A Melodia das Profundezas escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 8
Travessia dos Doze Pesadelos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/803929/chapter/8

—Você sabe quem era a Serpente? - Tobias e César desciam as escadas um próximo ao outro, pois era tudo muito íngreme, e aquilo seria o fim deles, caso rolassem degraus abaixo. - Deu para entender no livro, mas ainda tenho minhas dúvidas.

—Para uma Serpente falante e pelo o que ela disse sobre amor e liberdade... Eu também desconfio... Seria era Lilith?

—Eu já estava pensando na Serpente original mesmo, que entregou a maçã à Eva.

—Pode ser também, mas ela não tem nada a ver com amor e liberdade. - Os dois atingiram o pé da escada, encarando um enorme corredor a sua frente. - Mas pensando que ela causou a liberdade da visão do casal, apesar de que podemos encarar como a entrega ao pecado, não sei, creio que a identidade da cobra não seja tão importante.

—Sim, temos 12 provas para enfrentar, e ainda estou pensando em como vamos passar, porque são 12 nascidos vivos, sendo crianças ou animais, o que eles podem ter medo em tão pouco tempo de vida? - Olhos amarelados encaravam a dupla, eles vinham do final do corredor, o qual se encontrava todo escuro. Repentinamente, estourou em cores o local, sendo alumiado por tochas que estouraram em cores amarelas e laranjas. - Ótimo, lobos, nem enfrentamos lobisomens há três anos.

—Mas o detalhe é saber como os enfrentar. - E a matilha começou a perseguição, uivando, rosnando e se aproximando da dupla. - Meu revólver não terá a menor chance.

—Você foi o pistoleiro do antigo Xerife, claro que você acerta. - Tobias se calou. - Acerte o líder, costuma ser o mais velho, ser o último para evitar que a matilha se atrase nas andanças e, claro, para quem os demais presta atenção.

Os uivos se aproximavam, muito mais rápido do que esperavam, eles tinham um único tiro, não poderiam gastar muito, ainda mais sem saber dos outros desafios. Tobias encarou a matilha mais ao fundo, certeza que ali se encontrava o líder da alcateia, não tinha outro meio, mas ele não viu nenhum lobo mais idoso, apenas um filhote, protegido por mais dois, talvez duas lobas, e o resto avançava.

—César, guarde a arma, eles tem um filhote. - O Xerife cerrou os olhos e encarou o filhote, as duas lobas notaram que os forasteiros haviam visto a cria. Quando ele abaixou e guardou o revólver. - Levante as mãos e fique de joelhos, feche os olhos e baixe a cabeça. - E assim os dois fizeram. Em segundos, o silêncio reinou. Ao abrirem os olhos, nada mais havia.

—Era uma ilusão?

—Duas teorias: ou Salazar roubou um novilho que a manada original foi atacada por lobos e o filhote sobreviveu, mantendo esse medo, ou ele foi mais louco ainda, roubou um filhote de lobo e esse pesadelo é do pequeno, que sentia falta da família e desejou que os demais conseguissem mantê-lo em segurança da melhor forma.

—Eu prefiro pensar que ele foi direto ao novilho e não foi doido ao ponto de invadir uma alcateia e roubar um filhote de lobo... Bom, foi um, faltam onze. - Não conseguiram avançar nem meio metro quando ouviram um sibilar de chocalhos. - Serpente... Mas está muito frio para elas já terem saído da toca.

—Eu acho que aqui a temperatura não é ponto fundamental, a natureza não funciona aqui como esperávamos. Acabamos de falar com uma Serpente mais velha que o mundo. - Eles encaram mais ao fundo, uma serpente marrom, com tons de bege, avançava rapidamente, tinha chocalhos no final de sua cauda. - Elizabeth, recém-nascida da vizinha da minha madrinha, quase foi morta quando uma cobra invadiu o berço dela, por sorte o gato viu e conseguiu salvá-la. Não digo o mesmo do gato.

—Então esse é pesadelo de criança mesmo, será que nossos pensamentos dão certo aqui também?

—Seria muita sorte... Eu imagino o felino e você agora saca essa arma! - Tobias sentou no chão, pegou o terço que sua madrinha o dera, era de madeira pura, com a imagem de Nossa Senhora entre as contas maiores e a cruz. Ele ouvia o sibilar de uma cobra avançando, parecia mais perto, quando um miar ecoou pelo túnel. Passos pesados, como de corrida, vinham por trás da dupla, um vento forte passou por eles.

Ao abrir os olhos, ele viu que a serpente virou cabo de guerra para dois gatos, maiores do que imaginou. César o encarou, chocado.

—Você pensou nisso?

—Pensei em um felino para acabar com ela, não imaginei que fariam dela um brinquedo. - A cobra se arrebentou em duas, derramando sangue no chão. Nisso, tanto ela quanto os gatos desapareceram. - E o segundo se foi.

*

—Ana! - E a gritaria na frente da casa da costureira começou a ficar cada vez mais intensa, mulheres entravam e saiam conforme ele terminava de fazer algumas medidas, e sem a ajuda do afilhado e da sobrinha, tudo ficava ainda mais complicado e demorado. Ao menos, ela ia recebendo tudo adiantado e não precisava ficar cobrando dos vizinhos.

Os dias passavam voando, nada parecia como antes, aquele Baile de Primavera fez todos ficarem mais eufóricos do que nunca, esquecendo dos problemas que a cidade já teve e ainda teria, mas assim era a vida, infelizmente, em que todos deixavam a vida ser tomada por um rumo que não desejássemos. Ela, pelo menos, montou um altarzinho ao lado de fora de sua casa, para César e Tobias, ninguém poderia passar por lá sem ver a imagem dos dois por meio de homenagens, ninguém esqueceria deles.

*

—Eu tenho é medo de saber o que ocorreu com essas crianças durante o pouco de vida delas. - Os dois estavam caídos no chão, cheio de ferimentos, com as roupas todas ensopadas, com muito sangue no chão ao redor do corpo deles. - O que passava na cabeça dos pais para tudo isso acontecer?

—Temos que ter certeza se não foi Salazar que causou a maior parte desses traumas também.

Após enfrentarem a cobra que aterrorizou a pequena Elizabeth, o túnel começou a chacoalhar por completo, como se fosse um terremoto, com as paredes se rachando por todos os cantos, não tinha um abalo sísmico na região há séculos, nem sabiam como isso poderia ter ocorrido. Quando tudo parou, eles precisaram de um tempo para se recompor, não sabiam o que tinham de ferimentos.

—Uma das desaparecidas, Igor, o sobrinho do Pagliazi, ele foi violentado pelo irmão mais novo que estava com ciúmes, o menino balançou o pequeno como se fosse boneca.

—Impressionado é que não se quebrou o pescoço dele.

—Até lembro da surra que o menino tomou, a perna dele sangrou das cintadas.

—É, eu lembro, eu tive que ouvir críticas de todos os lados por impedir a criança de ser educada corretamente, mas também críticas por não impedir a atrocidade.

Depois do terremoto, eles sentiram que as pernas estavam intactas assim como o resto corpo, sem nenhum osso claramente fratura, apenas alguns cortes causados pelo impacto com as paredes, eles não conseguiram se agachar antes de começar. Em seguida, muita água começou a surgir das rachaduras e a encher o túnel o qual, apesar de enorme, pareceu encolher a quase nada por conta daquilo. Ambos sabiam nadar, mas nada parecia resolver, pensar em um terreno seco não ajudou em nada, tiveram de nadar rumo à frente, na esperança de atingirem uma margem, conforme ocorreu segundos depois, momento antes de quase desmaiarem por afogamento.

—Enchente da primavera passada, parte do gado se perdeu por conta da água que corria das montanhas, provável que era o pesadelo de um dos novilhos sobreviventes, foram poucos que restaram.

—E teve uma mãe que viu o filho mais velho ser levado rio abaixo, infelizmente não o achamos mais, deve ter desembocado no rio mais ao sul, isso deve ter feito a cabeça dela e passou para a criança enquanto a gravidez durava. - César estava caído no chão, sua respiração era fraca, até ela totalmente cessar, ele sentia uma duas mãos seguravam em seu pescoço. Não apenas ele, mas também Tobias, o ar não adentrava nos pulmões, eram asfixiados.

Quase ao ponto de não voltarem do coma, eles acordaram. O pescoço todo dolorido, eles recuperavam o ar, aos poucos.

—Mas o que foi isso..? - Tobias encarou César, ele ainda recuperava o fôlego, estava atirado, sem conseguir se mover muito.

—Provável que... Seja o filho do Aristides... O homem matou a esposa por tê-lo traído, a criança era recém-nascida, deve ter visto, os vizinhos fofocavam que a criança chorava toda a noite por volta das seis da tarde, hora que a mulher foi enforcada.

—Pai amado, que terror foi essa cidade no último ano.

—Você nem imagina, o tanto de situação que eu tive de acobertar para que não houvesse fofocas. Com o crescimento da cidade, era esperado esse tipo de acontecimento por conta de estrangeiros, mas tudo ocorreu com população conhecida nossa.

—E se todo esse caos não foi resultado da Serpente. Se o desejo dela era nascidos vivos com menos de um ano, a presença dela na cidade não seria um indício disso?

—A cidade carrega muitas sinas: tivemos a do lobisomens, por séculos, e agora temos essa, qual seria a próxima? - César conseguiu se sentar. - Bom, precisamos desvendar primeiro essa, depois pensamos no futuro. - Recuperado o fôlego, eles avançaram, as tochas voltaram a acender como se nunca houvesse uma enchente. - Se estou correto, já passamos por seis provas, sendo a enchente valendo para duas, por isso talvez que demorou mais para passar, não? - Tobias não respondeu.

—Tobias..? - O garoto, novamente, caiu no chão. Seus olhos pareciam saltar das órbitas, nada o havia mordido ou picado. César parou ao lado dele e viu que havia um ferimento enorme na perna dele, mas como? Ele estava entrando em choque, o corpo tremia, mas era rígido, como se fosse mordido por algum animal.

E mais mordidas começaram a aparecer no corpo de Tobias, e não havia como fazer.

A mão de Tobias segurou a de César e apontou o bolso dele. A garrafinha de vodca estava ali. Ele retirou do bolso, rasgando a jaqueta com a raiva, e derramou o líquido sobre as feridas, Tobias gemia de dor, mas em segundos pareceu fazer efeito. Eles recuperam o fôlego assim que os ferimentos desapareceram.

—Está melhor?

—Com certeza. - Ele sorriu, bem cansado. - O que foi isso?

—Mordida de cachorro... Acho. Tivemos um caso de um cão doente, ele espumava muito. - Os dois ficaram no chão por um longo tempo, apenas se recompondo, e esperando a próxima prova. Tobias encarava César, que retornava o olhar, até que simplesmente notou que o amigo paralisara.

A visão de César embaçou, ele não conseguia encarar mais o garoto, suas pernas e braços começaram a gangrenar em cãibras e mais cãibras, ele sentia o corpo todo arder também. Dessa vez, foi Tobias quem, quase sem forças, precisou socorrer. Ele pegou a mesma garrafinha de vodca, pronto para usar também.

Ele lembrou que uma criança foi atacada por um animal peçonhento, foi na perna, e encarou o tornozelo de César, lá havia o ferimento.

Havia dito que não poderia, mas sugar o "veneno" era a única solução, e assim o fez, cuspindo no chão. Depois jogou o que restara de vodca nos ferimentos. César recuperou a consciência, mas estava fraco. Tobias avançou e deu um abraço muito forte nele e começou a chorar.

—Calma, estou vivo...

—Mas só hoje quase perdi você várias vezes. - E o choro era longo, escorria lágrimas pelos olhos.

*

Fazia uns meses que os dois se encontravam às escondidas, todos da cidade já levantavam rumores do porquê eles se viam com tanta frequência e durante à noite, ainda mais em que a cidade estava sem tantos crimes e o Xerife é novo, não precisava de um substituto, o anterior ficou no cargo até se aposentar no leito de morte.

Contudo, ambos já tinham uma ideia do que ocorria nas conversas paralelas, e já tinham acionado o Padre, ele sabia o que os dois faziam, era trabalho extra para a Paróquia e sobre os crimes que ocorriam, mas evitavam colocar em público a não ser que fosse necessário, era o novo lema do Pagliazi.

—Você se lembra quando a gente se conheceu? - Era a voz de César a emitir a pergunta. - Imagina se soubesse o que aconteceu naquela caverna à luz da fogueira.

—Certeza que nos queimavam vivos.

—Ao menos, os rumores estão diminuindo depois que o Padre, hoje, anunciou na missa que estávamos trabalhando para a Igreja.

—Ainda bem, o pessoal estava animado demais com o rumor de um relacionamento entre nós dois.

—E não é? - Os dois se encaram suavemente enquanto terminavam de arrumar os arquivos da Igreja, estava quase tudo pronto, era um trabalho rápido para fazer, de catalogar tudo, mas para o Padre era demorado porque ele mais fofocava com as Beatas do que organizavam. Assim, os dois sempre tinham tempo para eles, era manter a luz do andar debaixo acesa e os dois podiam subir para o quarto, sempre mantendo as cortinas fechadas.

*

—Mas ainda tem muitas chances de você me perder, temos mais quatro pesadelos pela frente.

—Eu sei... Mas estamos apenas nós dois aqui, posso fazer isso sem preocupação. - Os lábios de Tobias avançaram sobre os de César, beijando-o suavemente. A tensão toda do corpo de César desapareceu, e ele seguia com o beijo, o mundo ao redor deles desapareceu por segundo, antes de um rugido ecoar no horizonte escuro.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Melodia das Profundezas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.