, parecia que eu estava encarando a Maria Bethânia.

Fernanda riu alto desta vez, mas Bruno continuou tagarelando.

— Foi aí que eu disse que ela precisava parar de pensar só nela mesma e se preocupar um pouco com o que eu quero pro nosso relacionamento. — Ele continuava gesticulando com as mãos — Aí ela fez cara de bunda, virou e disse “Nossa, você é sagitariano em sua mais pura essência. Exagerado, dramático e só pensa com a cabeça de baixo”. Aí mandei ela ir catar coquinho e fui embora pra casa.

A encarregada continuava rindo. Bruno bufou e pôs-se a andar novamente, balançando a cabeça em negativa.

— Espera aí, Bruno. — Fernanda o alcançou — Me desculpa. Eu não estou rindo de você. Mas você não pode negar que a situação é engraçada.

O rapaz a encarou.

— Pode até ser. Espero que um dia eu possa acabar rindo disso. — Ele disse.

— Você vai. — A encarregada passou um braço pelo ombro dele — Agora, bola pra frente. Esquece esse mau humor.

— Na verdade, eu já estava esquecendo. Aí veio um idiota agora há pouco num banheirão aqui no estacionamento e quase espremeu meu Mobi contra o muro.

— Hã? — Fernanda piscou.

— Ah, tá. Esqueci que você não entende muito de carros. — Bruno deu uma risadinha — Tinha um mané dando ré num Landau ali no estacionamento. Ele não calculou a manobra direito e quase deu ré em cima do meu carro novo.

— E o que você fez?

— Nada. Nem vi direito quem era. Só mandei ele ir à merda e entrei para o armazém. — Estavam passando por uma doca aberta no início do galpão, de onde tinham uma boa vista para o estacionamento — Olha lá. Parece que ele finalmente conseguiu encaixar o carro na vaga.

A encarregada olhou para onde o rapaz apontava e deixou escapar um suspiro.

No canto extremo do estacionamento, virado de frente para o armazém como um animal enorme que espreita sua presa, um Ford Landau destacava-se contra os demais carros. Apesar da chuva, sua longa carroceria bordô brilhava como uma jóia preciosa recém-lapidada. Fernanda continuou observando o carro até que a porta do motorista foi aberta.

E Adam desceu.


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