A Pergunta escrita por Dona Maricota


Capítulo 5
A guerra dos enxeridos


Notas iniciais do capítulo

Nem vou tecer comentários sobre o tamanho do capítulo, até pensei em dividir ele em duas partes, mas sei lá, ficou tão organizadinho assim que não tive coragem kkkkkkk apesar de ser uma bíblia, espero que gostem!!



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“Querido Ryoga, 

Há quanto tempo, não é? Vamos colocar o papo em dia! Te convido para um rodízio aqui na pizzaria, tudo por conta da casa! Estarei te esperando na sexta-feira às seis da tarde. 

De sua velha amiga, 

Ukyo” 

 

— Tá, mas pra que lado é essa droga de pizzaria?! - o menino porco resmunga enquanto lê atentamente as instruções dadas no convite mais uma vez. 

Ele não fazia ideia do porquê, de repente, Ukyo decidiu chamá-lo pra esse tipo de coisa. Fazia tempos que não falava com ela, mas não é como se fossem lá tão próximos, das poucas vezes que interagiam, ela acabava se aborrecendo com a estupidez dele. Mas na semana retrasada ele foi surpreendido com uma caixinha muito bem embalada do lado de fora de sua tenda ao amanhecer, dentro dela tinha o convite, e uma deliciosa pizza de legumes que foi seu café da manhã naquele dia. 

Mas pera aí, semana retrasada? Sim, é isso mesmo. 

Como era de se esperar, Ryoga já estava há duas semanas atrasado para o famigerado rodízio. Até pensou em desistir, com medo de ser recebido com uma boa espatulada na cara por deixá-la esperando por tanto tempo, mas Ryoga era um grande zé ruela que não recusaria um jantar delicioso de graça. Então ele desbravaria as ruas de Nerima o tempo que fosse necessário até encontrar o seu destino. 

E por sua sorte, ele não estava tão longe. Há poucos quarteirões de onde o garoto de bandana se encontrava, tínhamos uma pizzaiola muito impaciente, batendo as unhas na mesa de madeira enquanto olhava atentamente para a entrada do restaurante. 

Já era a terceira sexta-feira em que ela ficava de prontidão esperando o momento em que Ryoga passasse por aquela porta, sua vontade de esganá-lo só não era maior do que a de recebê-lo, colocar seu ardiloso plano em prática e arrancar o máximo de informações possíveis daquele rapaz. Passou as últimas semanas teorizando todo tipo de coisa, enquanto era obrigada a ver seu noivo se tornando quase como uma sombra de Akane na escola. Eles estavam a cada dia mais inseparáveis, e isso a assustava. Precisava descobrir o segredo de Akane o quanto antes. 

Tomada pela ansiedade, Ukyo começa a roer as unhas, pensando que se Ryoga não aparecesse ela já não saberia mais o que fazer para separar aqueles dois, não é como se ela fosse uma mestra das tramoias como Shampoo. Konatsu, que limpava a chapa logo atrás, percebeu que sua chefe estava mais uma vez prestes a ter um ataque de pelanca, suspira e vai até ela com uma fala mansa: 

— Senhorita Ukyo... - Konatsu se retrai – Acho que você deveria desistir... Ele não vai apare- 

— Ele vai sim! - Ukyo a interrompe, ríspida, sem desviar o olhar da porta – Aquele jumento deve ter se perdido. Mas eu sei que ele vem! 

— Ai ai... - a garçonete solta ar pela boca, decepcionada, porém jamais deixaria de ser o apoio emocional que sua amada Ukyo precisava. Vai até o bebedouro, enche um copo com água gelada, e leva até a chefe, que até relaxa os ombros ao ver Konatsu colocando o copo sobre a mesa, bebe um pouco e suspira – Eu só acho que esses planos pra separar o Ranma da senhorita Akane não te fazem bem, minha querida... - Konatsu a olha com ternura – Me preocupo com seu bem estar... 

— Eu tô ótima, Konatsu – insiste, ainda que no fundo ela soubesse que era mentira – Eu já disse, Ranma é meu noivo por direito e eu não vou desistir dele! 

— Eu sei, mas... - Konatsu fica sem palavras, pois sabia que Ukyo era teimosa o suficiente para não se deixar levar pelo conselho alheio – O que te faz pensar que aquele rapaz Ryoga vai te ajudar? 

— Ora, não é óbvio? - Ukyo lança um olhar malicioso para a garçonete, apesar de assustador, um pouco sexy, até arrancando um suspiro da menor - Você vai preparar um lindo drink e- 

AARF!! 

Uma terceira voz chama a atenção das duas para a porta, encontrando o garoto de bandana arfando como se tivesse corrido uma maratona, todo descabelado, sujo, peguento, e cá pra nós, cheirando à cecê. Estava orgulhoso de si por finalmente ter chegado ao seu destino, embora bastante envergonhado pela demora de duas semanas. Ele fita Ukyo com um olhar cansado e diz, pausadamente, entre respiros pesados: 

— Eu... Me... Desculpe... - caminha desesperadamente até a cadeira mais próxima, sentando-se de frente à Ukyo e apoiando a testa na mesa para descansar um pouco – Eu... Me perdi... 

Tonto como sempre, digno de uns bons tabefes na cara, mas Ukyo se conteve e assumiu uma persona bem receptiva: 

— Ryoga docinho, finalmente!! - o cumprimenta, bem cínica e falsa. Ryoga nem olha para ela, todo esparramado na mesa, Ukyo arrasta o mesmo copo d’água que Konatsu lhe deu até ele – Aqui, bebe água. 

O menino porco inclina a cabeça para cima e encontra o copo, o toma em suas mãos quase que de maneira desesperada e bebe tudo num único gole, finalmente recuperando suas energias. 

— Obrigado... - ele agradece, ainda meio encabulado. 

— Por onde você andou, hein rapazinho? - ela cruza os braços e sua pálpebra esquerda treme, ainda sentia muita dificuldade de conter a raiva que sentia por ter ficado plantada esperando-o por duas semanas. 

— Ah. Eu... 

— Bem, não importa! - ela o interrompe e se levanta, muito elétrica e com um sorriso fingido – Eu te prometi um rodízio e é isso que você vai ter! Konatsu! 

— S-Sim, senhorita Ukyo?! - a garçonete se retrai perante a chefe diante dela, a pizzaiola sorri para ela e pousa a mão em seu ombro, a direcionando para atrás da chapa. 

— Vem, vamos fazer a primeira pizza! - Ukyo e Konatsu arrodeiam a chapa e ficam bem de frente para umas cadeirinhas altas - Senta aqui, Ryoga! 

Poucas pessoas sentavam ali pois acumulava muita fumaça, mas apesar da inconveniência, era mais cômodo que Ryoga sentasse de frente para ela, onde poderia empanturrá-lo de comida e bebida à vontade. O rapaz não questionou e foi sentar-se lá, ainda tímido e meio confuso com toda aquela generosidade. 

— Alguma restrição alimentar? - Ukyo pergunta olhando nos olhos dele. 

— Err... Eu não como carne de porco. 

— Perfeito, sem pizza de bacon ou calabresa por hoje – pisca para ele, o fazendo se sentir mais à vontade. Enquanto a chapa esquentava, Ukyo finge se lembrar de alguma coisa e faz cara de espanto – Essa não! Konatsu, vem aqui comigo. 

Ukyo arrasta a garçonete até um cantinho afastado, onde Ryoga não poderia escutá-las, e lhe lança um olhar maligno, fazendo a menor sentir calafrios. 

— Minha querida, vá lá fora e coloque a placa de “estamos fechados”. 

— O quê?! - Konatsu se espanta, Ukyo não era de fechar o restaurante nem se estivesse doente. 

— Preciso focar totalmente no Ryoga hoje – explica, fazendo a garçonete se espantar ainda mais - Amanhã a gente trabalha dobrado! 

— Senhorita Ukyo... - o tom de voz da garçonete misturava preocupação com reprovação - Você não acha que está indo longe demais?... 

— Calma Konatsu, o rodízio nem começou - a pizzaiola semicerra os olhos e esbanja meticulosidade, segurando os ombros da garçonete com as duas mãos - Outra coisa muito importante. 

— O... O quê? - Konatsu tem até medo de perguntar, se arrepiando diante de Ukyo que lhe penetrava a alma com os olhos. 

— Quando você voltar... Quero que prepare uma bebida bem potente pro Ryoga! 

— Ele... Ele é maior de idade?!? 

— Eu sei lá! Mas e daí? Um cara daquele tamanho passa despercebido – Konatsu quase engasga, mas não é como se aquele fosse o crime mais hediondo já cometido em Nerima – Mas escuta! Coloca beeem muito açúcar pra ele não perceber! 

— Senhorita Ukyo... Eu não sei... 

— Vai, por favor! - a mais alta faz um olhar pidão e muito encantador, juntando as duas mãos - Você é a única com quem posso contar! 

Konatsu se derrete inteira por dentro, apesar de muito contrariada, não poderia jamais recusar um pedido de sua amada. Suspira, vencida, e diz: 

— Tá bom... 

— Ai, brigada! - Ukyo dá um beijo na bochecha dela, e a preocupação da garçonete apaixonada some num piscar de olhos, a pizzaiola se afasta e caminha lentamente até a chapa – Deixa que enquanto isso eu faço a pizza. 

A garçonete obediente vai cumprir as ordens enquanto cantarola de alegria, Ukyo se aproxima da chapa, agora quente, e despeja a massa da pizza em cima dela para que comece a sua bela alquimia. 

— Tô feliz que você veio, Ryoga - começa a puxar assunto, sabendo que aquele rapaz tímido não conseguiria conduzir uma conversa – Faz tempo que não te vejo! Por onde você se perdeu dessa vez? 

— Ah há há... - ele coça a cabeça e ri, todo sem jeito – Eu... Tava dando um tempo de Nerima. 

— Sei. Mas sua namorada não é daqui?  

— Quem... Quem te contou que eu tô namorando? 

— Ah Ryoga, todo mundo sabe! - ela faz uma cara maliciosa e o deixa vermelho – Deixa eu adivinhar: começou a namorar e esqueceu que tem amigos, né? 

— N-... Não é bem assim... - ele se retrai, embora aquilo se aproximasse da verdade, ele nunca ia admitir – Eu só... Andei treinando muito. 

— Sei... Deu pra perceber – ela examina o tronco dele, parecia ainda maior que da última vez. A pizzaiola começa a derramar o molho sobre a pizza e o ambiente começa a ficar com um cheiro bem apetitoso, enquanto isso, Konatsu adentra o restaurante novamente e vai preparar a bebida. Percebendo que precisava manter Ryoga duplamente distraído, ela insiste em mais papo – Falando nisso, você tem visto o Ranma? 

— Ah... Não muito – Ryoga faz uma cara emburrada – Mas sinceramente, quanto menos vejo, melhor eu fico! 

— Humm... E a Akane? - Ukyo não tira os olhos dele a partir dali, e fica triplamente interessada quando percebe que ao tocar no nome da garota, Ryoga se arrepia. 

— O-O que tem ela? 

— Você tem visto ela? - a pizzaiola lambe os beiços ao notar que ele ficou nervoso. 

— Eu... Claro que não - ele desvia o olhar, visivelmente desconfortável - Se eu não vejo o Ranma... Então eu não vejo a Akane. 

— Sei... Pois é, eles estão muito juntos ultimamente! - ao dizer aquilo com uma voz forçadamente animada, Ryoga cruza os braços e semicerra os olhos, querendo um buraco para se enfiar – Me pergunto o que deu naqueles dois... Não acha estranho? 

— O-O quê? 

— O Ranma e a Akane nunca se deram bem... Mas agora estão inseparáveis! Não é esquisito?  

— E-Eu não sei do que está falando... - gagueja, mentindo - Já disse, não vejo eles faz tempo. 

— Humm... 

Ukyo estava fazendo perguntas óbvias e muito diretas, sabia que não obteria nenhuma resposta daquela forma, só queria estudar as reações de Ryoga. E para o deleite dela, o garoto estava agindo exatamente como ela previu. 

As respostas sairiam no momento em que o álcool entrasse. 

— Aqui, senhorita Ukyo – Konatsu arrasta uma taça pela mesa. 

— Oh, muito obrigada Konatsu! - Ukyo a deixa vermelha. 

A garçonete fez um ótimo trabalho, um drink de cítricos que mais parecia um suco de frutas tropicais, decorado com uma fatia de laranja no topo e vários cubos de gelo. Ukyo entrega a bebida para Ryoga, junto com a primeira pizza da noite. 

— Aqui, sirva-se! 

— Muito obrigado! - ele agradece, meio afobado para abocanhar aquela deliciosa pizza de cogumelos, mas antes deu um gole bem generoso na bebida que chamou ainda mais sua atenção - Caramba, que delícia! 

— É mesmo? Bebe mais! - Ukyo mal consegue disfarçar um sorriso malicioso – Hoje é tudo por nossa conta. 

— Eu nem sei como agradecer... - Ryoga abocanha o primeiro pedaço da pizza, seguido de mais um golão na bebida - Não sabia que você me considerava tanto assim, Ukyo... 

— Imagina, querido – sua voz era mansa, porém dissimulada – Somos amigos, não somos? - para a sorte dela, Ryoga era muito besta para enxergar maldade em suas ações – Vai, bebe logo! Antes que o gelo derreta! - Ukyo olha para a garçonete - Vai preparando mais uma, Konatsu! 

— Sim senhora! 

 

—--

 

Nodoka acaba de preparar o jantar para a família, coloca todas as tigelas numa bandeja e vai até a sala de estar, onde Genma mais uma vez cumpria o ritual de assistir televisão acompanhado de uma cerveja. A mulher coloca a refeição, as tigelas e os hashis na mesa, e pergunta: 

— Onde está o Ranma, querido? 

— Tá trancado no quarto desde que chegou – responde, sem tirar os olhos da tv. 

Ela se levanta e caminha até o corredor, sobe as escadas, e quando chega no andar de cima, percebe algo incomum. O telefone da casa fica em cima de uma cômoda de frente para a escada, mas ele não estava lá, apenas o fio da tomada sendo esticado para o quarto do filho, que mantinha uma pequena brecha na porta para a passagem deste. 

Nodoka se aproxima e espia pela brecha, encontrando seu filho escorado na cama junto ao telefone, ele sorria de tal maneira nunca antes vista, até um pouco vermelho. 

— Ah vai, não foi tão ruim assim – ele diz com o telefone no ouvido, prosseguindo uma conversa que parece ter se iniciado faz tempo. 

Tirar três numa prova não é tão ruim?!— uma voz feminina responde do outro lado da linha – Ranma, pelo amor de Deus! 

— Você sabe que eu sou péssimo em química - o garoto responde, despreocupado e até se divertindo – Um três pra mim é tipo tirar um sete. 

Vai nessa...— a garota ri – Mas é sério, você precisa parar de só copiar o dever dos outros e estudar. 

— Como se eu fosse usar a tabela periódica pra alguma coisa na minha vida! - zomba, rindo junto com ela – Fala sério Akane eu sou um lutador! Se algum dia eu precisar calcular o raio da hipotenusa do meu soco, eu me preocupo em estudar. 

Isso aí é matemática, seu bobo. 

— Mesma coisa – ele ri mais um pouco, Nodoka consegue ouvir uma risadinha do outro lado da linha também, Ranma se ajusta na cama e volta a falar com uma cara encabulada enquanto coçava a bochecha com o indicador – E aí, vai fazer o que esse fim de semana? 

Nodoka fica encantada, sentia como se seus olhos e ouvidos a enganassem, vendo o filho todo galanteador com a sua noiva no telefone. Seria esse um milagre? Ela fica tão embasbacada que acaba perdendo o equilíbrio, se escorando para mais perto da porta e fazendo-a ranger. Ranma olha imediatamente para a entrada do quarto e se espanta ao ver sua mãe o espiando pela brecha. 

Ah... Não sei— a garota do outro lado da linha responde - Tô sem planos. Talvez eu treine um pouco e- 

—A-Akane eu tenho que desligar – Ranma a interrompe com urgência, muito envergonhado com a presença não requisitada de sua mãe - O jantar tá pronto. Amanhã a gente se fala. 

Akane fica alguns segundos atônita, mas responde: 

Ah... Tudo bem. Tchau. 

— Tchau... - e põe o telefone no gancho fazendo uma cara abusada para a sua mãe. 

Percebendo que não tinha mais o que fazer, Nodoka suspira e abre a porta. 

— Não precisava ter desligado, querido... - ela diz, com uma fala doce. 

— Deu pra me espionar agora é? - rosna para ela, e fica mais encabulado ainda quando vê o rosto maravilhado que ela tinha, sorrindo de tal forma, exibindo as lindas covinhas que ele herdou, como se tivesse presenciado a coisa mais bela do mundo. 

— Ai filho, estou tão feliz de ver você se dando bem com a sua noiva! - começa, bastante animada, fazendo Ranma querer se enfiar debaixo da terra – Podemos começar a pensar no casamento?! 

— Ah mãe, para com isso!! - ele fica mais vermelho que a própria camisa. 

— Eu bem percebi que você estava mais feliz que o normal nos últimos dias – continua, o ignorando completamente – E a Akane... Eu bem que notei que ela está diferente! 

Ranma levanta uma sobrancelha. 

— Mais meiga e delicada... Filho, aproveite essa chance! Quando uma mulher muda de repente, é porque está apaixonada! 

— Ai, mãe...!! 

— Ela está tentando te agradar, filho! Eu sabia que ela se tornaria uma noiva muito dedicada um dia! 

— Tá! Tá! Tá! - ele rosna, dez vezes mais envergonhado – Posso ficar sozinho agora?!? 

— Bom, o jantar está na mesa – ela puxa a maçaneta e deixa a porta entreaberta – E lembre-se, se precisar de qualquer conselho, pode falar com a sua mãe. 

Ranma rosna uma última vez e Nodoka sai. Após alguns minutos sentindo o rosto pegar fogo de tão quente pela vergonha, o garoto de trança se recompõe e fica pensando no que sua mãe disse.  

Então era nítido pra todo mundo que Akane estava diferente? No começo, ele pensava que podia ser paranoia sua, mas aí Ryoga veio com aquela conversa, agora sua mãe... E também teve Shampoo. 

“- Akane sempre ser bruta, violenta e nada feminina... Mas agora, da noite pro dia, ela virar uma florzinha. Por que será?” 

Ele não tirou aquela frase dita pela amazona da cabeça desde aquele dia no parque, embora outras coisas o distraíssem dessa dúvida, no fundo, ele se perguntava com frequência porque Akane teve uma mudança de comportamento tão brusca em tão pouco tempo. Às vezes, ele secretamente até sentia falta de umas briguinhas rotineiras, da troca cômica de insultos e da cara emburrada que ela fazia que era tão adorável. 

Mas não conseguia pensar em nenhuma motivação que a levasse para tal comportamento, diferente de suas outras noivas, Akane não era chegada em tramoias ou trapaças, jamais pensou nela dessa forma, nem nunca pensaria. Apesar de um tanto estranha e meio inconstante, ele se deixou levar pelas emoções e apenas abraçou a “nova Akane” como a materialização de seu sonho mais doce. Quem seria ele para recusar as investidas, ainda que esquisitas, da garota que ele secretamente am-...? 

Bom. 

Agora, depois do que sua mãe disse, ele só tinha uma coisa em mente. 

“- Quando uma mulher muda de repente, é porque está apaixonada! Ela está tentando te agradar, filho!” 

Apesar de encabulado e incontrolavelmente corado, o sentimento que predominava em Ranma com aquela possibilidade era... Preocupação? 

Claro, não conseguia conter sorrisos de alegria por haver uma chance de Akane estar... bem... apaixonada por ele. Só de imaginar, sentia como se fogos de artifícios explodissem dentro de si. 

Mas... 

“... Será que ela acha que eu quero que ela mude?” 

Fez essa pergunta para si mesmo por uns bons minutos, e pelo resto da noite. Será que as brigas que sempre tiveram, e as mil e uma ofensas que já proferiu contra a personalidade dela, a fez achar que ele gostaria que ela fosse diferente? E por isso estava forçando uma personalidade nova? 

Se sua teoria estivesse certa, ele não suportaria o peso de tanta culpa. Na verdade, só o fato dessa teoria fazer um tanto de sentido já espetava o seu coração. Ranma não era perfeito, no fundo, ele tinha noção do quão babaca conseguia ser, e um dos seus maiores defeitos era o de não conseguir medir as consequências que suas ações poderiam acarretar. 

Afinal, ainda que gostasse da nova Akane... Foi pela velha Akane por quem ele se a-... 

“Droga...” 

 

—--

 

Depois da terceira taça, Konatsu não precisou fazer mais nenhuma bebida para Ryoga. O rapaz estava dando altos picos de gargalhadas infundadas, falando coisas sem nexo pelos cotovelos, com uma voz arrastada e desafinada como um bom bêbado alegre. Quem diria que um brutamontes daquele tamanho seria tão fraco pra bebida? 

— E aÍ eU dissE “POOOOOXA AkAri, por que nÃo diSsE que EssE bOlo era fEito com lEite intEgrAl?? Eu TenhO intOlerÂnciA!!”. HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ!! - ele gargalhava enquanto contava a sexta história supostamente engraçada sobre ele e sua namorada. 

— E aí?? - Ukyo pergunta, fingindo interesse. 

— ME BORREI TODO NO DIA SEGUINTE!! 

Os dois começam a rir alto, Ryoga por estar bêbado o suficiente pra achar qualquer coisa mais engraçada do que realmente era, e Ukyo por fingir estar se divertindo.  

Apesar da voz desafinada do garoto embriagado estar bem divertida, escutá-lo contar suas histórias bizarras era um saco, estava contando os minutos para que ele começasse a falar pelos cotovelos as informações que ela queria. 

— Bom, me lembre de nunca fazer pizza doce pra você - ela brinca, ele ri ainda mais alto. 

— Ai, mAs a suA pIzza é tÃAAao gostOsa... - ele diz, enquanto se lambuzava com a quinta pizza colocada em seu prato, sua cara já estava toda suja de molho e os seus dedos peguentos. Era burro demais para perceber que não estava sóbrio, quem dirá que estava todo sujo – VAleU mEsmo pOr me chAmaR UkyO... Você É umA BOOooa AmigA... - ele dá uns tapinhas no ombro dela, a sujando de molho, com nojo, ela afasta a mão dele – Sabe eU NUUUNCA ia imAginAr que vOcê ia mE chAmar pra Uma cOisa dEssaS. 

“Isso idiota, vai falando”, ela pensa consigo mesma, “Daqui a pouco a gente chega onde eu quero”

— Ah é? - ela levanta uma sobrancelha, alternando entre olhar para ele e para a pizza que estava fazendo – Por quê? 

— Eu achEi que vocÊ nÃo gostAaassE de mim – ele gesticulava bastante com as mãos, fazendo uma cena bem engraçada - TodA vez que a gEnte faz algUma coisA juntOs VOcê acAba irritAda cOmigo... 

— Bom, por sua culpa eu já fui obrigada a andar vários quilômetros sem necessidade – zomba, se referindo às várias vezes que acabou se perdendo junto com Ryoga em alguma enrascada – Mas eu gosto de você, Ryoga. Você é legal. Só é meio bu-... Digo...  

— He... He he he... - ele começa a rir sozinho, ignorando completamente o que ela disse, pois sua mente de bêbado o levou para outro lugar – Ei, Ukyo... 

— O quê? 

— Lembra quAndo a gentE fazia plAnos prA sepArar o RAnma e a AKAne jUntos?!? HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ!!! 

— PFFFFT!! HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ!!! 

Ukyo não consegue se conter e começa a gargalhar junto com ele, dessa vez de forma genuína. Dava pra contar nos dedos as vezes em que ela e Ryoga uniram forças desesperadamente para tentar romper o noivado de Ranma e Akane, ela por estar interessada em Ranma, e ele por estar interessado em Akane, sendo esta uma via de mão dupla. Mas a falta de azar de Ukyo cominada ao Q.I. negativo de Ryoga resultava nas presepadas mais desastrosas possíveis. 

Na época eles se roíam de raiva. Hoje, conseguiam rir. 

— Ai, que mico!! Onde a gente tava com a cabeça?! - ela bafora, entre risos – Fala sério! Lembra daquela vez que a gente arrumou um encontro pra você e a Akane aqui na pizzaria?? 

— AAAARR NÃO ME LEMBRA DISSO!! QUE VERGONHA! - ele berra, já não tinha mais controle sobre o tom da sua voz – CoitAda da Akane... Foi horrÍvel!! 

— E aí.. HÁ HÁ HÁ!! E aí depois o Ranma chegou... 

— VESTIDO DE MULHER!! 

— E DISSE QUE ERA A SUA NOIVA!! 

— E DISSE QUE ERA A MINHA NOIVA!! - eles gritam, em coro, e começam a gargalhar da mesma forma e volume – AARGH!! COMO É QUE A GENTE CAIU NAQUILO?!? 

— Ei, em MINHA defesa eu não sabia da maldição do Ranma naquela época! - responde, sem parar de rir, e faz uma cara maliciosa - Já você, parecia até que tava gostando. 

— ErA uma perUca mUUUito convincEnte, OkAy?!? - tenta se defender, em vão. Sua mente é levada rapidamente para outra memória - Também tevE aquEla vez na cAvernA assombrAda... 

— Ai, não! - eles tem mais uma crise de gargalhada ao lembrar dos tragicômicos eventos na caverna dos corações partidos – Eu tenho trauma daquele lugar até hoje!! 

— E depOis o Ranma vEio me pERguntAr se a gEnte taVa nAmorAndo!! 

— Cruz credo!! - os dois riem em coro mais uma vez – Sem dúvida, foi uma das piores experiências da minha vida! 

— Há há... Não fOi tão rUim... - Ryoga fica com um olhar distante, embora, tenro. Divagava para longe dali, dessa vez sendo atingido por uma memória mais doce – Foi a pRImeirA veZ que a AkaNe me AbraÇoU... 

O rapaz sorri, com o rosto corado e olhos marejados. Aquilo levanta uma pulga atrás da orelha de Ukyo por dois motivos: 

Primeiro, Ryoga tinha uma namorada. Por que ele falava de Akane com tanta ternura e um olhar escancaradamente apaixonado? 

Segundo, talvez aquela fosse a hora perfeita de colocar seu plano em prática. 

Estava se divertindo tanto que quase esqueceu o real motivo de Ryoga estar ali, mas não podia vacilar. Ukyo termina de enfeitar a pizza e entrega ao prato do rapaz, que volta de seus devaneios e deposita sua atenção 100% na comida. 

— Pois é Ryoga, éramos dois manés - começa, colocando mais um pouco de massa de pizza na chapa. 

— Nem mE fAla... 

— Que bom que a gente não faz mais isso né? - ela rouba o olhar dele. 

— IssO o quÊ? 

— Ficar de planinhos... - ela olha para ele com uma cara cínica, e ele se arrepia – Se metendo na relação do Ranma e da Akane... - ela diminui a distância dos seus rostos, fazendo-o se retrair, só não se aproxima mais porque tem uma chapa quente os separando, e o lança um olhar fuzilante – Que bom que a gente amadureceu... ?! 

Ela nem percebeu que aquilo poderia muito bem ser uma indireta para ela mesma. 

Colocado contra a parede, Ryoga sente um arrepio na espinha ao ouvir aquelas coisas que lhe caíam como uma luva. A mente de um bêbado acaba triplicando as coisas, logo, quando Ryoga se lembrou dos problemas que o atormentavam, eles aumentaram imensamente de tamanho, de tal forma que ficou impossível de se manter discreto. 

Ele faz uma cara nitidamente triste, como quem estivesse decepcionado consigo mesmo, e com uma língua desenfreada, deixou que a máscara caísse de uma vez. Até realinhou a voz: 

— Fale por você mesma... Eu não amadureci... 

“BINGO!” 

— Como assim, Ryoga? - ela finge uma cara desentendida. 

— Eu não mudei quase nada... - Ryoga começa a sentir uma tontura, e deita a cabeça na mesa – Continuo o mesmo mané de sempre... 

— Por que está dizendo isso? - ela insiste na conversa, calculando muito bem os seus passos – Por acaso... Tem algo a ver com a Akane? 

Ryoga geme alguma coisa indecifrável, ela só conseguiu entender que era um gemido de choro, dando a entender que ela acertou no palpite. 

— Ukyo... - ainda com a cabeça deitada na mesa e uma voz chorosa, ele se ajusta de forma que possa manter contato visual com a pizzaiola, que se espanta ao ver que ele REALMENTE estava chorando – Eu sou um namorado horrível... 

Dali em diante ela começou a pensar todo tipo de coisa, até se empolgando com a possibilidade de ouvir algo muito cabuloso. 

— Como assim?! - ela o apressa. 

— Eu... não... consigo... - lágrimas escorriam de seu rosto e ele rangia os dentes, falando com muita dificuldade – Parar... de gostar... da Akane... 

— ... Ah, era isso? - ela resmunga, meio decepcionada. Lá no fundo estava torcendo por uma história mais dramática de traição, mas ele apenas confirmou o óbvio - Me diga algo que eu não sei. 

— Como assim?!? 

— Ah Ryoga, tá na cara – Ryoga arregala os olhos e até para de chorar um pouco – O jeito que você fala dela... É o mesmo que de anos atrás. 

O menino porco fica atônito e encabulado, sentindo-se como um livro aberto. Se estivesse sóbrio, estaria à beira de um colapso ao pensar que aquela revelação poderia ter consequências, mas sob o efeito do álcool, ele apenas tinha vontade de se abrir mais e mais com aquela garota extremamente receptiva diante dele. 

— Mas e a sua namorada? - ela continua, muito intrigada com o que se passava na cabeça daquele garoto confuso - Você não gosta dela? 

— Claro que eu gosto!! - alega, muito preciso – A Akari é incrível! E linda! E uma namorada perfeita!! 

— Então por que ainda gosta da Akane? - dispara, como se cravasse a sua espátula no peito de Ryoga. 

— Eu... Eu... 

Ele esfrega sua cara na mesa, e continua seu desabafo: 

— É que... Ela não sai da minha cabeça... E eu não sei porque... - lágrimas voltam a escorrer de seus olhos – Eu adoro a Akari... Adoro ser namorado dela... Sinto que posso ficar com ela pra sempre... - faz uma pausa, grudando a testa na madeira – Mas... Onde quer que eu vá... Eu penso na Akane... No sorriso dela... No abraço dela... No cheiro dela... - começa a bater a testa contra a mesa consecutivamente – Por quê?... Por quê?... Por quê?... 

Ele repetia para si mesmo no ritmo em que batia a cabeça contra a madeira, Ukyo, por sua vez, apenas se permitia apreciar aquele espetáculo, muito deprimente e ridículo por sinal. 

Quando ele finalmente para de bater a cabeça contra a mesa, ele diz: 

— Eu sou um completo idiota... 

— Sim, você é - ela concorda, sem pudor algum. Solta ar pela boca, sem muita paciência, e faz uma cara emburrada – Sinceramente, o que aquela garota tem demais? 

— Como assim? - Ryoga dá uma pausa no seu show, olha para ela e levanta uma sobrancelha. 

— Parece que todo homem se apaixona por ela! Que coisa! - aquilo soava meio que como um desabafo, ainda que Ukyo não tivesse nada pessoal contra Akane, era frustrante que o seu noivo fosse tão obcecado por ela. Bem, não só ele, pelo menos uns cinco outros caras partilhavam dessa obsessão, parecia até feitiçaria, impossível não sentir uma pitadinha de inveja – Tudo bem, ela é bonita, mas... Sei lá, não consigo entender. 

— Ela não é bonita... - começa, cutucando um pouco nas inseguranças de Ukyo – Ela é gentil... Carinhosa... Inteligente... Forte... MUITO forte... Já viu o soco que ela tem? 

— Você é um masoquista por acaso? - zomba – Eu pensei que os homens gostassem de garotas delicadas. 

— Mas ela é delicada! - rebate, mas Ukyo olha para ele com cara de quem não acreditava – Do jeitinho dela, claro... 

— Hunf... - bufa, particularmente incomodada, se perguntando o que Akane tinha que ela não teria, afinal, ainda que Ukyo fosse chamada de gracinha com frequência, ela não tinha essa lista de admiradores correndo atrás dela. Se ao menos Ranma corresse atrás dela já seria o suficiente, mas claro, ele também estava na mira de Akane – Bom, eu nunca vou entender o poder que ela tem sobre os homens. Pelo menos metade dos garotos que conheço querem namorar com ela. 

— O Ranma é igual a ela... 

— Hein? - ela levanta uma sobrancelha. 

— Todas as garotas querem ele... - apesar de mais recomposto, Ryoga mantinha um tom de voz meio arrastado, e agora, melancólico - Mas eu entendo... Um cara bonito como ele... E forte... Tem um cabelo legal... Tão seguro de si... Se eu fosse uma garota, acho que eu também ia querer ficar com ele... 

“Meu Deus, ele tá MUITO bêbado!”, Ukyo pensa consigo mesma, com os olhos arregalados de tão chocada que estava ao ver Ryoga exaltando o seu rival daquele jeito, ele realmente não parecia mais ter controle sobre a sua língua. Ele estava numa espécie de transe, pensando em Ranma e nas mil e uma qualidades que ele secretamente enxergava nele, parecia uma admiração muito reprimida. Ou sei lá. 

Ryoga sai um pouco desse transe, olha para Ukyo, ainda com a bochecha grudada na mesa, e pergunta: 

— Você ainda gosta dele, Ukyo? 

Ukyo se espanta, não esperava esse tipo de pergunta que a jogasse contra a parede, ela seria a pessoa a fazer as perguntas aqui. Olha para um lado e para o outro, meio desconsertada, e confessa, torcendo para que ele não lembrasse disso no dia seguinte: 

— Claro que sim... - ela desvia o olhar enquanto mexe no cabelo – Ele é meu noivo... 

Ryoga solta um ar pelo nariz e sorri, como se tivesse chegado numa conclusão engraçada. 

— Eu sabia... - ele diz, meio que rindo - Então nós somos dois manés... 

— Como é?! - ela junta as sobrancelhas. 

— Esse tempo todo e você ainda gosta do Ranma... E eu da Akane... - em algum lugar na sua mente não sóbria ele realmente achava aquilo engraçado, Ukyo, ainda que incomodada, acabou concordando com ele – A gente não mudou nada... 

— Pois é... - ela suspira, decepcionada – Quando é que a gente vai aprender, hein? 

— Eu queria tanto parar de gostar dela... Eu até tentei... 

Ukyo olha para Ryoga e encontra nele algo que ela não esperava: empatia. Se antes ela se sentia totalmente no controle da situação, manipulando aquele rapaz bêbado para que pudesse tirar proveito dele, agora enxergava um parceiro de dores. Alguém que a compreendesse.  

Afinal, a relação deles sempre foi baseada nisso. Um mané ajudando o outro e quebrando a cara juntos. E por mais estranho que isso fosse, ela encontrava conforto naquilo, naquele ombro amigo. 

Mas enquanto ela tinha todo tipo de insights sobre isso, o menino porco continuava chorando as pitangas sobre Akane, quase que num monólogo. 

— Mas agora tem essa porcaria de Conselho... - Ryoga continua choramingando sem olhar para Ukyo  – E ela precisa da minha ajuda pra... pra... 

Um estalo percorre a cabeça da pizzaiola e ela volta para a sua postura metódica. Talvez agora ela tivesse fisgado a exata informação que queria. 

— Pera, pera, pera... - Ukyo tenta conduzir a conversa novamente – Conselho? Ajuda? Tá falando do quê? 

Ryoga arrasta o rosto na mesa, voltando a manter contato visual com a garota. Seu rosto já estava inchado e seus olhos enxarcados, perdendo até o brilho. 

— Promete que não vai contar pra ninguém? - ele pede. 

O semblante de Ryoga era indescritível, misturava muitas emoções de uma vez. Se estivesse em condições normais ele sem sombra de dúvidas jamais abriria a boca sobre isso com ninguém, mas alguma força inexplicável o impulsionava a contar seus segredos mais íntimos para Ukyo. Mal sabia ele que essa força se chamava álcool, 

— Claro, prometo! - ela assente, ansiosa pelo que estava por vir. 

Ele faz uma pausa, sem acreditar no que estava prestes a dizer. E quando finalmente volta a falar, diz: 

— A Akane tá com risco de perder a casa... A academia... Tudo... Tudo o que a família dela tem... - a forma como ele deu início àquela história fez o semblante de Ukyo mudar em questão de segundos, se antes ela tinha algum resquício de empolgação por estar conseguindo o que queria, aquele sentimento evaporou – Parece que... Como o pai dela tá há anos sem dar aula... Um tal de Conselho das Artes Marciais da China vai tirar tudo o que eles tem... 

— Q-Quê?!? - a boca da pizzaiola fica trêmula - Isso é sério?!? 

— É... - quando ele confirma, Ukyo quase perde o equilíbrio. Sua excitação foi trocada por preocupação. E muita. Muita culpa – E o único jeito que eles tem de resolver o problema é se ela ou uma das irmãs casar com um herdeiro de outra academia... 

Ainda que perplexa com tantas informações de uma vez, Ukyo consegue ligar os pontos, e fica duplamente chocada. 

— Então é por isso que ela é noiva do Ranma... 

— É... 

— O Ranma sabe dessa história?? 

— Não... Ela não quer que ele saiba – Ukyo engole seco – Ela não quer que ele se sinta responsável nisso... 

Os dois ficam uns bons minutos em silêncio, Ryoga se afogando em suas lágrimas, e Ukyo tentando processar tudo o que ouviu. Agora tudo fazia sentido. Akane provavelmente resolveu seguir adiante com o noivado no momento em que descobriu isso tudo. 

Nunca, jamais, pensou que haveria um motivo tão sério por trás de todo aquele circo que lhe tirou o sono nas últimas semanas. Todos os momentos em que julgou Akane, e a martirizou por vê-la tentando “roubar” o Ranma pra si... Alimentaram um GRANDE monstrinho da culpa dentro de Ukyo. 

Agora não só sentia-se uma completa idiota por ter armado todo aquele plano pra tirar informações de Ryoga, como também o pior ser humano do mundo, só de pensar que tinha a intenção de piorar os problemas da menina ainda mais. 

— E aí, eu... - de repente, Ryoga volta a falar, roubando a atenção dela – Decidi ajudar ela... a ficar com ele... 

Normalmente ela se espantaria com isso, mas depois de tudo o que ouviu, aquela estava longe de ser a revelação mais chocante da noite. 

— Tá ajudando a garota que você ama a ficar com outro? Sério? - ela desdenha dele – Quem te viu, quem te vê... 

— É melhor assim... - ele continua, com a voz mais melancólica do mundo – Vai ser melhor pra todo mundo... 

— Hum... - grunhe, se inclinando para encará-lo mais de perto – Vai ser melhor pra você

Ele não sabe muito bem como responder aquilo. 

— Eu... Não sei... - Ukyo bufa diante daquela resposta – Acho que sim?... Sei lá... Talvez assim eu a esqueça de vez... 

— Isso não faz o menor sentido – ela dispara. 

— O importante é que a Akane seja feliz... - com a bochecha colada na mesa e os olhos inchados de tanto chorar, Ryoga começa a senti-los pesados, os fechando lentamente e ficando inconsciente – Eu só quero ver ela feliz... 

E dormiu. Como um bom embriagado. 

Ukyo permanece atônita, e quando percebe que ele adormeceu, desliga a chapa. Fica paralisada encostada na parede por alguns minutos, tentando processar tudo o que estava sentindo naquele momento. Tudo o que sentia por Akane, por Ranma, e a sua impressão de si mesma. 

As suas teorias de quais poderiam ser as intenções de Akane eram muito mais simples e fúteis que a realidade áspera, que colocava inclusive a própria conduta de Ukyo em jogo. Poderia ela realmente interferir no noivado de Ranma e Akane agora, sabendo que isso pode estragar a vida de uma família? Ainda que Ranma fosse seu noivo, isso era mais importante que seus princípios? Ela era esse tipo de pessoa? 

E por falar em tipo de pessoa, começou a admirar Ryoga dormindo num sono pesado, lembrando em tudo o que ele contou sobre seus sentimentos por Akane e sua disposição para ajudá-la, ainda que aquilo significasse perdê-la definitivamente. Claro, namorar uma e continuar gostando de outra era questionável, mas Ryoga não parecia nem um pouco malicioso em suas escolhas, só muito, MUITO perdido. Embora desengonçado, ele tinha a melhor das intenções. E ele amava Akane. Realmente amava. 

— Como você é idiota... - ela resmunga, olhando pra ele, até dá um sorriso – Idiota e bonzinho... 

Ukyo ouve passos se aproximando logo atrás, era Konatsu, muito curiosa com o silêncio que se instaurou. 

— Ele dormiu? - pergunta. 

— Sim. 

— E o que a gente faz com ele? 

— Deixa ele aí, amanhã ele vai embora – Ukyo dá meia volta sobre Konatsu e vai até a parte interna do restaurante. 

Paira sobre uma cômoda e abre uma gaveta, retirando dali um cobertor azul bem grande. Volta para o restaurante e fica de costas para Ryoga, que já parecia estar no décimo sono, com a cabeça apoiada nos braços cruzados. 

Ukyo o cobre do ombro até os pés, alisa de leve o cabelo dele, e sorri gentilmente. 

— Bons sonhos, mané. 

 

—--

 

No dia seguinte, manhã de sábado, Genma estava se alongando no quintal em sua forma humana, o verão estava se aproximando e era terrível ficar na forma de panda no calor com aquele amontoado de pelos. Ele acordou antes que todos na casa, foi até a cozinha, fez um café, e aproveitou um pouco da privacidade. 

Até que ouviu o som da campainha. 

Irritado, se perguntando quem poderia ser a essa hora de um sábado, foi até a entrada da casa e abriu a porta, dando de cara com um rapaz alto de grandes óculos engarrafados. 

— Bom dia, senhor Saotome! - Mousse parecia muito elétrico mesmo sendo tão cedo, ele segurava uma caixa de entregas, que estendeu na direção de Genma com um largo sorriso – Aqui está o seu pedido! 

— Pedido? - Genma levanta uma sobrancelha - Ninguém aqui pediu nada, garoto. 

— Oh, é mesmo? - Mousse finge uma cara de atrapalhado – Devo ter me confundido. He he. 

Seria mesmo muito improvável alguém encomendar um almoço às sete da manhã, e Mousse sabia disso. Mas aquele era o horário perfeito para sua artimanha, pois sabia que Ranma estaria em seu décimo sono. 

— Bom, tenha um bom di- 

Genma já ia fechando a porta na cara do garoto, mas o amazona coloca um pé sobre a brecha e interrompe o Saotome pai. 

— Senhor Saotome... aproveitando que estou aqui – Mousse coloca a caixa, que na verdade estava vazia, no chão e se aproxima de Genma, quase entrando na residência, ele tinha uma cara muito suspeita, o que fez o homem panda ficar desconfiado – Quero lhe dar os parabéns! 

— Parabéns? 

— Sim! - Mousse sorria, tentando parecer o mais agradável e despretensioso possível - Agora que o seu filho Ranma, e a noiva dele, Akane Tendo, estão se dando muito bem, eu imagino que finalmente teremos um noivado, não é?! 

Genma fica alguns segundos em silêncio processando aquela informação, era um pai tão desligado que não havia notado nada do que Mousse acaba de lhe contar, sendo assim, não conseguiu segurar uma grande euforia. 

— Do.. Do que está falando, Mousse?! - pergunta, com certa urgência e dando indícios que estava prestes a se emocionar. 

— Ora, não se fala em outra coisa! - ele aumenta um pouco a história para dar mais dramaticidade, queria fisgar a atenção máxima de Genma – Ranma Saotome e Akane Tendo finalmente parecem ter se entendido! Já foram vistos juntos no parque, no cinema, no jardim... O senhor não sabia? 

Ranma e Akane eram tímidos e discretos demais para saírem contando pra todo mundo que estavam desenvolvendo uma espécie de relacionamento mais afetivo, então não era difícil de imaginar que eles não contaram nem para os seus pais. Mousse tinha noção do quanto os pais de ambos eram coniventes com aquele noivado, por isso queria se certificar que pudessem lhe dar uma mãozinha. Ele só não tinha dimensão do quão dramático o Saotome pai era, então ficou muito desconfortável ao ver aquele senhor de meia idade se debulhar em lágrimas de alegria bem diante de seus olhos. 

— Oooh, que Deus seja louvado!! Que notícia maravilhosa!! - ele berra, juntando as mãos e olhando para o céu, depois segura as duas mãos do amazona, que se retrai imediatamente – Tem certeza do que está me dizendo, Mousse?!? 

— S-Sim, claro que tenho – responde, sem ter onde enfiar a cara. 

E fica ainda pior quando Genma o puxa para um abraço apertado. 

— Ah, estou tão feliz!! - afirma, quase esmagando os ossos do garoto - É o sonho de um pai se realizando!! Um milagre dos deuses!! 

— F-Fico feliz por você, senhor Saotome... - Mousse range os dentes, falando com muita dificuldade ao ser apertado daquela forma. 

Genma o solta e se direciona para dentro da casa com muito entusiasmo, mas ainda chorando. 

— Vou falar com Ranma agora mesmo!! RAAAN- 

— Espere aí, senhor Saotome! - Mousse o puxa pela gola do roupão, o fazendo olhar para trás - Eu tenho uma ideia melhor. 

Convencido, Genma fica de frente para ele de novo, com os olhos e ouvidos bem abertos. Mousse tinha um olhar dissimulado, mas o Saotome pai estava tão feliz que nem se atentou aos detalhes. 

— Por que não faz uma surpresa pro Ranma? 

— Surpresa? 

— Sim - Mousse se aproxima um pouco, fazendo contato visual com o velho, penetrando sua mente – Por que não convida Akane Tendo para passar a tarde aqui? Acho que o Ranma vai ficar muito feliz de ter um momento mais... íntimo com a sua noiva. 

Mousse o convence mais uma vez, lhe arranca um sorriso de ponta a ponta, e recebe dois tapinhas no braço. 

— Ótima ideia, garoto! Ah, que dia feliz!! - Genma se direciona para dentro de sua casa mais uma vez, acena para Mousse e se prepara para fechar a porta – Obrigado mais uma vez! 

— Imagina, é um prazer ajudar – responde, com malícia. 

— Tenha um bom dia! 

Genma fecha a porta e deixa um Mousse muito satisfeito do lado de fora, sorria com um semblante de dever cumprido, e começou a caminhar esbanjando confiança pelas ruas de Nerima. 

— Essa foi muito fácil - se vangloria consigo mesmo – Mousse, você é brilhante! Um encontro dentro de casa é perfeito! Quem sabe eles... 

Mousse para de falar quando olha pra frente e encontra uma figura familiar, especificamente uma de bandana amarela com um guarda-chuva vermelho nas costas. Como sempre, Ryoga parecia caminhar pra lá e pra cá sem muito rumo, mas dessa vez ele tinha um semblante péssimo. Especificamente o semblante da ressaca. Parecia que um trator tinha passado por cima dele. 

O amazona se aproxima e acena: 

— Que bom que eu te achei! 

Ryoga olha para o lado e vê Mousse se aproximar, estava com tanta dor de cabeça que quase não o reconheceu. 

— É você, Mousse? - sua voz estava rouca e a visão estava turva, pegava na testa sentindo muita enxaqueca - Onde eu tô, hein? 

— Não se preocupe, você ainda está em Nerima – o amazona então repara o estado deplorável do rapaz – Nossa, o que aconteceu com você? 

— Eu não sei... Eu... Fui pra um rodízio de pizza lá na Ukyo... Acabei dormindo lá... - ele falava com muita dificuldade e os olhos semicerrados - Não lembro de quase nada... Não lembro nem como eu dormi... Será que tinha álcool naquela bebida? Eu devia ter perguntado... 

— Você saiu de lá agora? 

— É... 

— Bom... De qualquer forma, hoje nós temos trabalho a fazer! - Ryoga olha pra ele com cara de quem não entendeu nada, Mousse o pega pelo ombro e começa a conduzi-lo em direção ao café gato – Acabei de arrumar um encontro pro Saotome e pra Akane Tendo e você vai ficar de vigia comigo! 

— Como é que é?! 

— Vem, eu te pago um almoço. 

Dali em diante Ryoga só se calou e consentiu, ainda que muito contrariado, ele não recusaria comida de graça pela segunda vez. Por que do nada todo mundo ficou tão generoso com ele? 

 

—--

 

De meio dia, Shampoo se levanta e vai tomar um banho quente. Ela não costumava acordar tão tarde, mas se permitia dormir mais um pouco nos sábados, que era o seu dia de folga. Se vestiu, passou perfume, e foi até a o restaurante, onde deu de cara com Cologne na cozinha. 

— Bom dia, bisavó - ela a cumprimenta, mas a velha sequer a olha de volta, parecia estar muito concentrada em um ponto específico do salão. 

— Olhe aquilo, Shampoo – diz a amazona com uma voz seca, meio séria, sem tirar os olhos da mesma rotação. 

Curiosa, Shampoo a obedece e olha, encontrando Mousse e Ryoga almoçando juntos, pareciam conversar bem baixinho, como se não quisessem que ninguém escutasse o que diziam. 

— Aiya... - a amazona mais nova cerra as sobrancelhas, com várias interrogações na cabeça - Mousse ser amigo de Ryoga agora? Desde quando? 

— O Mousse já estava estranho desde que voltou da China... Mas isso agora levanta AINDA mais suspeitas – a velha amazona os massacrava com o olhar, seu sexto sentido lhe afirmava que ali tinha coisa - Você tem andado de olho nele, minha neta? 

— Sim, bisavó. 

— Descobriu como ele quebrou a maldição? - Shampoo fica em silêncio, entregando a resposta. Cologne olha para a neta com um ar muito incisivo - Não fique dando bobeira, Shampoo! Quer que o Mousse atrapalhe os nossos planos?! 

— Claro que não... 

— Então descubra porque esses dois estão tão amiguinhos – a velha volta a fuzilá-los com o olhar – E o que estão cochichando tanto. 

Antes que elas pudessem fazer qualquer coisa, os dois rapazes se levantam e saem do restaurante de maneira bem sorrateira. Cologne olha para Shampoo e dá o sinal. 

— Depressa, Shampoo! Siga-os! 

— Sim, senhora! 

E obedece, indo atrás dos dois como uma sombra, mas tomando o dobro de cuidado para não ser percebida. 

 

—--

 

Kasumi tinha acabado de lavar a louça do almoço e foi até a sala de jantar, onde avistou seu pai na varanda com um semblante muito alegre, cantarolando músicas de amor. Ela sorri, muito aliviada em ver seu pai animado, considerando que o emocional dele estava abalado nos últimos tempos. 

— Que alegria é essa, papai? - ela pergunta com uma voz muito doce, ficando de frente pra ele na varanda. 

— Oh, nada! Só... - ele faz uma cara muito sugestiva – Parece que a Akane vai passar a tarde com o Ranma na casa dele. 

Pelo tom da conversa, Kasumi entendeu a alegria súbita de seu pai. Mas levando em conta tudo o que a vêm preocupado desde aquela conversa que teve com Nabiki, ela não conseguiu disfarçar uma cara inquieta. 

— Ah, é mesmo?... - pergunta, num tom meio desanimado. 

— Sim! Parece que meu amigo Saotome a convidou – ele não parava de sorrir – Essa pode ser uma boa oportunidade pra eles se darem bem, você não acha?! 

— Nhm... Eu... 

Antes que Kasumi pudesse falar qualquer coisa, eles ouvem passos se aproximarem e veem Akane na entrada da sala, ela estava linda e pronta pra sair, usava uma blusa listrada sobreposta por um macaquinho jeans, ela também lembrou de passar perfume, então estava muito cheirosa. Visivelmente se esforçou para ficar bonita, o que era um bom sinal para Soun. 

— Eu tô indo, tá? - ela avisa, antes de dar meia volta e retornar ao corredor. 

— Divirta-se filha! - o Tendo pai acena, muito otimista de que aquilo significava algo. 

Kasumi, que já estava com uma pulga atrás da orelha, não conseguiu evitar de ficar cabisbaixa. Toda vez que via Akane inserida em alguma situação que envolvesse Ranma, ela pensava sobre a teoria de Nabiki. Sobre o medo que sentia de que na verdade aquela aproximação repentina era um sacrifício que a irmã mais nova estava fazendo pela família, e não por vontade própria. 

Akane já estava na entrada da casa, amarrando o seu tênis e pegando a sua bolsa, foi quando viu a irmã mais velha se aproximar com uma cara estranha, porém, sempre sorrindo. 

— Akane... 

— Sim? 

— Vai ver o Ranma de novo? - Kasumi fica bem próxima à irmã, que se sentiu meio recuada com aquela pergunta. 

— Ah... sim, eu vou. 

Akane olha bem nos olhos da irmã e fica confusa, Kasumi não parecia muito... “normal”. Sendo ela uma pessoa que não sabia mentir, tava na cara que alguma coisa a incomodava, mas a irmã mais nova não fazia a menor ideia do que poderia ser. 

Ainda que soubesse dos riscos, Kasumi não conseguia se conter. Se aproximou ainda mais de Akane e começou a alisar seu cabelo, a acolhendo com um sorriso muito protetor. 

— Akane... Tem alguma coisa que queira me contar? - pergunta, fazendo a menor arregalar os olhos - Você... Sabe que pode contar tudo pra mim, né? 

Akane fica perplexa e sem saber o que responder, pensando todo tipo de coisa que aquilo poderia significar. Impossível Kasumi ter descoberto as suas intenções. Será que ela percebeu alguma coisa? Não, Kasumi é meio desligada... Então por que isso do nada? 

O silêncio da irmã mais nova estava sendo torturante para Kasumi, queria abraçá-la, dizer que está tudo bem e que ela não precisava se forçar a nada. Mas não poderia ter certeza se Akane tinha noção do que a família estava passando, então tentava fazer com que ela confessasse, sem que tocasse diretamente no assunto. 

Mas óbvio, Akane não deu o braço a torcer. Apenas fingiu um sorriso e despreocupação. 

— Não... Não tenho nada. 

Sem tirar as mãos do cabelo dela, Kasumi semicerra os olhos e alarga o sorriso. Se aproxima do rosto de Akane e lhe dá um beijo na testa de forma muito maternal, no fundo, era tudo o que a irmã mais nova precisava. Afastando seu rosto novamente, Kasumi diz: 

— Bom... diga ao Ranma que ele também pode nos visitar qualquer dia desses. 

Ainda que um pouco estranho, Akane retribui o sorriso, tentando parecer o mais natural possível. 

— Digo sim. 

Akane se despede da irmã e finalmente se vai, Kasumi a observa ir embora, se convencendo de que talvez nunca saciaria a sua dúvida. Suspira, e volta aos seus afazeres. 

 

—--

 

Com a digestão feita, Ranma estava treinando no seu quintal com um boneco de madeira, lhe atingindo com chutes e socos moderados. Ele adorava treinar sozinho nas tardes de sábado, e com o calor que estava fazendo, era a melhor forma de liberar o estresse. 

Genma se aproxima sorrateiramente, sem tirar os pés da varanda, e examina o filho. 

— Ponha mais força nessa perna, Ranma! - avisa, enquanto Ranma chutava o boneco. 

O garoto olha para o pai com uma cara emburrada. 

— Quer vir aqui fazer por mim, velho?! - rosna, detestava quando seu pai lhe dava palpites de como usar sua força. 

— Como você é teimoso, garoto! Deveria ouvir mais os conselhos do seu velho pai! - Genma se aproxima dele, e para a surpresa do filho, ele sorria. Um sorriso meio estranho na verdade, parecia que lá vinha bomba – E não falo só sobre treinamento. 

Ranma levanta uma sobrancelha, muito desconfiado. 

— Tá falando do quê, hein? 

— Imagine só, meu próprio filho escondendo coisas de mim – ele alarga aquele sorriso sugestivo – Quando ia contar ao seu velho pai que decidiu levar o seu noivado com Akane adiante? 

O rosto de Ranma fica quente e avermelhado, sua reação imediata foi a de vergonha e negação. 

— Q-Que história é essa?! - resmunga, alterando o tom de voz – Do que você tá falando?! 

— Eu sempre soube que você acabaria fazendo a escolha certa, Ranma – ele dá um tapinha no ombro do garoto – Estou orgulhoso de você, filho! 

— Argh!! O que é que a mãe te contou?! - pergunta, nem sonhava que na verdade foi Mousse quem plantou a sementinha na cabeça de Genma – Olha, não é nada do que vocês tão pensando! Eu só liguei pra Akane p- 

— Não seja tímido, rapaz! - Genma agarra o ombro do filho e o puxa mais pra perto, aumentando ainda mais o desconforto do garoto – Agora vamos ter uma conversa de homem pra homem! 

— Hã?! 

— Eu vou te dar umas dicas de como... ir afundo com a sua noiva! - a forma como seu pai estava conduzindo a conversa sem se importar se Ranma ao menos queria tê-la, e fazendo aquela cara maliciosa, fez o garoto querer um buraco pra se enfiar – Sabe, quando eu era jovem... 

— Ah, pronto... - ele revira os olhos e desiste, nada no mundo o faria calar a boca agora. 

— Eu conheci uma garota chamada Naomi. Ela era linda... - Genma olha pro céu e fica distante, mergulhando em suas memórias com um sorriso no rosto – Engraçada, desinibida... E muito forte, por sinal! Houve um tempo em que ela treinava comigo e meu amigo Tendo. Nós fomos um trio e tanto por uns anos. E cá pra nós... - ele dá uma piscadinha sugestiva – Ela era bem moderninha pra aquela época. 

— Urrrgh... - Ranma queria sumir, detestava quando seu pai começava a contar suas histórias com mulheres, um soco no estômago seria menos torturante. 

— Infelizmente essa história não tem um final muito feliz. Tendo também se apaixonou por Naomi e brigávamos muito por causa dela, quase paramos de nos falar. Mas no fim, escolhemos prezar pela nossa amizade e perdemos contato com Naomi. Se bem que foi ela quem sumiu de repente... - tagarelava, e Ranma não estava entendendo mais nada. Por que ele estava contando tudo aquilo? Genma volta a si e se dá conta que está sendo prolixo – Bom, o ponto é... Naomi foi quem... “me fez homem”, se é que me entende – ele dá mais uma piscadinha. 

— Que nojo... 

— Então Ranma, o que você precisa fazer é- 

— Ai, para!! Cala a boca!! - o interrompe, com urgência e revirando a cara - Eu lá quero saber das suas intimidades, pai?! Sai fora!! 

— Ora, eu só não quero que meu filho faça feio na hora de- 

“Ding-dong” 

Ranma foi salvo pelo gongo, ou melhor, a campainha. Genma se dispersa e vai atender a porta. 

— Ora ora, quem será? - ele faz uma cara maliciosa para o filho e se vai, saltitando. 

O garoto de trança fica sem entender, mas decide apenas ignorar seu pai e voltar a treinar, tentando esquecer toda a vergonha que estava sentindo. Era por essa invasão toda que ele nunca contava nada a seus pais, e para um adolescente, aquilo era o fim do mundo. 

Começou a chutar e socar o boneco com mais força, fingindo que aquele era seu pai lhe importunando com comentários desagradáveis. Fez tanto esforço que o boneco acabou se partindo no meio, parando só quando já estava todo suado e ofegante. 

“Velho idiota...”, pensou, enquanto arranca a própria camisa e joga no chão. 

— Oi – uma voz doce o chama e ele olha pra varanda. 

O coração de Ranma, que já estava acelerado pelo treino, agora estava a ponto de explodir. Seus olhos brilham, seu rosto fica ainda mais vermelho, e sua boca fica trêmula. 

— Akane? - indaga, muito surpreso ao vê-la. 

— Seu pai convidou Akane para passar a tarde conosco, filho – Nodoka surge na espreita da porta, sorria como nunca, Genma está ao lado dela com aquela mesma cara sugestiva de antes. Quando Ranma entende o que estava acontecendo, sente que vai explodir de tanta vergonha, e quer esganar seu pai mais do que nunca – Querida, se precisar de qualquer coisa, pode me chamar, okay? 

— Ah.. Tudo bem – Akane não era boba e percebeu que Ranma foi pego de surpresa, ficando tão tímida quanto ele – Obrigada, senhora Saotome. 

— Imagina, querida – ela dá meia volta e retorna para dentro da casa - Juízo, meninos! 

Antes de Genma ir junto com ela, faz um sinal de joinha pra Ranma, que torce o nariz e sente vontade de gritar um palavrão. Quanta inconveniência! Eles tinham mesmo que armar tudo aquilo sem contar pra ele? 

Bom, isso não importava agora, pois Akane estava bem ali à sua frente, muito bonita por sinal, e não queria que ela pensasse que ele não gostou da surpresa. Ainda que meio retraída, Akane adentra o quintal e se aproxima de Ranma. 

— Você tá treinando? 

— Eu tava – responde, enquanto abana a própria mão na testa de tanto calor – Eu achei que você ia treinar hoje. 

— Bom, eu ia, mas aí seu pai me ligou. 

— Hum... - ele faz beicinho - Não custava terem me avisado. 

— Tô incomodando? - rebate, apoiando as mãos na cintura. 

— Eu não disse isso... - revira o olhar com vergonha, pensando que disse besteira – Eu só não queria te receber assim. 

Ele se referia ao seu corpo todo suado e fedido por conta do treino, mas mal sabia ele que pra Akane vê-lo sem camisa, exibindo um abdômen sarado, com o rosto todo vermelho e ofegante, exalando tanta virilidade, era... uma bela vista. 

Ela o olha da cabeça aos pés, seus olhos fincam naquele tronco bem esculpido, e com muito esforço ela volta a olhá-lo nos olhos, sentindo o rosto quente. 

— Tu-... Tudo bem, não se preocupa com isso... - tenta acalmá-lo, sem conseguir evitar de olhar para o peitoral dele vez ou outra. 

— Argh, que calor... - ele resmunga, indo até uma cadeira no meio do quintal, onde ele deixou uma garrafa d’água. 

Ranma ergue o pescoço e bebe, Akane o observa como uma pintura, ver aquelas gotículas de água escorrendo da boca dele, passando pelo rosto, pescoço, até chegar no tronco definido parecia até impróprio de qualquer um vislumbrar. Ela tentava desviar o olhar ao máximo, mas era impossível. Seus hormônios latentes de adolescente não a permitiam. 

E quando ela pensa que não tem como piorar, Ranma abre a tampa da garrafa e despeja a água gelada sobre sua cabeça para se refrescar, parecendo uma daquelas cenas dignas de filme em que o personagem sensual fica em câmera lenta e o ambiente ganha um filtro cor-de-rosa cintilante. Seu corpo instantaneamente diminui e se transforma no de uma mulher, agora Akane estava sendo obrigada pelos seus olhos a se hipnotizar pela água que percorria aquele lindo corpo feminino, escorrendo pela pele macia, atravessando o vale dos seios, e depois pelo abdômen, que era definido mesmo na forma feminina dele. Como sempre, ele não se importava de aparecer sem camisa no corpo de mulher, e se para uns isso era uma grande dádiva, para Akane era um pesadelo, pois ela não conseguia entender o porquê de ela não conseguir parar de olhar pra aqueles seios grandes e bem esculpidos. 

Para a sorte dela, Ranma estava distraído, então nem percebeu a garota com os olhos vidrados nele, quase babando pela boca. Ele pega uma toalhinha que também estava em cima da cadeira e envolve em seu pescoço para se enxugar, e quando se volta para Akane, ela vira o rosto com muita rapidez, com medo que ele flagrasse a sua expressão. 

Ranma também estava um tanto tímido, não tanto quanto ela, mas busca uma maneira de quebrar o gelo. 

— Tá quente hoje, né? - ele comenta. 

— N-Nem me fala... - ela puxa a gola da própria camisa, ainda evitando olhar pra ele. 

— Pelo menos é bom pra treinar – Ranma olha para o boneco esparramado no chão e ri – Acho que eu tô aprendendo com você a fazer chacina de bonecos. 

Voltando a si, Akane olha para o boneco de treino todo dilacerado, Ranma sempre era o primeiro a encher o saco dela sobre todos os bonecos que ela já fuzilou com sua força bruta, e percebendo que aquele era o caso mais uma vez, ela faz uma cara emburrada. 

— Lá vai você me chamar de bruta. 

— Bruta? Imagina, só um pouco violenta – ele brinca, esperando que ela levasse pro lado esportivo, mas ele desmancha o sorriso quando a vê se retraindo. 

— Ah vai, eu tô tentando ser menos bruta... 

Ela disse aquilo com uma voz tão xôxa, e Ranma percebeu isso, um estalo percorre sua cabeça e ele volta aos mesmos questionamentos da noite passada. Cruza os braços, levanta uma sobrancelha e pergunta: 

— Qual é o problema em ser bruta? 

Akane olha para ele com mil interrogações em cima da sua cabeça. A resposta parecia óbvia, mas meio difícil de se pôr em palavras. No fundo ela pensava que por ela ser bruta, ela e Ranma acabavam brigando muito, logo, pra pôr seu plano em prática, ela precisava dar uma maneirada nisso. E também, parecia um senso comum de que garotas não deviam ser brutamontes que nem ela, Ranma sempre foi o primeiro a dizer isso. 

Ela desvia o olhar, joga uma mecha de cabelo para atrás da orelha, e faz uma pose meio desconsertada. 

— Ah... Bem... - ela busca as melhores palavras - Ninguém gosta de garotas brutas... 

Mais uma vez ela disse com uma voz tristonha, e aquilo partiu o coraçãozinho de Ranma, que já estava se sentindo culpado o suficiente pela possibilidade de ela estar reprimindo a própria personalidade para agradá-lo. Ele não queria isso. 

“É Ranma Saotome, você é um completo canalha...”, ele pensa consigo mesmo, lembrando de todas as vezes que a importunou sobre sua personalidade forte e provavelmente resultaram na cena que estamos vendo agora. 

Ranma coça a cabeça, examina Akane e suspira, pensando uma maneira de reverter tudo aquilo. E sem chegar em nenhuma conclusão melhor, diz, com uma voz desajeitada:  

— Eu até gosto... 

Akane olha para ele com os olhos arregalados e uma sobrancelha levantada. 

— Como é que é? Você? - pergunta, nem um pouco convencida - Até parece. 

— Ei, é sério... - ele tenta se defender, sabendo que aquilo seria difícil de comprar, ainda que no fundo estivesse falando a verdade – Sei lá... Err... Garotas com atitude são mais brutas mesmo – aquilo não estava indo muito bem, mas ele ao menos estava tentando – Eu acho... legal. 

Akane junta as sobrancelhas, muito confusa e até um pouco ofendida, afinal não gostava de ser chamada de bruta, mas olhando bem nos olhos de Ranma, parecia que ele estava tentando elogiá-la, ainda que de modo esquisito. Mas Ranma nunca disse palavras como aquela, então o choque era inevitável. 

Apesar que, só de vê-lo tentando, era uma cena um tanto engraçada. Ela cruza os braços e faz uma cara cínica. 

— Tá mentindo pra me consolar? - ela pergunta, zombando dele. 

— Nã-.. Não, Akane! É sério! - ele até perde um pouco a compostura, se convencendo de que era péssimo nisso – Acredita em mim! 

— Você sempre disse que detestava meninas brutas. 

— É, m-mas... - desvia o olhar, desejando nunca sequer ter tentado aquela investida – Um homem não pode mudar de ideia?! 

Ranma amaldiçoa todas as vezes que fez pouco caso da personalidade bruta de Akane, o que custava ser um pouco mais legal com ela e admitir, sobretudo pra si mesmo, que achava a personalidade forte dela um charme? Se não o tivesse feito, eles não estariam nessa situação agora, e ele não se sentiria tão babaca. 

— Hum.. - ela o examina mais de perto, o deixando tão vermelho quanto o cabelo - Então algum bicho te mordeu? 

— Quer parar com isso?! 

— Acho que você tá com febre... 

— Tá tirando uma com a minha cara?! - resmunga, fazendo-a rir. 

Embora tivesse quebrado o gelo, ele percebe que Akane ainda não está muito convencida daquilo. E ele queria que ela acreditasse. Precisava fazê-la acreditar. Se não ele nunca se perdoaria. 

Ele precisava pensar em alguma maneira de demonstrar que ela não precisava mudar seu jeito para agradá-lo, que gostava do seu jeitinho bruto e desajeitado, e que apesar de todas as coisas que já disse para provocá-la, ele não mudaria nada nela. E isso agora virou uma questão de honra. 

Uma luz lhe sobe à cabeça, e ele junta as sobrancelhas, fazendo uma pose confiante. 

— Ei, vem comigo – ele a chama, andando para o outro lado do quintal. 

— Hein? Pra quê? - pergunta, confusa. 

— Vamos treinar – ele sugere, se virando para ela de novo. 

— Hã?!? 

— Qual o problema? Você não queria treinar hoje? 

Ela fica sem saber o que responder. De fato, ela estava com bastante disposição para treinar, e pessoalmente era o seu passatempo preferido. Mas já que eles estavam inseridos nesse contexto, digamos, “romântico”, ela jamais pensou que ele ia sugerir uma coisa dessas. 

E de novo, ela não queria demonstrar suas facetas brutas perto dele, então ficou meio inquieta. 

— Tem... Tem certeza? - pergunta, retraída. 

— Tenho – responde, muito seguro - Você não quer? 

Ainda que insegura, ela não consegue resistir, até porque Ranma parecia bem animado com a proposta. 

— Tá bom... - ela diz, roubando um sorriso do rosto dele – Mas coloca uma camisa pelo menos – pede, corada, afinal ficou tendo o seu olhar fisgado por aquele par de peitos por uns bons minutos. 

Ele nem percebeu que ainda estava sem camisa, exibindo seus seios femininos pra fora só com uma toalha por cima deles em volta do seu pescoço. Obedece, e ambos entram na casa para que ele possa se trocar. 

Enquanto isso, bem perto dali, especificamente em cima do telhado da casa dos Saotome, Ryoga e Mousse estão sentados lado a lado, examinando de forma meticulosa cada passo do casal. Mousse estava bem animado com tudo aquilo, mas Ryoga parecia bem inquieto. 

— Não sei se chamar ela pra treinar foi a melhor opção - diz Mousse, tal qual um comentarista – O Saotome é realmente péssimo com romance. 

— Francamente, por que a gente tem que ficar aqui espionando eles?! - Ryoga reclama – Eu tô me sentindo um maníaco! 

— Ora, não é óbvio? - Mousse ajusta seus óculos - Esses dois são uma bomba relógio. Caso eles comecem a brigar, a gente tem que dar um jeito de interferir. 

— Ah, claro! Grande ideia! - responde, irônico - Então se eles começarem a brigar a gente vai casualmente pular do telhado e apartar a briga?! 

— Claro que não, meu caro – Mousse aproxima o rosto do dele, fazendo uma cara sugestiva – Nenhum de nós vai se meter onde não foi chamado. 

Ryoga fica ainda mais confuso, e aquela expressão de Mousse estava difícil de decifrar. O amazona abre uma bolsa que trouxe com ele, retirando dali uma garrafa d’água, e diz: 

— Mas o “P-chan” vai. 

— Como?!? 

— Óbvio - reafirma, sem pudor algum – Afinal, nada mais regulariza os ânimos de Akane Tendo tão bem quanto o seu amado porquinho. 

— Ah, era só o que faltava!! - Ryoga fica furioso, aumentando o tom de voz. 

— Shh!! Fale baixo! Quer que nos descubram?! 

— Pra início de conversa, eu nem queria tar aqui! Agora você quer que eu vire porco pra ajudar no seu plano doentio?! 

— Esse “plano doentio” foi ideia sua, lembra? - dispara, fazendo o maior se retrair – Você quer que esses dois fiquem juntos ou não? 

Aquela era uma pergunta muito complexa. A verdade é que a pior parte de ficar espionando os dois era justamente vê-los se darem bem, como um casal de verdade. A resposta mais direta era: não, ele não queria que os dois ficassem juntos. Mas era o necessário a ser feito para ajudar Akane. E talvez esquecê-la. 

Respirou fundo, e apenas aceitou o seu triste destino de pobre coitado que só tem como opção assistir quem ama com seu rival, e pior, estando de ressaca. 

— Tá, tá bom... - responde, soltando ar pela boca. 

— Ótimo - Mousse se estica para tentar ver algo pelas janelas da casa, procurando pelos noivos – Acha que eles vão demorar pra voltar? 

— Eu sei lá. 

— Dependendo, vamos ter que colocar você como um mini espião dentro da casa. 

— Eu mereço... 

Enquanto os dois otários discutiam a sua agenda de espionagem, uma outra espiã, por cima do telhado da casa ao lado, avistava Mousse e Ryoga como uma gata sorrateira. Reconhecendo onde estavam, ela fica enfurecida. 

— Aiya, mas essa ser casa de Ranma!! - resmunga, com muita raiva – O que esses dois aprontar pra cima do meu Ai Ren?! 

Ela podia muito bem chegar lá agora, acabar com a festa dos dois e dar um fim nessa palhaçada, mas Shampoo não era afobada, sempre calculava a hora certa de agir. Então optou por chegar mais perto silenciosamente e estudar o que estava acontecendo, tanto com a nova dupla dinâmica, quanto na casa de Ranma. 

 

—--

 

De volta ao quintal, e agora vestido, Ranma leva Akane para uma área um pouco mais aberta, sua casa não era bem uma academia como a dos Tendo, afinal Genma nunca se deu o trabalho de montar uma, já que seu filho herdaria junto com Akane. Mas até que era um quintal bem espaçoso e bom para treinos simples, sendo ali o lugar onde Ranma aprendeu suas primeiras técnicas de artes marciais quando era um bebê. 

Ranma estava empolgado, mas Akane meio inquieta. A última vez que bateu em Ranma foi há dois meses, e ela havia prometido para si mesma que aquilo não se repetiria, considerando que ela tinha que levar aquele noivado adiante e ser agressiva com Ranma apenas o afastava dela. Por mais que em muitos momentos ela tenha fantasiado poder descer a porrada nele e o colocado em seu devido lugar quando ele estava sendo babaca, ela aprendeu a controlar seus impulsos e se tornou muito resiliente quanto a isso. Mas agora Ranma estava ali, pedindo para que ela o golpeasse com toda a sua força, definitivamente ela não sabia como agir. 

O garoto de trança, agora garota, se arma em posição de defesa e faz uma cara provocativa. 

— Pode vir com tudo! - ele pede. 

Ela se retrai, sem saber muito bem o que fazer. Será que se ela batesse muito forte ele acharia ruim? Talvez começasse uma briga, como sempre. Melhor não arriscar. 

Por isso, Akane entrou em posição de ataque, fingiu ir com tudo, mas disparou um soco bem mixuruca que qualquer um conseguiria desviar. Ranma salta por cima dela, dando uma cambalhota no ar e pousando atrás de Akane. A menina continua tentando socá-lo, obviamente com a força muito calculada, e ao desviar de todos aqueles golpes, Ranma percebe que tem algo errado. 

— Vai Akane, é o melhor que consegue?! Me ataca com tudo!! 

— Eu atacando com tudo!! - afirma, tentando lhe dar um chute muitíssimo lento. Ranma abre espacate no ar e se equilibra em cima da perna dela. 

— Não, você não está!! 

Irritado, e aproveitando que estava na forma de garota, afinal ele não teria coragem de fazer isso como um homem, ele começa a revidar os golpes, óbvio que também de forma moderada, mas no seu caso era porque ele sabia muito bem o abismo de diferença entre a sua força e a de Akane. E apesar dos golpes mixurucas que ela deu, ela começa a desviar dos socos e chutes de Ranma com maestria. 

— Vamos, cadê aquela garota que tocava o terror no colégio?! A que nunca foi derrotada por nenhum daqueles brutamontes?! - ele começou a instigá-la enquanto alternava entre socos e chutes no ar, todos desviados pela menina que começa a ficar mexida por aquelas palavras - Não era você que nunca queria ser derrotada por um homem?! Cadê aquela determinação?!? 

— Ranma.. Ah!! - Ranma dispara os dois punhos simultaneamente na direção dela, Akane os segura um em cada mão com certa dificuldade. 

Enquanto ele joga todo o peso do seu corpo contra ela, quase a fazendo deslizar na terra e perder o equilíbrio, Ranma a encara bem no fundo dos olhos, buscando a fúria que ela sempre teve. 

— Cadê a Akane que conseguia me arremessar no ar como se fosse nada?! Cadê a Akane que nunca deixava barato quando eu te chamava de chata, violenta, bruta, insuportável e tábua sem graça?!? Cadê aquela força bruta, Akane?!? Cadê?!? CADÊ?!? 

— CALA A BOCA!! 

“É isso!”, ele pensa, enquanto Akane lhe dá uma rasteira com os pés e o faz se desequilibrar, posiciona seu corpo contra o dele e o arremessa no chão, fincando seu punho com tanta força que causou uma cratera na terra. Com ambos caídos e ofegantes, Ranma fica esparramado no chão, satisfeito por ter alcançado seu objetivo, já Akane ainda não tinha conseguido se recuperar do próprio golpe que deu, e que calou a boca do seu noivo. 

Após uns bons segundos se recompondo, ela se arrepende de imediato ao perceber que se deixou levar pelas emoções e soltou da jaula o monstrinho dos velhos hábitos, jogando Ranma contra o chão com muita força, e provavelmente o fazendo pensar mal dela. Mas para a sua grande surpresa, Ranma sorri, um sorriso muito doce e contente. 

— Essa é a Akane que eu conheço - ele diz, fazendo o coração dela, que já estava acelerado pela adrenalina, palpitar com ainda mais força - Eu tava com saudade da sua força bruta. 

— Eu... - ainda por cima dele, e com o punho fincado na grama bem ao lado de sua cabeça, ela começa a corar como uma garotinha – Eu pensei que você não gostasse... 

— Hunf... - ele alarga o sorriso, e se ergue para olhá-la bem nos olhos com os rostos mais próximos - Não é a primeira vez que você se engana sobre o que eu acho. 

Aquilo ecoou na mente dela como um mantra, sendo a validação que ela mais precisava durante todo esse tempo. Foram tantas as noites mal dormidas, sendo engolida por suas inseguranças pensando que Ranma não a suportava por coisas que ela não conseguia controlar sobre si mesma, chegando até a reprimir sua própria essência no intuito de conquistá-lo. Mal sabia ela que já havia o conquistado há muito tempo, sendo exatamente assim, uma menina desajeitada e de temperamento explosivo. 

O olhar de Ranma a penetrava e confortava. Apesar de todas as desavenças que a fizeram pensar que ele não gostava da sua força bruta, este era um raro momento em que Ranma estava sendo verdadeiramente sincero. 

“Não mude nunca”, era o que ele gostaria de dizer, mas seria esperar iniciativa demais daquele rapaz tão amador no aspecto romance, deixou que isso fosse lido apenas em seu olhar. E ela leu. E sorriu. 

Num clima surpreendentemente romântico, os noivos se ajustam e se sentam na grama um de frente para o outro, sorrindo feito bobos. Akane estava tremendamente lisonjeada, e Ranma tremendamente satisfeito, pois sente que conseguiu fazê-la entender a sua mensagem, retirando um grande peso de suas costas. Eles estavam ofegantes, ruborizados e meio pegajosos, foi quando a menina percebeu que se arrumou toda pra nada. 

— Ai, eu tô toda suada... - ela reclama. 

— Eu também... Acho que vou tomar um banho – ele diz, jogando sua trança para atrás do ombro - Você também quer? Eu posso ir no banheiro dos meus pais. 

— Ah... mas eu... não trouxe outra roupa. 

— Se quiser eu te empresto – ele oferece, e ela fica três vezes mais corada que antes. Para uma garota, usar as roupas largas de um rapaz e ser impregnada pelo cheiro dele era algo bastante íntimo, mas Ranma pareceu não se dar conta disso. 

— Err... Tá... Tá bem... - responde, muito encabulada. 

Ranma fica sem entender essa reação, mas não dá importância, se levanta e estende a mão para ela se levantar. Akane segura a delicada mãozinha dele, menor que a sua, e pega impulso para se levantar. Era engraçado como Ranma se transformava em uma garota tão miudinha (porém com os seios de um mulherão). 

Os dois caminham para dentro da casa lado a lado, deixando dois zés ruelas embasbacados no telhado, especialmente o ex homem pato de óculos. 

— Uau... - começa, mais uma vez agindo como um comentarista – Isso foi... surpreendente, no mínimo! 

Mousse começa a ficar muito animado com o desenrolar do encontro que ele mesmo arranjou, embora ele tivesse ficado um tanto preocupado quando Ranma começou a atiçar Akane para que ela o atacasse, quase transformou Ryoga em porco nessa hora para atirá-lo em cima deles, mas acabaram presenciando uma reviravolta surpreendente, vendo Ranma tirar leite de pedra ao transformar um treino em algo íntimo e quase romântico. Ficou muito nítido que os laços entre eles se estreitaram ainda mais depois daquilo. 

Mas se para Mousse aquilo estava sendo um deleite, para Ryoga estava sendo um tanto desconfortável. Afinal, por mais que estivesse ajudando a juntar os dois, ver Akane toda apaixonada por Ranma era... meio doloroso. 

— Posso ir embora agora? - ele pergunta, quase implorando. 

— Como é? O show mal começou! 

— Qual é cara, eles claramente estão se dando bem! - ele dizia aquilo com muita relutância. 

— É, mas podem começar a brigar a qualquer momento! Você sabe como eles são! 

— Depois daquilo?! Até parece! - Ryoga revira o rosto e torna a ficar cabisbaixo, um tanto melancólico, até reprimindo o tom da sua voz - Não viu o jeito que se olharam?... 

O tom depressivo de Ryoga calou o amazona, que ajustou seus óculos e analisou atentamente a expressão do rapaz de bandana. Ryoga olhava para baixo, a mente estava distante e a sua cara de enterro já dizia tudo, o que deixou Mousse muito curioso. 

O rapaz de óculos semicerra os olhos e inclina seu rosto para mais perto do de Ryoga, o puxando de volta para realidade e o deixando bem desconfortável. 

— Que é? - pergunta o menino porco rabugento. 

— Que curioso... - começa, alisando o queixo com o dedo indicador – Dadas as circunstâncias, eu pensei que você não gostasse mais da Akane Tendo. 

— C-Como é?!? 

— Mesmo tendo uma namorada... E se esforçando para juntar os dois... - Mousse faz uma cara feia e se inclina ainda mais, o julgando bem de perto - Você está com ciúmes, não está? 

Levado pelo impulso e a vergonha ao ser empurrado contra a parede, Ryoga puxa a gola da camisa do amazona e o encara no fundo dos olhos com um tom muito ameaçador, embora aquilo não tenha intimidado Mousse nem um pouco. 

— Tá sugerindo o quê, seu otário?! - rosna, numa voz cerrada – Que tipo de cara acha que eu sou?! 

— Não sei, me diz você - rebate, muito sarcástico e sem um pingo de medo – Que tipo de cara gosta de duas garotas ao mesmo tempo? 

— Tá me chamando de infiel?! 

— Na minha terra a gente chama de cafajeste – dispara, provocando a fúria do maior – Mas infiel também serve. 

A pálpebra de Ryoga começa a tremer, ainda que no fundo ele se sentisse exatamente como Mousse o descreveu, nenhum homem ouve todas as suas inseguranças sendo esfregadas na sua cara sem que queira limpar a sua honra. 

— Diga mais uma palavra e eu te mando de volta pra China num único murro!! 

— Ora vamos, se acalme – pede o menor, muito tranquilo e com uma cara cínica - Não é hora pra brigar. Estamos aqui pra evitar uma briga de acontecer, na verdade. 

— Eu vou embora! - ele ameaça, se levantando - Já fiquei tempo o suficiente aqui! 

— Deixa de ser teimoso, Ryoga! - Mousse puxa o tecido da calça dele, pedindo para que se sentasse –Se eles começarem a brigar e você não estiver aqui, já era! 

— Ah, é? - Ryoga cruza os braços e lança um olhar desdenhoso para o amazona – E me diga, o que raios poderia acontecer para fazer aqueles eles dois começarem a brigar?! 

— Shampoo não saber, me digam vocês. 

Uma terceira voz fisga a atenção dos rapazes num susto e eles olham imediatamente para trás, encontrando uma amazona muito furiosa de braços cruzados e batendo o pézinho na calha do telhado. Ryoga arregala os olhos e começa a suar frio, porém o efeito de desespero foi triplicado em Mousse. 

— S-Shampoo?!? - Mousse levanta num pulo. 

— Que cena linda – ela começa, fazendo uma voz cínica e uma cara ameaçadora - Mousse e Ryoga ajudar Ranma e Akane a ficar juntos bem debaixo do nariz de Shampoo. 

— O que ela tá fazendo aqui, Mousse?! - Ryoga não estava entendendo nada, mas sabia que boa coisa não era. 

— O-Olha Shampoo, e-eu posso explicar! - Mousse fica com o rabinho entre as pernas, mesmo que não tivesse nada pra dizer que o safasse dessa, ele ainda não tinha coragem de enfrentar Shampoo diretamente, era esse o efeito que ela tinha nele – E-Eu... Eu só tava... 

— Mousse sempre dar problemas pra Shampoo! Sempre ser inútil que só servir pra atrapalhar! - dispara, partindo o coração dele em mil pedaços e quase o fazendo chorar – Mas até você, Ryoga?! Por acaso não gostar de Akane?!? 

Ele sente um aperto no peito com essa pergunta, mas percebe que aquilo só iria de mal a pior, e com certeza Shampoo causaria problemas caso eles não fizessem alguma coisa. Depois da dura que ela deu, Mousse estava muito emocionalmente debilitado para tomar as rédeas da situação, então Ryoga olhou para um lado e para o outro, buscando ideias do que fazer. 

Mas quando volta a olhar para Shampoo, percebe que talvez fosse tarde demais, porque ela estava caminhando em sua direção. 

— Bom... não importar. 

De repente, após uma troca de olhares bastante afiada, ela começa a correr no telhado e passa no meio dos dois, saltando para baixo em seguida. 

— Shampoo acabar com isso agora mesmo!! 

— Droga!! - eles gritam, em coro. 

— Aiya, Ranmaaaa!! 

Enquanto Shampoo chamava por Ranma e adentrava a casa, os dois rapazes a seguem como uma sombra na tentativa de impedi-la. A amazona passa pela sala de estar, pisando em cima do controle e desligando a tv que Genma estava assistindo, quando ele pensa em reclamar, Ryoga atravessa o mesmo caminho e pisa em cima da comida dele. 

— Ei!! - ele berra para os dois, mas antes que pudesse continuar, Mousse vem logo em seguida e chuta o copo d’água que estava no chão sem querer, despejando água fria nele e o transformando em panda. Mousse se vai, deixando um panda muito desapontado na sala, que só optou por se conformar. 

— Ranmaaa, Shampoo vir ver vocêeee!! - ela chama, passando pelo corredor e entrando na cozinha. 

Ryoga tenta agarrá-la pela perna, mas acaba levando um chute na cara em resposta, sendo atirado na direção de Mousse como um strike. O amazona é o primeiro a se levantar do baque, seguindo a menina até a dispensa, lá, ela se vê encurralada, sem janelas e com Mousse logo na porta a cercando, mas ele não a intimidava nem um pouco. A garota corre em sua direção e salta para a luminária, pegando impulso, e assim dando uma cambalhota por cima da cabeça dele. Mas ela também aproveita o embalo para arrancar os óculos engarrafados que ele tinha de seu rosto. 

— Ai, droga!! - ele reclama, estando agora completamente cego – Volta aqui, Shampoo!! - ele chama, tateando as paredes sem ter a menor noção por onde andava. 

Ela obviamente não lhe dá atenção, deu meia volta até a cozinha e cruza com Ryoga ainda esparramado no chão, que num impulso, consegue puxá-la pelo pé e fazê-la cair. 

— Ah!! - ela grita ao colidir com o chão, acaba soltando os óculos de Mousse na hora da queda, olha furiosamente para Ryoga, que ainda segurava seu pé com firmeza, e lhe presenteia com um segundo chute na cara com esse mesmo pé - Porquinho malvado!! 

Ele continua a segurando bravamente, só depois do sexto chute consecutivo bem no seu nariz, ele acaba a soltando, Shampoo se levanta e volta para o corredor, Ryoga não perde tempo e a segue logo atrás, mas óbvio, acaba se perdendo. Não demorou nem meia volta no andar de baixo para a amazona perceber que os noivos só poderiam estar lá em cima, ela dá meia volta e corre em direção à escada, e quando está prestes a subir, dá de cara com Ryoga alguns degraus acima, que para a sorte dele, acabou se perdendo exatamente onde foi de encontro à garota. 

Eles trocam olhares matadouros, ela não estava disposta a dar meia volta, e ele muito menos a deixá-la passar. Shampoo olha para um vaso de flores, que estava logo atrás de Ryoga, e sorri maliciosamente. Dá uns passos para trás para pegar impulso, e começa a subir os degraus na direção dele a toda velocidade, ele tenta agarrá-la, mas ela era muito ágil. Assim como fez com Mousse, ela dá mais uma cambalhota no ar sobre o ombro dele, invertendo as posições, e sem perder tempo, pega o vazo de flores e atira toda a água que estava lá dentro na direção dele. 

 - Ai, nã-!! 

Ele nem tem a chance de reclamar, pois foi instantaneamente transformado em porco quando colidiu com aquele jato d’água. Assim, daquele tamanho e com aquele corpinho, ele estava totalmente indefeso. A amazona lhe mostra a língua e volta a subir as escadas, mas dessa vez com muito mais calma. Ela vai imediatamente ao quarto de Ranma, mas se surpreende ao encontrá-lo vazio, procura por de dentro do armário, debaixo da cama, e nada dos dois, o que começou a deixá-la muito impaciente.

Enquanto isso, o pequeno porquinho desceu as escadas e foi atrás do único que poderia impedi-la. Encontra Mousse na sala de estar todo desorientado falando com o panda que assistia televisão. 

— Por favor Shampoo, não cause problemas!! - ele implora enquanto abraçava o panda que assistia tv, muito indiferente com tudo aquilo – Entenda, é pelo nosso futuro!! 

Ryoga sentiu vontade de socá-lo com seus casquinhos de tão burro que ele era, quando estava sem os óculos, Mousse tinha a mesma utilidade de uma porta. Foi quando Ryoga olhou para os lados e encontrou os óculos engarrafados dele jogados no chão, deixados ali por Shampoo na hora em que ela caiu no chão. Tentando ser o mais depressa possível, Ryoga segura a haste dos óculos com sua boquinha e corre na direção de Mousse, que ouviu seus barulhinhos de porco e virou-se em sua direção. 

— Ryoga, é você?! - ele tentava encontrá-lo com os olhos semicerrados, quando de repente teve seus óculos sendo posicionados contra seus olhos com toda a força pela criaturinha – Ah, obrigado – ele agradece ao finalmente conseguir enxergar, tendo um Ryoga bem furioso na palma de suas mãos. Olha para o outro lado e vê que estava na verdade falando com o panda e não a garota, o que provocou seu desespero - Cadê a Shampoo?!? 

Sem conseguir dizer uma única palavra, obviamente, Ryoga apontou o seu focinho para cima, e assim, Mousse entende que precisa correr para o segundo andar, carregando Ryoga em seu ombro. Enquanto os dois idiotas perdiam tempo lá embaixo, Shampoo saiu do quarto de Ranma e já estava procurando pelo casal na suíte principal, olhou debaixo da cama, por dentro dos armários, até na pequena varandinha, e nenhum sinal deles. Foi quando ela ouviu um barulho de água escorrendo vindo direto do banheiro. 

Deu alguns passos naquela direção e encostou seu ouvido na porta, dando três batidas para ver se alguém respondia. 

— Mãe? É você? - ela escuta a voz masculina de Ranma e lambe os beiços, sorrindo maleficamente. 

— Shampoo chegar, meu Ai Ren – ela sussurra, bem baixinho, de modo que Ranma não pôde escutar. 

— Mãe? Velho? Tem alguém aí? - ele insiste ao não ter resposta nenhuma. 

Shampoo agarra a maçaneta, pronta para entrar e causar um escândalo, mas antes que pudesse girá-la, um jato d’água é arremessado em sua direção. 

— Aiy-!! 

Num ataque surpresa, seu corpo diminuiu e ficou completamente ensopado, mas pior de tudo, indefeso. Olha para trás e encontra Mousse com um vazo na mão e um porco sobre o seu ombro, ele a olhava com muita preocupação e medo, nunca antes na vida ousou tirar proveito da maldição dela para alguma coisa, sabia que se ele ousasse fazer isso, ela nunca o perdoaria. E isso estava claro no rosto endiabrado da gatinha, que rosnava para ele mostrando seus dentes afiados, mas percebendo a posição impotente em que estava, tenta bater em retirada. 

No entanto, assim que ela tentou correr, Mousse a agarra pela nuca e a levanta. Ele olha para a gata se debatendo em sua mão, tentando arranhá-lo e mordê-lo de todas as formas sem sucesso, e ele solta um ar cansado pela boca. 

— Me perdoe, Shampoo... - ele caminha para a varandinha do quarto, pronto para saltar para fora dali – Mas é pelo nosso futuro!! 

Enquanto ele fantasiava num futuro junto com Shampoo, ela estava apenas fantasiando com o momento em que fosse transformada de volta em humana para que pudesse cortar as partes íntimas dele com uma serra, assim como as amazonas faziam com seus inimigos homens.  

Mousse salta da varandinha e acaba parando no jardim, neste exato momento Ranma abre a porta do banheiro para dar uma espiada, todo ensaboado e de cabelo molhado, mas quando não encontra nada, volta para o seu banho dando de ombros. Lá embaixo, quando Mousse se vira, dá de cara com Nodoka, que o olha muito espantada, sem entender como aquele garoto carregando um gato e um porco simplesmente caiu do céu bem no seu jardim. O amazona fica sem jeito, tal qual o porco em seu ombro, que fica vermelho enquanto Mousse começa a coçar a cabeça com a mão livre. 

— O-Oi, senhora Saotome – ele gagueja – Tu-Tudo bem com a senhora?!? 

— Tu... Tudo, tudo sim... - ela pausa o que estava fazendo, no caso colocando as roupas no varal, e examina todo o percurso que ele fez – Como... Como você...? 

— A-Ah, sabe como é - ele ergue Shampoo, que ainda se debatia em sua mão, a exibindo - É que a minha gatinha fugiu e acabou entrando aqui! Sabe como são esses gatos, né? Há há há! 

— Aaahh... - ela faz uma expressão compreensiva, e ele suspira aliviado ao ver que ela acreditou. Nodoka se inclina um pouco para ver a gata mais de perto, e apesar de tanta algazarra, a Saotome mãe sorri para o bichinho – Que gatinha mais bonitinha! - em seguida, ela levanta um pouco e examina Ryoga no ombro dele – E que porquinho mais fofo! Todo comportadinho! 

Ela dá uma cutucadinha no focinho dele, e Ryoga fica tímido, todo corado. Ela finalmente volta a atenção para o garoto, sem deixar de sorrir. 

— Você é amigo do Ranma, não é? Não sabia que gostava tanto de animais. 

— Ah, há há... Pois é, eu tenho um moooonte de bichos – mente, e em seguida inclina o torso e faz pose de desculpas – Mil perdões pela confusão, senhora Saotome. Eu não pretendia invadir sua casa. 

— Imagina querido, o importante é que você recuperou a sua gatinha – ela o conforta, fazendo-o se reajustar - Venha nos visitar uma outra vez! Só não o convido para entrar porque... - ela dá uma piscadinha para ele e faz uma cara sugestiva – O Ranma já está com visita hoje. E acho que deveríamos dar privacidade a eles, sim? 

— Imagina, concordo totalmente – Mousse assente, muito simpático - Fica pra próxima então. 

— Humm.. - Nodoka começa a encarar a gatinha que se contorcia violentamente na mão do amazona. Shampoo, humilhada e ensopada, continuava se debatendo e tentando arranhar Mousse como se suas sete vidas dependessem disso, mas ele a segurava exatamente do modo em que os gatos ficavam totalmente impotentes – Ela está muito nervosa, né? 

— S-Sim... 

— Quer que eu ajude a acalmá-la? 

O garoto e o porco se olham, confusos. Como seria possível acalmar uma gatinha possessa daquelas? Ele apenas assentiu, afinal não fazia a menor ideia de como lidar com Shampoo naquele momento. Nodoka vai aproximando seu dedo indicador da gatinha, que até parou de se contorcer um pouco quando ela o fez, até que o dedo encostou em um lugar muito específico do peito pequenino, onde a mulher apertou e fez um movimento circular. 

De repente, a gata fechou os olhos e dormiu, deixando os rapazes espantados. 

— Q-Quê?!? - Mousse indaga – Como... Como a senhora...?!? 

— Esse é um nervo muito sensível nos gatos – ela explica, sorrindo gentilmente – É uma técnica que os samurais usavam para acalmar os seus bichinhos. Se tocar do jeitinho certo, eles dormem na hora. 

— Ah... Mas ela está bem, né?!? - pergunta, meio afobado. 

— Claro! Só vai dormir por algumas horas – responde, fazendo o garoto soltar um suspiro pesado. Era impressionante que Nodoka soubesse uma técnica como aquela, ela parecia mesmo uma mulher de muitos segredos – Precisam de mais alguma coisa? 

— Não, senhora – o amazona responde – Já ajudou muito. 

— Bom... Até mais, querido! 

Ela acena para o rapaz, que sai pela porta da frente junto com a gatinha no braço, agora sendo carregada como um bebê, e um porco no ombro. Agradeceram aos céus por não terem sido vistos nem por Ranma e nem por Akane, considerando o barulho que fizeram, era quase um milagre. Mousse estava sentindo uma mistura de alívio, medo e culpa pelo decorrer dos minutos. Já Ryoga, estava plenamente convencido que não queria passar mais nenhum minuto naquela casa. 

— Bem... vamos voltar ao posto! - Mousse diz, fazendo o porco se retrair de imediato. Mas para o azar de Ryoga, estava um tanto indefeso para tomar decisões, e o amazona, sabendo disso, olha para ele com uma cara sugestiva – Humm... Aproveitando que você já está assim... 

Percebendo a possível enrascada em que estava inserido, o porco tenta correr, mas Mousse o segura pela bandana amarela amarrada no seu corpinho, e salta junto com ele e a gata para o telhado novamente. Caminha na calha até um canto específico da casa, onde se pendura, fica de ponta cabeça, e joga o porco pela janela do que parecia ser o quarto de Ranma. Se dando conta da situação, o porco furioso tenta voltar por onde entrou, mas Mousse fecha a janela na cara dele, colidindo com seu focinho no vidro. 

— Fica aí e garanta que eles não briguem! - disse, com o som meio abafado por conta do vidro entre eles, e volta a se sentar tranquilamente no telhado com a gatinha adormecida em seu colo, aproveitando uma rara oportunidade de lhe fazer um cafuné. 

Ryoga começa a arranhar a janela inutilmente, jurando aos céus que acabaria com a raça do amazona quando voltasse a ser humano. Mas de repente, ele ouve passos se aproximando do quarto, e corre para debaixo da cama. Ele só consegue ver os pés de quem entrou, fazendo todo o silêncio possível para não ser descoberto. Era Ranma, depois de um banho quente e vestindo uma roupa limpa, olhando desconfiado para um lado e para o outro, tinha jurado ter ouvido um barulho vindo dali, mas quando não encontra nada, volta para o corredor e começa a descer as escadas muito afobado. 

— Caramba, que barulheira foi essa?!? - ele se perguntava enquanto chegava perto da sala de estar. 

Shampoo, Mousse e Ryoga viraram a casa de cabeça para baixo, parecia até que tinha passado um furacão, seria praticamente impossível que Ranma não tivesse escutado nada durante o seu banho. O garoto vai até seu pai, que assistia tv tranquilamente ignorando toda aquela bagunça, e pergunta. 

— Velho, o que aconteceu aqui?! 

O panda não mudou o seu semblante despreocupado e apenas estendeu uma placa que dizia “Sei lá, tava vendo o jogo”

— Sério isso? - Ranma resmunga, incrédulo com a indiferença do seu pai, mas não tinha como esperar outra coisa vinda de Genma – Eu escutei de lá de cima e você não viu nada?! 

“Tenho mais o que fazer” dizia a outra placa que o panda mostrou, e a virando do lado avesso, tinha escrito “E você também! Não deixe a sua noiva sozinha lá em cima!”

Percebendo que aquilo não levaria a lugar nenhum, Ranma opta por ignorar toda aquela esquisitice e fingir demência, talvez fosse melhor pra sua sanidade dentro daquela casa de malucos. Provavelmente seu pai e sua mãe brigaram mais uma vez e ela saiu correndo atrás dele com a katana, coisa que acontece pelo menos uma vez por semana, e quanto menos ele se envolvia, menos ele se estressava. 

Ranma sobe as escadas e vai até seu quarto, onde senta no tapete de centro e encosta os ombros na beirada da cama, fazendo o porquinho que se escondia lá embaixo se encolher todo. Ele olha para o teto e fica balançando a perna, ansioso pelo momento em que Akane passasse por aquela porta. 

A menina ainda não tinha saído do banheiro, Ranma tomou banho na suíte de seus pais e lhe concedeu o seu próprio banheiro que ficava no corredor. Era estranho se banhar lá, usando o mesmo sabonete que Ranma provavelmente usa todos os dias, desviando o olhar da cesta de roupas sujas cheia de cuecas, passando o xampu que tinha o cheirinho do cabelo dele. Ela sai da pequena banheira, bem menor que a da sua casa, e se enxuga. Olha para as roupas dobradas que deixou em cima de uma mesinha, no caso as que Ranma lhe entregou para vestir, especificamente aquela blusa laranja que tinha uma gravata borboleta vermelha junto a uma calça despojada azul escura, Ranma adorava aquela peça de roupa. Akane não consegue evitar e antes de vestir a blusa, dá uma fungada, sentindo o cheiro de Ranma no tecido, aquilo inevitavelmente lhe arranca um sorriso e faz seu coração bater mais forte. Ela adorava o cheiro de Ranma. Nem podia acreditar que estava realmente vestindo as roupas dele, óbvio que ficou um pouco largo, mas não tanto quanto ficava nele quando se transformava em garota. 

Akane sai do banheiro e vai até o quarto de Ranma, se deparando com o garoto que, para a sua surpresa, estava de cabelo solto e recém lavado, era muito raro ver Ranma sem sua trança, já que ele pegou trauma por conta daquele fatídico episódio com seu cabelo crescendo ininterruptamente. Ele a observa passando pela porta e fica vermelho ao vê-la usando suas roupas. 

— Que milagre, você de cabelo solto – ela comenta, se sentando no tapete e ficando de frente para ele. O coração do porquinho debaixo da cama vai à mil quando escuta a voz dela. 

— É que eu lavei – ele pega uma mexa do próprio cabelo negro. 

— Humm... 

Eles ficam um momento em silêncio, pois aos poucos a ficha foi caindo de que estavam sozinhos no quarto de Ranma, e mesmo com a porta entreaberta, o clima era palpável de tão intenso, até mesmo para o porquinho escondido que só queria um buraco para se enfiar. Das vezes que Ranma foi ao quarto de Akane e ficaram sozinhos ele sempre acabava sendo arremessado pela janela, pois a menina acabava ficando muito envergonhada e se excedendo, entrar no quarto de uma garota tendia a significar segundas intenções. Mas a garota entrar no quarto de um garoto não tinha o mesmo impacto, embora ainda fosse muito íntimo e constrangedor. 

Por mais que já tivessem chegado a um certo nível de intimidade, eles ainda eram muito tímidos e desajeitados com esse tipo de coisa, por isso a situação acabou ficando um pouco desconfortável. 

— Hum... - ela tenta pensar em qualquer coisa pra quebrar o gelo – Quando eu tava no banho eu ouvi um barulho, você também? 

— Sim – ele responde com uma cara emburrada. 

— Aconteceu alguma coisa? 

— Sim, mas prefiro nem saber – resmunga, já assumindo aquela teoria da briga como verdade – Deve ter sido coisa dos velhos. 

— Sei... 

O porquinho solta um suspiro de grande alívio ao ouvir aquilo. 

Silêncio reina mais uma vez, estavam muito nervosos, sair juntos era uma coisa, ficar sozinhos num ambiente fechado era outra. Ainda que contrariado, Ryoga observava a reação deles, e não restava dúvidas de que eles estavam parecendo um casal de verdade, o que apertou seu coraçãozinho pequeno. 

— A roupa ficou boa? - Ranma pergunta, tentando puxar assunto. 

— Uhum. Só a blusa ficou um pouco folgada. 

— Imagino o porquê - sem que percebesse, ele deixa seus antigos reflexos escaparem, se arrependendo logo em seguida quando vê a expressão dela ficando feia. 

— Que quer dizer com isso?! - ela reclama, e ele começa a suar. 

— E-Eu só... Err... - percebendo a furada em que se meteu, ele começa a gaguejar - É-É que essa blusa é meio folgada mesmo, eu não tava falando do seu peito pequeno não. 

Notando que apenas piorou a situação, ele sente vontade de socar o próprio rosto, assim como Ryoga, que estava se segurando para não morder a mão de Ranma bem à sua frente. 

— Ah, então meu peito é pequeno?! - ela fica ainda mais brava, e Ranma era péssimo lidando com pressão. 

— Deixa de ser teimosa, Akane! Eu já disse que não é isso! - se defende, alterando um pouco o tom de voz. 

— Por que você sempre faz isso?! - ela aumenta o tom da voz junto com ele - Você sempre dá um jeito de falar que meu corpo é sem graça! Que meu peito é pequeno! Que minhas coxas são grossas! Você precisa mesmo ser desagradável assim?! 

O clima foi esquentando, e se lembrando do porquê foi arremessado ali, Ryoga começa a olhar para um lado e para o outro, procurando qualquer alternativa que seja para apartar a briga sem que seja percebido, afinal Akane não se importaria de vê-lo sair por debaixo da cama do nada, mas Ranma lhe encheria de perguntas. Foi quando, de relance, acabou batendo o olho num fone de ouvido que se arrastava no chão, e parecia estar interligado a um objeto em cima da cômoda. 

— Ai, como você é chata! - Ranma dispara, perdendo a paciência mesmo que tenha sido ele a provocar tudo aquilo – Quantas vezes vou ter que falar que n-?! 

De repente, eles ouvem um barulho vindo da cômoda e olham naquela direção de imediato. O seu walkman, que estava de pé, agora acabou caindo deitado, isso aconteceu pois o porquinho puxou o fone de ouvido com muita rapidez e voltou a se esconder por debaixo da cama. 

— O... O que foi isso?! - Ranma pergunta, atônito. 

— Ah... Acho que foi o vento – ela responde, também um pouco assustada. Ele olha para a janela fechada e acha tudo aquilo duplamente esquisito, mas no fundo ficou feliz por aquilo ter desviado a atenção do que estavam discutindo. Akane se aproxima da cômoda e se surpreende com o que fez o barulho – Isso é um walkman?? 

— Ah... - Ranma olha para o objeto, ainda meio desorientado – É, ganhei de natal. 

— Que legal! Posso pegar? - ela fica animada, e ele se alivia por ela ter acalmado os ânimos. 

— Pega aí. 

Akane segura o walkman e traz para si junto com o fone de ouvido, o porquinho escondido solta um ar de alívio pela boca por ter conseguido contornar a situação sem ser descoberto. 

— Isso aqui é caríssimo - ela comenta enquanto analisava o aparelho. Akane tinha uma mão tão pesada quanto um tijolo, por isso ele ficou receoso ao vê-la segurando seu precioso walkman bem despreocupadamente, mas não ousaria dizer nada, afinal não queria começar mais uma briga a chamando de desajeitada. Porém, quando ela abriu o botão para ver qual fita tinha dentro, ele entrou em pânico - Ei, isso é Madonna?!? 

— E-Ei, não é meu, tá?! É da minha mãe!! - não, não era da mãe dele, Ranma amava Madonna mais do que gostaria, e para um machão lutador de artes marciais, ele preferia que aquilo fosse mantido em segredo. 

Ele fica vermelho quando vê a cara cínica que ela faz, expressando não estar nem um pouco convencida da história que ele inventou. 

— Sei – ela ri, fazendo-o emburrar a cara vermelha – Por que a gente não escuta um pouco? 

Ele fica surpreso com o pedido. Sua mente envergonhada diz que não, mas seu coração diz que sim. Ranma tinha medo de não parecer másculo o bastante na frente de Akane, pois quando ele ouvia Madonna parecia que uma força maior tomava conta de seu corpo e ele performava de uma maneira que ele jamais imaginou que conseguiria. Era um prazer secreto que ele preferia levar para o túmulo junto com ele. 

Mas o olhar convidativo de Akane estava irresistível, então ele se comprometeu a não mexer um único músculo na frente dela. 

— Tá, pode ser – ele toma o walkman da mão dela, ajusta a fita e põe pra rodar – Mas fique sabendo que eu prefiro rock. 

— Claro, claro – ela finge acreditar. 

Os dois se deitam no tapete, lado a lado, perto o suficiente para cada um pegar um lado do fone de ouvido. Começa a tocar “Open Your Heart”, e o que se iniciou apenas com murmúrios tímidos de acordo com o ritmo da música, se sucedeu a um canto bem baixinho de Akane, que sabia essa música de cor. 

Ranma a observa cantar e eles trocam olhares, ela sorri para ele enquanto canta, uma letra que dizia algo sobre se entregar inteiramente para uma pessoa, quebrar suas barreiras e dar uma chance para o amor. Estavam tão inertes que sequer perceberam que aquilo lhes caía como uma luva. Ele sorri para ela de volta, exibindo suas covinhas encantadoras, e desiste de resistir, começando a cantar junto com ela, ambos com um inglês muito desajeitado, mas claramente se divertindo. 

Ele estava no céu, deitado ao lado de Akane no seu próprio quarto enquanto cantavam sua música favorita, seus tons de voz foram aumentando à medida que ficavam mais animados, tão animados que até começaram a se remexer por cima do tapete. De forma contida, óbvio, porém ainda muito empolgado. Enquanto cantam e mexem o corpo, acidentalmente acabam encostando seus pés descalços. Se fosse um tempo atrás, eles se afastariam de imediato, mas permaneceram assim mesmo, se cutucando com os dedos mindinhos de forma muito afetuosa. 

Ryoga, que era muito sensível, percebeu todo o clima harmonioso e romântico que se instaurou, e agora mais do que nunca queria sair correndo daquele quarto. Mas precisava ficar ali, observando sua amada e seu rival se tornarem um só com aquela música, cada vez mais, mais e mais próximos de parecerem, oficialmente, um par. Talvez ele merecesse tudo aquilo, talvez ver os dois de camarote fosse o castigo divino por todos os seus pecados. E não podia fazer nenhum barulho, não podia ser visto, só podia assistir. E chorar. 

Aquele seria, sem sombra de dúvida, um dia inesquecível para Ranma, e ele queria que nunca acabasse, queria se enfurnar naquele quarto com ela pra sempre e fingir que nada mais no mundo existe. E assim como a música dizia, os noivos estavam abrindo seu coração um para o outro mais e mais. 

Ele, Akane, seu walkman, e uma fita da Madonna. Era tudo o que ele precisava. 

 

—--

 

Acabou escurecendo e Akane ficou para o jantar, Nodoka teve de arrumar toda aquela bagunça deixada pelos invasores, mas logo em seguida fez um yakisoba para todos. Depois de um dia cheio de emoções, suor, Madonna, e um delicioso jantar, Akane agradece a hospitalidade, pega as suas roupas suadas e se prepara para voltar pra casa. 

Ranma a acompanha até o portão, e eles ficam sozinhos mais uma vez. Ele adoraria que as horas ficassem mais longas para que passassem mais tempo juntos, mas o tempo voava quando estava perto dela, ainda mais quando se divertiam assim. 

— Tem certeza que não quer que eu te deixe em casa? - ele pergunta, preocupado - Tá meio tarde. 

— Tá tudo bem, Ranma – ela assegura, sorrindo – Eu posso ir sozinha. 

— Hum... - ele fica meio incomodado – Mas e se aparecer algum tarado? 

— Bom... - ela exibe o seu punho cerrado e faz uma pose confiante - Aí eu acabo com a vida dele se ele tentar alguma coisa. 

Dito isso, ele ri e acaba ficando mais tranquilo. Realmente, com a força bruta de Akane, não havia com o que se preocupar. 

— Realmente, do que é que eu tô falando? - ele diz, rindo com ela. Ele vira o rosto de lado e olha para cima, contemplando uma linda lua cheia – O céu tá bonito hoje, né? 

Ela olha para o céu, reparando não só a lua como também as estrelas que davam mais as caras perto do verão. Mas depois o seu olhar volta a ser fisgado por Ranma, que ainda estava hipnotizado pela lua, ela fita o seu rosto de veludo, seus olhos brilhantes e o seu semblante de fascinação. A brisa lhe toca o rosto e faz aquele belo cabelo solto dançar com o vento, Ranma tinha madeixas longas que pareciam muito sedosas, era de tirar a concentração de qualquer um. E era incrível como ele era bonito, não era atoa que todas o queriam, e quando ficava sereno dessa forma, e ainda com seu longo cabelo solto, parecia um príncipe. 

Akane sente o seu rosto quente e sorri, rebobinando na sua cabeça o ótimo momento que tiveram juntos durante o dia, em especial quando ele elogiou sua força bruta, aquilo foi tremendamente importante para ela. A vontade que sentia de abraçá-lo a cada vez que lembrava disso era imensa, e estava tão hipnotizada por ele naquele momento que sentiu que estava a um passo de seguir seus impulsos. 

— Bom... muito obrigada por hoje, Ranma – ela diz, docemente, mas ele ainda estava vidrado na lua – Da próxima vez você vai lá em casa. 

Ela não o abraçou. Foi ainda mais ousada. 

Uma força sobre-humana toma posse do corpo de Akane, sem que ela pudesse ter qualquer tipo de raciocínio, seus pés andam na direção dele e se inclinam quando está a um palmo de distância, seus lábios encostam a bochecha macia do garoto, lhe dando um beijinho. Um movimento tão simples, embora, responsável por duas grandes explosões mentais que aconteceram simultaneamente. 

Quando Akane percebe o que fez, sem nem acreditar que foi capaz disso, recua três passos pra trás e faz uma cara assustada. Ranma leva uns dois segundos para raciocinar o que acaba de acontecer, e quando o faz, olha para Akane com os olhos arregalados, a boca trêmula e as bochechas muito vermelhas. 

Um beijo no rosto era, sem sombra de dúvidas, uma iniciativa muito grande para dois manés como eles, e ela sequer calculou aquilo, então obviamente ficou sem ter o que dizer. 

— E-Eu... Err... - violentamente corada e sem chão, ainda desacreditada do que fez, ela se vira e começa a andar muito rápido, quase correndo, sem coragem de sequer olhar para ele uma última vez – Tchau!!! 

Ela bate em retirada sem olhar para trás, pousa suas mãos nas bochechas quentes e começa a se perguntar repetidamente “O que é que eu fiz?! O que é que eu fiz?! O que é que eu fiz?!”

Ranma fica paralisado onde estava, a observando ir embora sem mudar aquela expressão de espanto acompanhada de um coração muito acelerado e pensamentos desconexos. Quando Akane some de sua vista, um largo sorriso involuntário se abre em seu rosto e ele começa a saltar de alegria. 

— Isso!! - comemora consigo mesmo, rindo e dançando, sem se importar se alguém o visse – Isso!! Isso!! Isso!!! 

Aquilo o marcaria pelo resto da noite, talvez o resto da semana, talvez o resto da vida. Se ele pudesse pedir alguma coisa aos deuses, seria por mais um beijo de Akane. Ele sonharia com aqueles lábios quentinhos que encostaram sua bochecha, com certeza.  

Será que sua mãe estava mesmo certa? Será que Akane estava... apaixonada por ele? Seria bom demais pra ser verdade, mas depois daquele beijo, ele se permitiu sonhar. 

Com um semblante eufórico e ainda cantarolando, Ranma adentra sua casa, deixando dois manés do lado de fora. Um deles estava por entre as moitas do quintal, Ryoga foi até a cozinha no momento em que todos foram jantar e se transformou em homem, tentou escapar pela porta da frente mas Ranma e Akane foram para a entrada bem naquela hora, então ele foi obrigado não só a se esconder nos arbustos como também observar de camarote o grand finale. Ver aquele beijo foi, sem sombra de dúvidas, algo muito doloroso de se assistir, e ele sequer conseguia julgar a reação de Ranma, sabendo que ele ficaria exatamente da mesma forma. No fundo, ele daria tudo por um beijo de Akane também. 

Prestes a se debulhar em lágrimas, Ryoga olha para cima e encontra o outro mané, sentado no telhado com uma gata deitada em suas pernas, sorrindo muito satisfeito. 

Eeeeee PONTO pra Akane Tendo!!! - Mousse estala o dedo, brincando consigo mesmo enquanto acariciava as costas da gata sonolenta em seu colo – Um beijo na bochecha, quem iria imaginar?!? Esse plano tá uma moleza!! 

Aproveita que o amazona está distraído, salta para o telhado e lhe dá um cascudo bem dado na cabeça. 

— Ai!! Por que fez isso?! - Mousse indaga, alisando o galo que Ryoga fez. 

— Essa foi por me prender lá dentro!! - rosna, furioso. 

— Ah vamos, não foi tão ruim. 

— Foi uma tortura!! Tem ideia do que é ver a garota que você...?!... Que você... - ele pensa duas vezes antes de continuar a sua reclamação, mais uma vez dando de cara com seus conflitos internos. Ryoga sacode a cabeça e volta a si, fazendo cara feia pro amazona – Argh! Se fizer isso de novo eu acabo com a sua vida, tá me ouvindo?! 

— Tá bem, tá bem – responde, bastante despreocupado enquanto alisava a gatinha ininterruptamente – Agora precisamos pensar no próximo passo. 

— Pense você sozinho – Ryoga se vira de costas para ele – Eu vou pra casa. 

— E você tem casa por acaso? - Mousse levanta uma sobrancelha. 

— Claro que tenho! - ele rosna – Eu só... não sei onde fica! Mas eu tenho sim! 

— Humm... - Mousse não parece acreditar muito naquilo – Bom, tente não sair de Nerima, precisamos ficar de olho nesses dois. 

— Você manda em mim agora, é?! 

— Argh! Como você é difícil! Eu pensei que a gente tivesse uma aliança! 

— Eu já tô bastante arrependido de ter te dado corda! 

Enquanto os dois discutiam, Shampoo começa a abrir seus olhinhos de gato, e quando recupera sua consciência, percebe não só que já é de noite, como também está no colo do maldito amazona. E o canalha ainda tinha a coragem de fazer cafuné nas costas dela. 

Com ele distraído, a gata morde a mão que a alisava com muita força, quase tirando sangue. 

— Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! - ele grita, tentando sacudir a mão para a gata lhe soltar, e quando ela o faz, dá uma série de arranhões na sua cara – Para com isso, Shampoo!! 

Depois, a gata dá um pulo até o rosto de Ryoga e faz o mesmo com ele. 

— Ai! Ai! Ai! Tira isso de mim!! - Ryoga berra, mas ela só para ao deixar a cara dele toda ensanguentada. 

Quando satisfeita de ter descontado sua raiva, a gata pula de novo, desta vez para mais longe deles. Rosna, mostrando seus dentinhos afiados, e sai correndo, deixando os dois rapazes com o rosto ardendo. 

— Que garota maluca!! - Ryoga reclama, vendo-a partir com uma expressão furiosa. 

— Ela vai me matar... - Mousse choraminga, com muito medo do que seria dele quando chegasse em casa. 

Longe do campo de vista deles, a gatinha vai até a janela de Ranma na esperança de ao menos poder arranhar Akane também, mas se depara com a janela fechada, e apenas Ranma do lado de dentro, cantando e dançando, batendo aquele lindo cabelo solto com seu walkman no ouvido. 

Ela não precisava ser uma gênia para entender que, pela forma como ele dançava e ria com tanta emoção, era porque estava mais feliz do que nunca, provavelmente porque sua tarde com Akane foi um sucesso. O seu remexer eufórico, seu sorriso bobo, e olhar apaixonado falavam por si só. Ranma dançava para extravasar a explosão de sentimentos que acontecia no seu coração, sua mente estava exclusivamente na menina que selou um beijo no seu rosto, ele podia jurar que até agora conseguia sentir o quentinho da boca dela. E ele mal podia esperar pelo momento de retribuir. 

Diante da alegria do homem que ela amava, sabendo que era por causa de outra garota, os olhos da gatinha se encheram de lágrimas, seu coraçãozinho apertou, e ela se foi, não aguentando mais ver um segundo sequer daquela cena.  

Ela perdeu. Ela sabe que perdeu. 

 

—--

 

Mais tarde, por volta de meia noite, Ukyo estava deitada em sua cama após um dia cheio de trabalho, olhando para o teto com a mente longe dali, especificamente em Ranma e Akane. Especialmente Akane. Desde a noite anterior, quando descobriu o segredo dela, Ukyo passou a se martirizar de todas as formas. 

Sentia-se a pior pessoa do mundo por ter mirabolado todo um plano para separá-la de Ranma, até usando o coitado do Ryoga para isso, quando na verdade toda aquela mudança de comportamento forçada era mais um desespero de salvar a própria família. Como ela pôde pensar tão mal de Akane? Como ela pôde pensar em interferir em algo tão sério? Apesar de tantas tramoias que a mesma já fez pra tentar separar os dois, Ukyo ainda era um ser humano com sentimentos e princípios. 

E agora ela enfrentava um grande dilema. Dentro de si, sentia muito forte a vontade de lutar pelo seu noivo, já estava há anos lutando por isso, e nunca foi uma pessoa que entregava os pontos pra ninguém. Adorava Ranma, queria que ele fosse seu marido, foi o que ela sonhou durante toda a sua vida. Mas agora... Entregá-lo para Akane parecia uma questão de honra.  

Não sabia o que fazer, travava uma batalha interna muito confusa e cheio de sentimentos conflitantes, mal conseguiu dormir na noite anterior, e provavelmente não conseguiria dormir agora, por mais que estivesse exausta. Suspirou, virou-se de lado na cama e afogou a cara no travesseiro. Foi quando ouviu batidas na porta. 

— Pode entrar – ela diz, deixando que Konatsu abrisse a porta. 

— Senhorita Ukyo – ela diz, com uma cara preocupada, e vestindo uma camisola – Tem... Tem uma pessoa lá embaixo querendo lhe ver. 

— Quê? 

Ukyo se levanta num pulo, muito curiosa e inquieta. Quem seria a essa hora da noite? E pela cara de Konatsu, não parecia coisa boa. Ela vai até o corredor, desce as escadas, e chega na entrada que dividia a casa da pizzaria, abre o portão com urgência e adentra o restaurante. 

Dá alguns passos e avista uma figura de cabelos roxos logo na entrada da pizzaria, só podia ser uma pessoa, e aquilo a fez perder a paciência de imediato. 

— Fala sério, Shampoo! Isso é hora de aparecer?! - rosna, se aproximando da mais baixa. 

A amazona estava cabisbaixa, e quando Ukyo se aproxima, ela ergue o rosto, revelando olhos marejados e uma cara que traduzia tristeza, quase desespero, o que fez a pizzaiola dar um passo pra trás de tamanha surpresa. 

— Ukyo... - de repente, a menina fica de joelhos para a pizzaiola, e junta as duas mãos - Por favor, Shampoo implorar! 

— Q-Quê?!? - Ukyo se choca ainda mais com a cena, era algo muito não característico de Shampoo se rebaixar dessa forma – Do.. Do que você tá falando?!? 

— Nós precisar unir forças logo, Ukyo!! Shampoo não ter chance nenhuma sozinha!! 

Depois da terrível experiência que foi perceber a impotência em separar Ranma de Akane, considerando não só a mudança de comportamento dela, como também a aliança de Mousse e Ryoga para proteger os dois, somado à cena que presenciou de Ranma dançando e cantando com um olhar perdidamente apaixonado, Shampoo se viu sem escolhas. Já sabia que defender o seu noivado seria um trabalho difícil, mas agora parecia impossível. E Ukyo, que tanto quanto ela quer o fim daquele relacionamento, era a única pessoa que poderia ajudá-la. 

Ukyo, por sua vez, demorou um pouco para processar, e quando finalmente entendeu que ela falava da tal aliança feminina, só conseguiu suspirar em decepção. Já estava muito desgastada no que se dizia em respeito à Ranma depois de ter descoberto o que não devia, e se Shampoo apareceu a essa hora da noite pra vir chorar as pitangas, provavelmente aconteceu mais um episódio dessa confusão toda. 

— Olha Shampoo, eu já disse que não quero nada disso – retruca, com muita impaciência - E sinceramente, eu acho que você devia esquecer ess- 

— Ukyo não entender! Ser muito pior do que parece! - a interrompe – Agora até Ryoga querer juntar os dois! Ele fez aliança com Mousse e os dois não me deixar atrapalhar Ranma e Akane! 

— O Mousse também, é? Essa é nova. 

— Shampoo precisar da ajuda de Ukyo! E Ukyo da de Shampoo! Se não Akane vai roubar Ranma pra sempre! - com a nova bagagens de informações que Ukyo tinha, ela fica incomodada com a forma da qual Shampoo fala de Akane, como se fosse uma espécie de bandida ardilosa, exatamente como ela a enxergava uns dias atrás - Hoje eles passar a tarde juntinhos na casa de Ranma, todo românticos... Shampoo tentar impedir, mas Mousse e Ryoga não deixar! E Shampoo ver Ranma todo feliz e apaixonado quando Akane ir embora! 

— Quê?!? 

De repente, o incômodo dela some num piscar de olhos. Ainda que tivesse passado o dia todo repensando suas atitudes, Ukyo não era de ferro, e se tinha uma coisa que a tirava do sério era ter a prova de como Ranma se derretia por Akane ainda que a mesma não fizesse nenhum esforço, enquanto Ukyo era bastante dedicada para conquistá-lo. Se sentia, acima de tudo, desrespeitada. 

— Ai, aquele cretino!! - Ukyo resmunga para si mesma, olhando para as suas mãos e imaginando esganar seu noivo com elas – Ele nunca, NUNCA me chamou pra ir na casa dele!! Eu!! A amiga de infância dele!! A quem ele conhece há mais tempo!! - a pizzaiola parecia um pouco fora de si, reclamava consigo mesma sem se importar com o fato de Shampoo estar logo ali a observando sem entender nada – Eu aposto como a Akane nem precisou fazer nada e ele já se entregou todo!! Enquanto eu, a idiota aqui, tô há anos dando pizza pra ele de graça e ele não me dá um pingo de atenção!! - Shampoo, ainda de joelhos, até pensa em interromper o monólogo, mas Ukyo continua rosnando sem parar - Tá, tudo bem!! A pobrezinha da Akane pode até estar passando por um momento difícil!! Aiiii, mas COMO isso me irrita!! 

— Momento difícil? 

De repente, Ukyo é arremessada de volta para a realidade e percebe a besteira que cometeu. Olha para a amazona, que a olhava com os olhos bem penetrantes e cheios de dúvida, e não consegue pensar em nenhuma maneira de remediar o que disse. Ukyo solta ar pela boca, arrodeia uma mesa e se senta, ainda de frente para Shampoo, fazendo uma cara cansada. 

— Olha Shampoo... Err... – diz, cabisbaixa, Shampoo levanta uma sobrancelha - É mais complicado do que você pensa... 

A amazona, esperta como era, percebe que tem algo errado. Se levanta, caminha até a mesa em que Ukyo estava, e se senta de frente para ela, inclina seu corpo em sua direção e faz uma cara incisiva. 

— Por que Ukyo dizer isso? 

A pizzaiola percebe que abriu uma brecha maior que o necessário, se arrependendo imediatamente, sabendo que a amazona não daria o braço a torcer. 

— Argh... Eu não devia ter dito isso... - ela encosta a testa em suas mãos, seus cotovelos estavam apoiados na mesa – Esquece o que eu falei, vai... 

— Não! Ukyo saber de algo que Shampoo não sabe! - insiste, sem diminuir a distância entre elas. 

Ukyo se sente num beco sem saída, acabou falando mais do que o necessário, e agora Shampoo lhe seguiria até os confins do inferno para que contasse a verdade. Não estava com cabeça para inventar uma mentira, mas ao mesmo tempo tinha muito medo de abrir o jogo e Shampoo se manter completamente insensível, como sempre foi. 

Ela começa a se martirizar mais ainda dentro de si, sentindo que se atirou de um precipício, e a queda seria imensa. Shampoo não desgrudava os olhos dela, esperando uma resposta, e quanto mais Ukyo demorava, mais certeza ela tinha de que a pizzaiola sabia de alguma coisa. 

Dadas as circunstâncias, e o grande desejo interno que sentia de desabafar com alguém que fosse minimamente entendê-la, afinal sempre foram farinha do mesmo saco, Ukyo se vê com poucas opções. 

— Okay... - Ukyo se rende, mas faz uma cara ameaçadora - Shampoo... Eu vou te contar... Mas dependendo do que você faça, saiba que eu vou fazer da sua vida um inferno! Eu me junto à Mousse e Ryoga se for preciso! Mas não vou deixar você fazer nenhuma maldade, está entendendo?!? 

Shampoo fica perplexa, nunca viu Ukyo falar tão sério em toda sua vida, sobretudo sugerir se juntar ao time adversário para puni-la, caso fosse necessário. Percebendo a sua posição, a amazona fica pianinho. 

— Aiya... 

 

—--

 

Um pouco longe dali, Akane estava sem conseguir dormir, revirava na cama pra lá e pra cá, perguntando ininterruptamente para si mesma como ela teve coragem de dar um beijo no rosto de Ranma. Nunca antes ela foi capaz de abaixar tanto a sua guarda e fazer algo tão direto, isso serve pra qualquer pessoa, agora imagine Ranma. Ela sequer entendeu como aconteceu, seu corpo apenas se mexeu sozinho, e a cara que ele fez depois ficou gravada na sua mente. Ele parecia tão confuso, mas ao mesmo tempo, não pareceu achar ruim. Muito pelo contrário. 

Estava morrendo de vergonha, entretanto, não parava de sorrir e sentir seu coração dançar dentro de si. Ela olha para o lado e avista a roupa que Ranma lhe emprestou, e que ela acabou levando para casa consigo, em cima da cômoda. Sem que conseguisse evitar, ela se senta na cama e pega a blusa laranja, olhando para ela atentamente como se fosse o bem mais precioso, não resiste e acaba dando mais uma fungada, sentindo o cheiro de Ranma, e sendo levada para as suas lembranças mais uma vez. Deitou a cabeça no travesseiro e manteve a camisa na ponta do seu nariz, a segurando firme com as duas mãos. 

Por mais que Akane não quisesse admitir, ela queria mais do que um simples beijo na bochecha, queria se impregnar com aquele cheiro num abraço apertado, queria senti-lo mais de perto por bastante tempo, queria calar aquele sorriso cínico com sua boca e se sentir uma só com ele. Quem sabe ela o fizesse, um dia. Será que esse dia estava próximo? Será que ela poderia se permitir sonhar com esse dia? Afinal, mais uma barreira foi quebrada com esse beijo no rosto, e ela mal podia esperar para o que mais essa força sobre-humana seria capaz de conduzi-la. 

Plano? Que plano? Aquilo passava longe de ser uma prioridade na sua cabeça agora, se ela antes tentava se convencer a todo momento que a academia era o único e exclusivo motivo de estar se aproximando de Ranma, agora aquilo passava longe dos seus pensamentos focados apenas no rapaz e como ele fazia ela se sentir nas nuvens. Só conseguia se deliciar com as lembranças daquele dia que foi tão bom. 

Naquele momento, ela apenas se permitiu sonhar e sorrir. Pensar em Ranma. Sonhar com Ranma. Ranma. 

Ranma. 

Ranma... 

“Ai, Ranma...” 

 

—--

 

O silêncio reina na pizzaria preenchida por apenas duas garotas, uma com cara de enterro, e outra com cara de quem viu um fantasma. 

— Aiya... 

Shampoo solta um murmúrio, era tudo o que conseguia dizer ao ouvir aquela história escabrosa. Ukyo, ainda que com muito medo de ter tomado a pior das decisões, sentiu-se aliviada ao botar aquilo pra fora. 

— Mas... Isso... Ser... 

— Horrível, eu sei – Ukyo completa, ambas cabisbaixas. 

— Ai não... - pelo tom de voz de Shampoo, Ukyo fica um pouco mais aliviada, talvez ela não fosse tão insensível assim – Coitadinha da Akane... 

Agora o que Shampoo sentia era relativamente parecido ao que Ukyo sentia, ambas julgaram Akane terrivelmente mal, a tratando como um mero obstáculo, quando na verdade era só uma garota tentando ajudar sua família. Ukyo se sentia muito mal consigo mesma, se interpretando como a vilã da história. Shampoo tinha sentimentos mais conflitantes, afinal ela foi criada num ambiente onde o lema era “cada um por si”, e nunca mediu esforços para tirar vantagem de qualquer situação, mas apesar disso, ela ainda tinha um coração, e em algum lugar dele ela ficou com pena de Akane. 

— Shampoo conhecer o Conselho das Artes Marciais. Ser muito poderoso lá na China – conta, em tom de melancolia – Shampoo já ver várias histórias como essa... Tantas famílias perder academia, casa, bens, tudo por conta do Conselho... 

— Bom... Essa é a história - Ukyo apoia as bochechas no rosto, sem mudar a cara de enterro – Foi por isso que a Akane mudou de repente. 

— O Ranma saber disso tudo?? 

— Não... Aparentemente ela não quer que ele se sinta responsável nessa história. 

A soma desse detalhe fez com que as duas garotas se sentissem ainda pior, considerando o combo de atitudes louváveis que Akane estava tomando. 

— Aiya... - a amazona choraminga. 

As duas ficam em silêncio mais uma vez, sendo engolidas por seus conflitos internos e surtos de culpa. Sentiam pena de Akane, a admiravam pelo que estava fazendo, mas ao mesmo tempo... Não queriam que aquilo se concretizassem, e isso as colocava numa posição péssima. 

Eram noivas de Ranma tanto quanto Akane, sempre se sentiram no direito de interferir na relação dos dois como bem entendessem, mas agora havia uma questão de princípios as puxando para o precipício. 

— Não ser justo... - Shampoo começa a murmurar, quase definhando num choro – Shampoo amar Ranma... Ele ser noivo de Shampoo... 

Ainda que discordasse da última parte, Ukyo compreende exatamente como ela se sentia, então resguardou sua bronca e se solidarizou com os sentimentos da amazona. 

— Eu amo o Ranma desde que a gente era criança... - a pizzaiola também se permite desabafar – Quando eu soube que a gente ia se casar, eu fiquei tão feliz... Mesmo depois, com tudo o que aconteceu, eu ainda... 

Elas finalmente trocam olhares, e encontram conforto entre duas pessoas que se entendiam perfeitamente. No fundo Ukyo gostaria de ser mais como Ryoga, que consegue abrir mão dos próprios sentimentos por um bem maior sem pestanejar, mas ela não conseguia. Ela era mais como Shampoo, imperfeita, teimosa, irreverente. No fim, ainda que não quisessem admitir, as duas tinham muita coisa em comum. 

— O que Ukyo vai fazer? - a amazona corta o silêncio. 

— Eu... não sei... - confessa, com o peito apertado – O que você vai fazer? 

Shampoo morde o lábio inferior, pela primeira vez na vida ela não sabia o que fazer, só sabia de uma coisa. 

— Shampoo não querer desistir de Ranma... - ela diz aquilo com muita firmeza, porém inquietação, o que toma totalmente a atenção da mais alta – Mas... Aí Akane e família dela perder tudo... 

— É... - Ukyo se compadece mais ainda – Se ao menos houvesse alguma maneira de ajudar Akane... 

— Sem ela casar com Ranma... 

— É... 

E foi aí que uma luz se acendeu na mente mirabolante de Shampoo, ela arregala os olhos e muda aquela expressão depreciativa. Se ergue de tal forma que quase se levanta da cadeira e começa a gesticular com as mãos. 

— Talvez... - começa, Ukyo olha para ela e fica confusa ao vê-la mudar o semblante tão de repente – Talvez haver maneira... 

— Do que você...? 

— Ukyo! O que Akane precisar fazer é casar com um herdeiro de academia de artes marciais, certo?? 

— Err... - Ukyo se retrai, sem entender muito bem o que estava acontecendo, sobretudo com essa urgência tão súbita na fala da amazona – Sim, é isso mesmo. Por isso ela é noiva do Ranma. 

— Mas é claro! Por que não pensar nisso logo?! - diz para si mesma num tom quase que animado, como se tivesse tido uma ideia brilhante – A regra dizer que Akane precisar casar com um herdeiro! Não Ranma, especificamente! 

Aos poucos, Ukyo começa a entender o que se passava na cabecinha perversa de Shampoo. 

— Então tá dizendo que... 

— Sim, Ukyo! - Shampoo apoia as mãos na mesa e se inclina, ficando bem próxima ao rosto da maior - Nós arrumar outro herdeiro pra ser noivo de Akane! 

— Eu não acredito... 

— Ah Ukyo, ser tão óbvio! - diz, bem animada – Akane resolver problema da família e nós ficar com Ranma! Todos feliz! 

— Agora você fala “nós”, né? 

— Aiya! Por que Ukyo ser tão teimosa?! - Shampoo fica emburrada com a relutância da pizzaiola. 

— Vou te dizer porquê! - começa, em tom de represália - Eu sabia que não devia ter te contado nada! Você sempre inventa algum plano mirabolante pra sair por cima!  

— Ukyo falar como se fosse diferente! - rebate, mas a pizzaiola não se retrai. 

— Pois é, mas tudo tem limite!  

— Aiya! Então quer dizer que Ukyo não se importar com Ranma casar com Akane, ser isso?! 

Ukyo engole seco. Ela se importava sim, e muito, por isso se sentia tão culpada. Já estava tão atordoada com tudo aquilo, e a forma como Shampoo mirabolava planos ardilosos, ainda que naquelas condições, estava começando a mexer com seus sentimentos. 

— Ao menos você tem ideia de como iria arranjar um outro herdeiro?! 

— Mas ser evidente! - a amazona começa a sua defesa - Bisavó saber de tudo! Com certeza ter algum catálogo de academias de artes marciais e seus herdeiros! Nós só precisar descobrir quais estar solteiros! 

— Você fala como se fosse tão fácil... - Ukyo desdenha dela, sua paciência estava por um triz. 

— Não ser fácil, Shampoo nunca dizer isso! – a amazona faz uma cara de choro, o que fez Ukyo arregalar os olhos e ter sua atenção totalmente roubada – Mas... Ser muito mais difícil pra Shampoo entregar o homem que ama! Shampoo não quer desistir de Ranma! - Ukyo se arrepia, se encontrando naquelas palavras ditas com tanta emoção - Akane precisar de ajuda e Shampoo ajudar! Mas Ranma ainda ser noivo de Shampoo! E Shampoo lutar por ele!! 

Uma cena digna de novela, mas o que dizer desses adolescentes apaixonados? Eles são tão dramáticos, e pra eles tudo é o fim do mundo. Ukyo, sendo alguém de idade e temperamento parecido, nunca imaginou se sentir inspirada pelas palavras de Shampoo, alguém que ela sempre detestou. 

Algo lhe arrebata a mente, e Ukyo mais uma vez se lembra de todos esses anos que lutou por Ranma, não importa o quanto a batalha já parecesse perdida. Todas essas coisas que ela teve de se submeter para chamar a atenção dele, todas as artimanhas para separá-lo de Akane, mas óbvio, sem que houvessem consequências muito graves. Agora, Shampoo ofereceu uma possibilidade de amenizar as consequências para todos, e em algum lugar no seu coraçãozinho desesperado pela mínima chance de ter Ranma para si, aquilo começou a fazer um pouco de sentido. 

Os olhos de Ukyo ficam marejados, e uma vontade muito grande de lutar por Ranma também cresce dentro dela. 

— Você... Acha mesmo que dá pra encontrar esse outro herdeiro? - pergunta, meio esperançosa. 

 - Shampoo acredita muito! - afirma, muito confiante – Ser como faziam anos atrás... As academias procurar herdeiros para juntar seus nomes, então existir catálogos de casamentos arranjados. 

— Faz sentido... - e fazia mesmo, aquela era uma prática existente mesmo para pessoas comuns – E bem... Não precisa ser a Akane, né?... Se me lembro bem, uma das irmãs dela também podem. 

— Sim! Akane não precisar casar com desconhecido – ela complementa - Irmã mais velha de Akane ser muito tradicional e boazinha! Ela com certeza aceitar! 

— É... É isso! 

Agora já não tinha mais o que fazer, as duas garotas sorriam uma para a outra com ânimo no olhar, suas mentes estavam conectadas e já arrumaram todas as desculpas possíveis para não se sentirem seres humanos péssimos. Ainda que tudo aquilo fosse muito questionável, era mais forte do que elas. Foram tantos anos lutando pelo que consideravam seu que agora não poderia ser diferente. 

Elas só estavam esquecendo uma coisa: o que Akane queria? 

Se elas enchiam tanto a boca para falar que queriam ajudar Akane, o óbvio seria que esse detalhe fosse levado em conta. Mas não é como se elas tivessem dado importância pra isso alguma vez na vida. Eram mesmo farinha do mesmo saco. 

— Então... Ukyo topar? 

Shampoo faz uma cara manhosa, muito parecida com aquela que fez quando propôs a aliança pela primeira vez. Ukyo, ainda que relutante, estava achando tudo aquilo tentador demais para recusar. Encontrou uma “solução” para o seu problema, mas de fato, ela não conseguiria fazer isso sozinha. E sabendo dos seus inimigos, eles agora estariam em números iguais. 

— Só...! - Ukyo levanta o dedo indicador e faz uma pausa, tentando estabelecer muito bem as suas condições - Se nós realmente encontrarmos esse herdeiro! Não vou me envolver em nada que prejudique a Akane! 

— Claro que não, Ukyo! - Shampoo garante, selando um juramento - Nós impedir que ela case com Ranma, mas antes nós ajudar ela a salvar família! 

— Perfeito. 

Quem visse de fora ficaria espantado com tanta cara de pau, elas realmente arrumaram uma maneira de justificar suas artimanhas sem que se sentissem culpadas com isso. Impressionante a habilidade de persuasão que o ser humano tem para contornar o próprio egoísmo. Enquanto elas fingiam esbanjar solidariedade, no fundo estavam festejando, pois finalmente pensaram numa maneira de lutar pelo seu amado, esvaziando toda e qualquer sensação de que eram pessoas horríveis. 

Shampoo apoia o cotovelo na mesa e estende a mão para Ukyo, pedindo pela segunda vez para que ela apertasse, sempre com um sorriso no rosto. 

— Aliança feminina? - a amazona pergunta. 

Ukyo a olha nos olhos, ela sabia dos riscos, mas também dos ganhos. Sentia-se louca, completamente desmiolada, mas acima de tudo, desesperada o suficiente para aceitar. Queria Ranma. Queria tê-lo. Ele é seu noivo desde que eram crianças. Não queria entregá-lo de bandeja para outra pessoa. 

E se Shampoo fosse a passagem para esse desejo se realizar, ainda que não confiasse nela, Ukyo agarraria a oportunidade com a mesma firmeza que agarrou a mão dela com a sua. 

— É... pode ser. 

Houve uma troca de sorrisos determinados e olhares flamejantes entre as duas garotas que acabaram de selar um tratado de guerra. Ranma e Akane mal podiam imaginar a batalha que estava acontecendo bem debaixo de seus narizes, uns a seu favor, e outras muito bem decididas a acabar com aquele noivado de uma vez por todas, prontas para contra-atacar. 

E ninguém estava disposto a perder. 


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Notas finais do capítulo

Qual música vocês acham que o Ranma estava escutando no quarto?
Me: Like a virgin
Entenderam agora porque demorou pra sair? kkkkkkk
Talvez o 6 demore ainda mais pois ele vai ser meio difícil de escrever, digamos que teremos uma reviravolta hehe
Té mais!!



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