Um Reino de Monstros Vol. 1 escrita por Caliel Alves


Capítulo 16
Capítulo 4: Liberdade ainda que tardia - Parte 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/804754/chapter/16

Na véspera da execução dos cavaleiros flandinos, Leona foi até o seu alojamento na guarda municipal, e indo até à sua cama — que por sinal era uma caixa de areia —, retirou um objeto transparente e esférico de dentro da areia cinzenta.

Era uma esfera maior que o punho de um homem, parecia cristalina e de textura muito lisa. O objeto era um dos artefactos mais usados por magos e conjuradores: o telemago. Com ele, podia-se comunicar a distância criando uma Transmitância Mágica.

Os telemagos transmitiam imagem e voz, ou apenas um destes. Podia também ser usado como circuito de segurança etc.

Ela o alisou com as suas patinhas fofas retirando à areia. O objeto se pôs a emitir um brilho e dois olhos apareceram em sua superfície. Leona prestou uma saudação e posicionou o objeto em cima de sua cômoda.

— Capitã Leona reportando-se à Vossa Majestade.

— Fale, minha cara Leona.

A alma de gato, como era de seu feitio, passou a falar e a gesticular com todo o corpo.

— Saiba, glorioso rei, que muito tenho observado em Flande. Assim como em vossa sabedoria havia me alertado, Nipi é um mau capitão. Acaba muitas vezes sendo o responsável pela diminuição do próprio exército. Qualquer motivo para ele é razão para ferir de morte os seus subordinados. Gumercindo, por sua vez, é extremamente diplomático e sagaz, embora, imprudente por desafiar Nipi. Tenho observado que o barão, através de manobras psicológicas, tem levado Nipi a tomar atitudes desesperadas para mostrar serviço, o que ainda não aconteceu.

O relato de Leona continuou com a descrição da emboscada no beco e como a célula rebelde continuava a se multiplicar há cada dia mais no Reino dos Monstros.

O que mais agradou aos olhos do rei foi o relato do Monstronomicom. Zarastu ficou refletindo as palavras da alma de gato por um instante, e depois disse:

— Capitão Leona, esqueça Nipi e Gumercindo. Estarei enviando um observador para que assim eu possa tirar as minhas próprias conclusões. Quanto a você, eu tenho uma nova missão: siga os passos desse moleque, e na primeira oportunidade, roube o livro. Quanto ao Barão de Flande, lhe reservarei um destino ainda maior.

***

Sob as luzes de tochas incandescentes, os catres dos calabouços da Guarda Municipal de Monstros foram abertos. Figuras esquálidas saíram de lá cambaleantes.

As caveiras passaram a agredir os já feridos cavaleiros flandinos. Embora, humilhados, uma vez mais, saíram resignados, pois, ainda possuíam o orgulho de serem cavaleiros e flandinos. Nipi comandava a retirada e dava ordens aos soldados.

Ao passar pelo mapinguari, um dos cavaleiros cuspiu em sua face simiesca. O muco ressequido escorreu pela testa vincada e chegou à ponta do focinho, pingando no peitoral da armadura. Os monstros ficaram atônitos. O capitão fitou o prisioneiro por um instante. Depois, num brusco e rápido movimento, Nipi aplicou um tapa no tórax do ousado prisioneiro, mas, parou o ato antes que atingisse o alvo em cheio.

— Que graça teria se eu o destroçasse aqui, sem plateia para lamentar a sua morte?

— Você já não é mais o mesmo macacão de antes, Nipi.

O monstro pisou nos pés do flandino e o segurou pelo pescoço, o enforcando. O homem de pele bronzeada ficou com um tom cinzento. O capitão o largou no chão e disse:

— Não abuse da sorte, Arnaldo. Ande, seu animal!

Aos empurrões, Arnaldo e os demais foram trazidos guiados pelos corredores de pedra da guarda municipal. Arnaldo sentia um frenesi, era um dos melhores cavaleiros flandinos de todos os tempos, e foi um dos últimos a serem capturados.

Na última investida dos monstros, ele tinha se colocado como isca para que Dumas pudesse levar os outros para à Cidade Subterrânea. Ele havia jurado resgatá-lo com vida, como todos os prisioneiros de Nipi, ele mantinha à esperança acesa todos os dias.

Passaram as duas portas de ferro até chegar à recepção. Formando duas filas paralelas, as caveiras ficaram observando o cortejo dos maltrapilhos prisioneiros.

Essa fila levava até à praça principal, e por ela, famílias inteiras iam quase a se arrastar para conseguir andar. O cordão de isolamento servia para impedir que a multidão que acompanhava o cortejo tentasse algum resgate. Todos os monstros sob o controle de Nipi estavam nas ruas, exceto Leona.

Muitas pessoas tentavam em vão furar o bloqueio. Aos olhos do povo, aquilo era cruel demais, não poderiam entregar alguém para ser morto, mesmo que fosse para salvar um parente, amigo ou cônjuge. Mas essa era a intenção de Nipi, causar desespero.

— Monstro assassino!

Gritou um senhor tentando passar pelas caveiras que o repeliram com violência.

— Você não vai se safar disso, seu macaco fedido.

Ironizou uma jovem jogando um tomate apodrecido na armadura lustrosa de Nipi. Sob insultos e vaias, eles continuaram a andar entre a multidão furiosa, porém enfraquecida. O máximo que eles podiam fazer era agredir os monstros verbalmente.

O capitão e os seus prisioneiros, enfim chegaram até um palanque com algumas forcas a balançar com a brisa do vento.

Gumercindo e família estavam numa tribuna de honra, bem em frente ao palanque. A baronesa balançava o lenço para o cortejo fúnebre de cavaleiros flandinos. Gumercindo estava de braços cruzados, encarando Nipi com desprezo. Sua filha magricela bocejava, usava um poá na bochecha esquerda, simulando uma falsa nobreza.

Esse maldito Gumercindo também será mandado à forca hoje...

Um cômico carrasco, que nada mais era do que uma caveira vestida com capuz negro e roupa larga de mesma cor, acenava para os cavaleiros flandinos e passava o dedo embaixo do pescoço, indicando o fim trágico que os esperavam.

Onde está àquela alma de gato inútil que nunca está aqui quando precisamos dela?

— Tenente, pode me dizer aonde aquela bola de pelo foi?

— Isto é bem difícil de dizer, capitão Nipi, ela sempre usa sua conjuração Corpo Diáfano.

— Mas você também é outro inútil, saia daqui seu paspalho!

Havia pessoas demais, nem mesmo o mapinguari esperava tantas pessoas. Algumas telegas estavam dispostas pela praça e ruas adjacentes, Nipi imaginou que pessoas de arraiais e vilas circunvizinhas tinham vindo para o Baronato de Flande e poderiam se amotinar interferindo na ordem de execução.

Desde o dia anterior, ele não tinha visto Leona. Isso de certo modo não significava nada, mas ela sempre estava observando a todos. O mapinguari não sabia o real motivo de ela ter aparecido por aquelas bandas, Flande estava dominada, e, Gumercindo — ao menos ele acreditava —, também estava sob o seu controle.

Para Nipi, não havia necessidade de ser espionado, e o rei tinha lhe dado demonstração de que gozava de seus favores reais. Havia sido destacado para o cerco de Flande pessoalmente pelo monarca. De repente, a concentração dele foi deslocada para uma voz rija.

— Não acha que está indo longe demais, capitão Nipi? Olhe para essa gente, os flandinos estão em polvorosa, acha que conseguirá controlar a situação?

— Mas é claro que...

Essa voz, mas, mas, não, não pode ser!

 — Vossa Majestade?

Slish-slish! Uma criatura semelhante a um enorme olho flutuava no céu. Atrás de si, havia vários tentáculos roxos, eles se moviam e se eriçavam como se fossem nadadeiras. Era semelhante a uma água-viva nadando no ar. Na pupila do observador, a silhueta do rei Zarastu. O observador transmitia o que ocorria em tempo real para o castelo do rei.

— E-eu, eu... não se preocupe, Meu Rei e Senhor, foi tudo planejado de modo a causar uma série de delações no povo flandino.

— A única coisa que vejo é uma população inflamada com a sua atitude. É como uma corda que puxada por duas forças iguais, acaba por se romper.

— Perdoe a ousadia, Vossa Majestade, mas verá como tenho razão, observe.

Nipi subiu no palanque, e com um gesto de mão as caveiras puseram os prisioneiros na forca. De modo altivo, dez dos prisioneiros puseram os seus pescoços nos laços.

O algoz estava com as mãos ossudas em cima da trava que abriria o alçapão, só esperando a ordem de Nipi. O mapinguari se dirigiu ao povo, silenciando-o desse modo:

— Calem-se, seus infelizes! Agora sim, bem, eu, Nipi, comandante da Guarda Municipal de Monstros do Baronato de Flande, declaro um acordo de colaboração com os cidadãos flandinos: aquele que denunciar um rebelde salvará a vida de um desses prisioneiros. Darei dez segundos para que possam se manifestar.

— Nipi, se não for morto pela população, com certeza será morto por mim...

— Tenho tudo sob controle, Vossa Majestade.

Infelizmente, o que se viu foi o contrário. As pessoas gritavam e conturbavam a cerimônia de execução. Muitas delas forçavam o bloqueio. As caveiras revidavam.

— DO AÇO, PELO AÇO!

Os flandinos gritavam o lema da ordem. Os cavaleiros pesos também passaram a entoar o lema continuamente. Nipi não sabia mais o que fazer, gritou com as caveiras:

— Comecem a execução agora!

Mas antes que o alçapão fosse aberto, e o carrasco desse o seu sorriso carniceiro, as cordas foram cortadas por um feixe de luz prateado.

— Flux Lux!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um Reino de Monstros Vol. 1" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.