Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 26
Odette com dois T's




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Odette emanava uma aura de morte, mas não parecia estar morta. Ela possuía uma vivacidade que costumava pertencer somente aos vivos, repleta de contornos físicos e presença. Parecia como qualquer outra mulher no mundo. À medida que ela caminhava conosco, mais eu sentia a diferença entre nós duas e mais a desconfiança me tomava. Era difícil definir o que ela queria comigo e, principalmente, com Daniel.

 

— Odette. — Daniel disse em dado momento. — Por que eu posso ver você?

 

— Ah, eu sou mais forte que a maioria das outras almas. Posso tocar nas coisas e me fazer visível quando eu quiser. — ela voltou seus olhos elétricos diretamente para mim. — A pergunta que não quer calar é porque você pode ver ela. Ela é... um pouco mais fraca que os espíritos comuns. É um médium ou qualquer coisa assim?

 

— Não. Eu só consigo ver ela.

 

— Ora, isso cheira a assunto mal resolvido. — quando ela sorriu, não notei o deboche que eu esperava. Havia, na verdade, um certo toque de empatia em sua expressão.

 

— Estamos tentando resolver. — Daniel disse. — É por isso que estamos aqui. Viemos procurar o túmulo da Nim.

 

Odette deu uma parada brusca.

 

— Pera, você não sabe onde está enterrada?

 

Anuí com um gesto de cabeça.

 

— Pobrezinha! Eu não podia imaginar que você era um daqueles fantasmas que se perdem.

 

— Estamos tentando descobrir qual é o nome dela para ver o que podemos fazer depois. — Daniel disse com tristeza. — Eu tinha esperança de que se eu a trouxesse aqui ela poderia... Sei lá, sentir qual é o túmulo dela e a gente pudesse descobrir alguma coisa.

 

— Compreendo. Porém, acredito que a Nim não esteja enterrada aqui.

 

— Por quê? — finalmente perguntei.

 

— Eu estou aqui há muito tempo, mas nunca vi você. — ela disse. — Isso, entretanto, não significa muito. Se você estivesse enterrada aqui, teria sentido só de pisar nesse lugar. Seu túmulo é como um ímã que te atrai constantemente para ele. Quando eu saio do cemitério, consigo sentir o meu me chamando só de ficar na região.

 

Olhei ao redor, buscando o sentimento de empuxo que Odette tinha descrito. Foquei meus olhos nas árvores que despontavam entre os túmulos, visualizei as lápides e o vento soprando as folhas caídas no chão. Não havia nada lá.

 

— Acho que eu não sinto nada de diferente.

 

— Talvez não seja aqui. — ela disse. — Você se lembra como era o cemitério em que você esteve?

 

Quando eu pensava nisso, percebia que eu tinha mais uma sensação do que uma memória. Havia um peso horrível em meu peito, como se a solidão e a tristeza tivessem se unido para formar algo pior. Percebi que haviam lampejos vagos de lápides mal cuidadas e espíritos tristes no fundo da minha mente, mas eu não conseguia me lembrar do nome de ninguém que pudesse ter estado lá.

 

Daniel e Odette esperavam ansiosamente por uma resposta.

 

— Não faço ideia. — admiti. — Mas era um lugar bem ruim.

 

— Posso imaginar que sim. — Odette disse. Tínhamos voltado a caminhar. — Esse lugar é melhor do que a maioria. Viver aqui é como morar em um museu a céu aberto.

 

— Você está aqui há muito tempo? — Daniel perguntou.

 

Ela deu um sorrisinho envergonhado e adorável.

 

— Mais do que eu gostaria de admitir.

 

— Foi esse lugar que te fez mais forte?

 

— Não. — eu e ela dissemos em uníssono.

 

— Aquele tanto de flores cobrindo o túmulo dela... — continuei.

 

— Exato. — Odette concordou. — São dos meus fãs.

 

— Isso explica porque você parece tanto uma estrela do rock. — Daniel disse. — Você era famosa!

 

— Mais ou menos. — ela sorriu outra vez. — Fiquei mais famosa depois que eu morri.

 

Fizemos uma pausa sob uma árvore especialmente frondosa para que Odette contasse sua história.

 

— Há uns anos atrás, uma banda famosa veio visitar o nosso país para fazer uma série de shows. — ela apontou para a blusa que vestia. — Carnival Energy. — ela explicou quando notou que nós não conseguíamos ler o nome da banda.

 

— Essa é uma daquelas trágicas histórias de fãs que morrem esmagados pela multidão? — Daniel perguntou com um misto de humor e pesar respeitoso.

 

— Nada tão simples. — Odette continuou. — Por alguma razão, a banda fez um show na nossa cidade. Não é muito comum, vocês sabem. Eles geralmente preferem São Paulo e Rio de Janeiro. Mesmo assim, eles ficaram e gostaram tanto daqui que estenderam a estadia por uns dias a mais. Num domingo, eles se juntaram aos turistas que vêm aqui fazer uma visita guiada pelo cemitério, e o vocalista, um sujeito chamado Gerard von DeVal, tirou uma foto de pé, bem em cima do meu túmulo.

 

Ela olhou para cada um de nós antes de continuar.

 

— Acontece que aquela foto virou capa do álbum que eles lançaram no ano seguinte e acabou se tornando uma das imagens mais icônicas da época. Acontece também que os membros da banda voltaram aqui muitas vezes depois disso. Eles nem chegaram a fazer shows na maioria das vezes, mas estavam sempre voltando a esse cemitério. Os fãs começaram a fazer especulações, mas nada tinha muita força até a mídia divulgar a história de que Gerard tinha namorado uma garota que morreu tragicamente quando os dois eram bem jovens.

 

— Atribuíram a história a você. — eu disse.

 

— Claro. — ela confirmou. — Começaram a vazar novas fotos de Gerard visitando o meu túmulo. Tentaram descobrir qual era meu nome, mas eu já estava morta há tanto tempo naquela época que a inscrição havia se apagado. Os tabloides e os fãs só falavam da mulher misteriosa, e a Carnival Energy aproveitou para lançar seu single mais famoso até os dias de hoje: Tears for Odette.

 

— Você é essa Odette? — Daniel perguntou, chocado.

 

— Parece que agora eu sou. — Odette riu. — É óbvio que esse nunca foi o meu nome, mas os fãs não tinham como saber. Duvido, inclusive, que esse tenha sido o nome da garota real. Apesar disso, Gerard e sua banda surfaram na onda, e não demorou muito até que os fãs começassem a me trazer flores e a cantar o hino de amor que ele teoricamente tinha feito para mim. O vai e vem deles me fortaleceu, e aos poucos eu fui me tornando um espírito poderoso. De tempos em tempos, alguém conseguia me ver, e por causa disso começaram a dizer que eu ainda estava aqui, esperando Gerard vir me encontrar.

 

— E você realmente começou a esperar por ele? — perguntei.

 

— Sim. Houve uma época em que eu realmente estive meio apaixonadinha por ele e ficava torcendo para o vento trazer um jornal com o seu rosto estampado. — ela tornou a rir. — Mas isso era besteira. Nós jamais tínhamos nos conhecido em vida e jamais íamos nos conhecer na morte. Olha que os fãs tentaram nos juntar! Quando Gerard von DeVal finalmente morreu, houve uma espécie de abaixo-assinado para que ele fosse enterrado ao meu lado. Por sorte, a mãe dele conseguiu impedir a coisa toda e o enterrou na Inglaterra, na mesma cidade onde ele havia nascido. Depois disso, é claro, a história ficou ainda mais trágica. Gerard jamais ia conseguir ficar com sua amada, nem mesmo na morte. Por causa disso, os fãs comovidos vêm até hoje ao meu túmulo. Eles deixam flores, cartas e cantam aquela canção. Jamais me cansei dela. Acho que é minha música favorita em todo mundo, afinal ela me tornou quem eu sou. Sou eternamente grata a Gerard von DeVal e a sua mentira.

 

— Ainda bem que o cemitério jamais contou quem você era! — eu disse. Havia um requinte de bom humor na minha voz. Eu já não estava mais com raiva dela.

 

— Ainda bem! Imagina se tivessem descoberto? — Odette riu. — Na verdade, eu era um homem quando estava viva. Pertenci a uma família muito rica e teria sido o herdeiro natural se a tuberculose não tivesse me levado. Naquela época, não tinha muito tempo que essa cidade tinha sido construída. Meu irmão assumiu os negócios da família, mas tinha tanto talento administrativo quanto um pato. Depois que ele morreu, meu túmulo ficou abandonado por muitos anos. A Carnival Energy me resgatou e me ressignificou. Hoje eu sou a pessoa que eu sempre deveria ter sido por causa deles.

 

— Acho que você é o primeiro caso de transsexualidade no reino dos fantasmas da história! — Daniel disse.

 

— Não mesmo. — Odette disse. — Esse tipo de coisa pertence à nossa alma. Ela sempre vai ser aquilo que nós realmente somos, mesmo que nosso corpo ou o mundo não nos acompanhem.

 

— Você está perfeitamente certa. — eu disse.

 

— E agora que você sabe disso, deve manter a esperança. — Odette envolveu minhas mãos com gentileza e olhou no fundo dos meus olhos. — A resposta para encontrar quem você é está aí dentro. Jamais nos perdemos de nós mesmos, mesmo que pareça. Mesmo que o mundo todo tenha esquecido de você, em algum lugar, você ainda sabe quem você é.

 

Senti meus olhos ardendo. A vontade de chorar havia me tomado de um jeito terrível. Como eu poderia explicar que as coisas não funcionavam assim para mim? Eu já havia tentado tanto... Como explicar o quanto eu tinha me perdido quando aqueles olhos azuis me olhavam com tanta expectativa?

 

Naquele momento, senti uma conexão com Odette jamais tinha sentido com outra pessoa morta. Ela era como eu: havia se perdido de si mesma e precisou levar uma sacudida das pessoas ao seu redor para acordar. Ela me fazia crer que ainda havia esperança, e eu odiava ter esperança. Doía muito quando a decepção chegava.

 

— Err... — Daniel titubeou, sem graça. — É uma história e tanto, Odette.

 

— Acho que deveríamos continuar caminhando. — eu disse. — Ainda podemos encontrar alguma pista.

 

— Claro. — Daniel concordou, aliviado

 

— Vem comigo. Eu tive uma ideia! — Odette disse. — Na parte mais antiga do cemitério existe alguém que talvez possa nos ajudar.


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