Enquanto sua sombra vem escrita por Natália Kalim


Capítulo 25
Cemitério do Bonfim




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O sol sempre parecia nascer junto com o sorriso de Daniel. Mais uma vez, senti que o mundo ganhava cor quando eu o vi adentrar a sala no começo da manhã, com uma expressão de contentamento e uma pilha de folhas de papel em uma das mãos.

 

— Hoje nós vamos sair. — ele anunciou.

 

— A onde você quer ir? — eu estava sorrindo junto com ele. Não era comum que Daniel quisesse ir para qualquer lugar além do supermercado.

 

— Ao cemitério! — respondeu de maneira vitoriosa.

 

A minha expressão azedou imediatamente. Ao notar a decepção no meu rosto, Daniel sentou-se do meu lado e depositou os papéis no braço do sofá.

 

— Vamos, Nim, não faça essa cara. — ele juntou as mãos. — Eu tive uma ideia muito boa e eu aposto que você vai adorar ouvir.

 

— Pois já estou te ouvindo.

 

Ele respirou fundo antes de continuar.

 

— Pelo que eu soube, o corpo físico é o que nos ancora a realidade material.

 

— Correto.

 

Até aí, não havia nada de novo sob o sol.

 

— Então... Isso quer dizer que, mesmo que você esteja morta, pode existir um pedacinho de você por aí que esteja te mantendo vinculada a esse mundo. Além disso, eu adoraria dar uma olhada no seu túmulo. Seu nome vai estar lá. Sua data de nascimento. O lugar ao qual você pertencia!

 

— Até certo ponto você tem razão. — concordei de má vontade. — Mas existe uma grande possibilidade do meu túmulo não existir mais. Meus ossos já devem ter virado pó ou sido incinerados.

 

Daniel assentiu.

 

— Isso se a sua família não tiver te cremado e espalhado as cinzas em alguma cachoeira idiota ou, sei lá, na BR-040.

 

— Eu duvido muito disso. Tenho a sensação de que minha família não tinha muito dinheiro. Até onde eu sei, um jazigo permanente é bem caro, mas uma cremação pode ser mais cara ainda.

 

— Você lembrou mais alguma coisa sobre eles?

 

— Não. — vasculhei minha mente rapidamente, mas não havia nada lá. — Acho difícil esquecer da sua própria classe social. Ela é algo quase inato, a que nos submetemos todos os dias enquanto estamos vivos.

 

— Falou e disse, Karl Marx. — ele sorriu. — Nim, você não tem vontade de encontrar seu túmulo?

 

Me remexi com impaciência.

 

— Não é isso.

 

— O que é então?

 

— Cemitérios são péssimos.

 

— Mas eles não tipo o point número um de quem bateu as botas?

 

— Justamente por isso! Eu não gostaria de pisar em um novamente nem se eu estivesse...

 

— Morta. — Daniel finalizou com um sorriso malicioso.

 

Comprimi os lábios para evitar que uma risada me escapasse diante do absurdo daquela frase.

 

— Nim, eu entendo seu receio, mas nós dois precisamos ser práticos. Não temos muitos lugares para começar essa busca. Ou você acha que devemos sair batendo em cada porta de Belo Horizonte até encontramos sua família?

 

Eu dei de ombros.

 

— Claro que não. — suspirei. — Você tem razão.

 

Um sorriso se alargou em sua face.

 

— É claro que eu tenho. — ele disse. — Eu estou sempre certo, querida. Isso faz parte do meu charme.

 

Revirei os olhos. Era difícil permanecer enfezada do lado dele por muito tempo.

 

— Não acho que vai ser muito mais fácil mesmo que comecemos a procurar nos cemitérios. — declarei. — Quer dizer, quantos cemitérios não existem só nessa cidade?

 

— Contando com os arredores, são mais de 20. — Daniel admitiu. — No entanto, existem critérios que já eliminam alguns deles.

 

— Quais?

 

Daniel procurou entre os papéis até encontrar uma lista específica. Quando ele a virou para mim, notei que vários riscos e anotações preliminares já haviam sido feitos.

 

— Em primeiro lugar, temos o tempo. — ele respondeu. — Existem alguns detalhes da sua maneira de agir que me fazem pensar que você já está morta há algum tempo. Quer dizer, você não parece ser nem um pouco familiarizada com as redes sociais, mas a existência da internet não é nenhuma surpresa para você. Você não se impressiona diante de uma TV, embora ache alguns programas bem estranhos. Além disso, tem a forma como você está vestida.

 

Pensar que ele havia reparado esses detalhes em mim fazia com que me sentisse nua, mas também reconfortada. Instintivamente, abracei meu próprio tronco para omitir qualquer detalhe.

 

— O que tem a forma com que eu estou vestida?

 

— Bem, eu não imagino ninguém usando uma jaqueta como essa no século dezoito. — ele sorriu. — É maneira demais. Provavelmente, é algo que foi fabricado nos anos 80 para cá, mas definitivamente é contemporâneo.

 

Eu assenti. Também não conseguia imaginar alguém do século XVIII usando uma jaqueta de couro.

 

— Assim sendo, podemos eliminar alguns cemitérios da lista. — ele voltou a apontar para a folha. — Existe um que é relativamente novo em Santa Luzia e eu duvido muito que você ainda estava viva quando construíram o bioparque.

 

— O que é um bioparque?

 

— Está vendo? É sobre isso que eu estou falando! — ele voltou a sorrir. — Acredito que devamos começar pelos cemitérios públicos, pois, além de mais antigos, eles provavelmente seriam o destino de alguém com pouca renda. E, dentre os cemitérios municipais, o mais antigo é o do Bonfim, pois ele foi construído precisamente quando se deu a construção da cidade.

 

Outra vez me peguei sorrindo.

 

— Ora, eu não sabia que você era um historiador.

 

— Não sou. — ele concordou. — Porém, às vezes um diploma aparece magicamente no meu bolso quando eu quero pegar uma gostosa. Ou mandar ela para o além.

 

Fiz uma careta.

 

— De novo bancando o exorcista?

 

— Gata, eu deixaria o padre Karras no chinelo.

 

— Uma ova. — retruquei. — Eu não tenho escolha né?

 

— Livre-arbítrio é para manés. — Daniel fez um biquinho.

 

— Bom. — dei de ombros. — Então me diga onde você vai que eu vou varrendo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A viagem pareceu menor do que a minha agonia. Minhas unhas se enterravam mais fundo em minhas coxas a cada centímetro do percurso e meu maxilar se enrijecia cada vez mais. Daniel até tentou me entender, mas eu não consegui explicar o motivo da minha ansiedade. Quando o carro finalmente parou, tínhamos estacionado em uma pequena praça circular, ajardinada e cercada de timburis. Ver a entrada fez com que eu sentisse que meu corpo estava prestes a se liquefazer. Apesar disso, me obriguei a descer do veículo.

 

— Está tudo bem? — Daniel me perguntou.

 

— Sim, está. — menti.

 

O pórtico de entrada era uma estrutura gigantesca e verde, encimado por uma grande cruz branca. As colunas laterais eram encentradas por janelas gradeadas em formato de cruz, pintadas de branco, com a parte superior esculpida em formato de braseiro. Sobre a entrada, uma inscrição se sobressaía: MORITVRI MORTVIS.

 

— Dos que vão morrer para os mortos. — traduzi.

 

Daniel me fitou surpreso.

 

— Você fala latim?

 

— Não.

 

— Mas você acabou de falar.

 

— Então talvez eu fale. — dei de ombros. — Sei lá.

 

Os túmulos surgiram no meu campo de visão instantaneamente. Esperei pelo choque, mas ele não veio. As árvores farfalharam. Daniel olhou para mim novamente.

 

— Nim? — ele chamou. — Está tudo bem? Nós ainda podemos voltar se você quiser.

 

Respirei fundo, deixando a coragem invadir o meu corpo.

 

— Eu estou bem, vamos continuar.

 

Não precisamos andar muito antes de encontrar um mausóleo de aspecto glorioso, construído para ser a reprodução perfeita de um templo grego. Todo de mármore escuro, tinha a entrada ladeada por duas estátuas de bronze: na esquerda, Jesus abençoava um trabalhador, na esquerda, a Virgem Maria segurava o menino Jesus e abençoava um pedinte. Sobre a entrada, a inscrição anunciava que aquele era o túmulo da família de Antonio Falci.

 

— Oh, eu vi esse quando estava pesquisando sobre o cemitério. — Daniel disse. — O senhor Antonio Falci ficou rico trabalhando com vários empreendimentos, mas principalmente com mármore, que é carro chefe aqui do cemitério. Justamente por isso, existem essas estátuas. Uma representa o trabalho duro e a outra fala sobre as obras de caridade que a família faz até hoje.

 

— E você ainda me diz que não é um historiador!

 

Ele deu uma risadinha.

 

— Não sou, mas tem muita coisa legal a respeito desse cemitério. É o primeiro da nossa cidade, então existe muita coisa diferente para ser vista.

 

Daniel estava certo. A medida que caminhávamos, os túmulos ficavam cada vez mais distintos. Pouco a pouco, a arte parecia se sobressair a morte, condecorada por belas estátuas de mármore e lápides excêntricas. Um estranho fascínio crescia em mim, embora um sentimento ainda mais extraordinário se sobressaía: a tranquilidade.

 

— Você não está sentindo nada estranho? — perguntei.

 

— Não sei. Você está?

 

— Não. — admiti. — Só estou com uma sensação esquisita.

 

— Será que você está sentindo algum tipo de conexão com o seu túmulo?

 

— Não, acho que não. Quer dizer, só estou me perguntando onde estão os mortos que ficam vagando sozinhos, chorando e rangendo os dentes. Esse lugar aqui é tranquilo demais. Cemitérios não costumam ser assim.

 

— Acho que esse é um pouco melhor do que os outros. Parece uma viagem turística. — ele olhou ao redor, contemplando os túmulos que nos cercavam. — Da última vez que estive em um, pareceu ser a pior coisa do mundo.

 

Franzi as sobrancelhas. A pergunta escapou antes que eu pudesse refletir sobre ela.

 

— Quem você enterrou?

 

Daniel voltou seus olhos para mim. Havia uma leve insinuação de surpresa neles. Seus lábios se abriram, mas uma voz nos interrompeu antes que saísse qualquer som deles.

 

— Ei, vocês aí!

 

Ao nos virarmos, nos deparamos com um elegante túmulo negro, guardado por um imponente anjo que lamentava. Os dedos esculpidos em mármore da estátua pressionavam seu peito com angústia, enquanto seu rosto inclinado derramava lágrimas fictícias sobre um nome oculto sob uma profusão de flores. No entanto, não era só a montanha de buquês que se destacava. Sentada ali, havia uma jovem mulher, esbelta e alta como uma flor. Seus cabelos negros fluíam como uma cascata por suas costas, e seus olhos azuis pareciam brilhar como eletricidade. Ela estava vestida como uma autêntica gótica: calças de couro preto, botas robustas e uma camiseta de uma banda de rock cujo nome era ilegível. Quando ela acenou, percebi que uma pulseira adornada com pinos de metal enfeitava seu pulso.

 

Daniel, impactado com a beleza da moça, avançou na direção dela como se estivesse enfeitiçado. Senti meu sangue ferver.

 

— Olá. — ele disse com uma voz aveludada e insinuativa. — Você me chamou?

 

— Na verdade, eu chamei vocês dois. — ela disse. — Não é todo dia que eu vejo um casal como vocês.

 

— Nós não somos um casal. — ele disse rapidamente, fazendo um cesto de separação com as mãos.

 

— É sério que essa foi a parte que te chamou atenção em tudo que ela disse? — perguntei irritada.

 

— Eu prestei atenção nela to... Em tudo que ela disse!

 

A mulher misteriosa deu uma risadinha perfeitamente adorável e igualmente irritante. Havia qualquer coisa de... diferente na forma como a energia dela vibrava.

 

— Que bonitinhos, vocês até brigam como um casal.

 

— Pera. — ele finalmente tinha se dado conta. — Você consegue ver ela?

 

— Claro. Ela é igual a mim. — ela saltou da lápide e se colocou de pé. — Faz um tempo que eu também estou morta.

 

Eu não estava surpresa, só um pouco intrigada. Não podia dizer omesmo de Daniel. O queixo dele tinha caído tanto que parecia prestes a se desprender do maxilar.

 

— Olha só que bobeira a minha, acabei nem me apresentando. — ela estendeu a mão na nossa direção e sorriu. — Meu nome é Odette, com dois T's. E eu adoraria acompanhar vocês dois no passeio de hoje.

 


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