A Melodia das Profundezas escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 9
A epifania da estação




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Aliás, rugidos. Os dois praticamente saltaram de onde estavam. Encarando o final do túnel, eles conseguiam notar o silêncio reinando. A respiração presa deles os deixava tensos, mas os rugidos avançavam para cima deles.

—César... Você se lembra... - O Xerife concordou. Não fazia muitos meses, mas uma trupe circense visitou a cidade, era um grupo pequeno e fazia pequenos espetáculos por onde passavam, tanto que não ficaram mais de dois dias na cidade.

Entretanto, a principal atração, sempre a última, foi a enorme fera que carregavam consigo, era uma espécie de felino enorme, com um cabelo bagunçado, todo acastanhado, compatível com o resto de seu corpo, apesar de passarem um tinta por cima do corpo, para deixar com um olhar ainda mais místico e tenebroso.

*

—Estranho esse grupo carregar consigo um leão. Já ouvi livros e histórias, muitas eram diários de navegantes, mas não suspeitei que começaram a trazer tais espécies para cá. - Matheus, o bibliotecário, estava sentado ao lado de Dona Ana, uma grande amiga, muito próxima de Olga antes do falecimento da mesma. Ao seu lado, o afilhado Tobias prestava atenção nas palavras do homem, diferente de Gisele, que resmungava palavras estranhas que só Dona Gláucia a teria ensinado.

—Mas é um animal selvagem, como que conseguiram domá-lo?

—Isso que eu também me pergunto, pois eles são hostis quando querem, apesar de dóceis quando bem ensinados, ou quando não se sentem em perigo. - Ele encarava as crianças mais próximas sentadas quase em cima do que seria um picadeiro para o espetáculo. - Eu suspeito que essa madrugada tenhamos outro espetáculo, mas de choros e pesadelos.

*

Os passos pesados e cautelosos das criaturas avançavam para cada vez mais próximo deles.

—O que Matheus disse sobre domar os animais?

—Possível, desde que ou haja respeito e eles não se sintam em perigo ou teremos de partir para a violência e à dominação por dor.

—Você pensou naqueles dois gatos, será que não poderia imaginar uma saída aqui do nosso lado?

—Acho que nem rolará. Faz parte dos doze pesadelos. - Quando as luzes das tochas se intensificaram, eles viram quatro figuras quadrúpedes, cada uma escorrendo sangue pelas bocarras, o corpo todo sujo, do que deduziram, de sangue, com ferimentos pelo corpo todo, como se navalhas cortassem a pele deles.

—Mas por que quatro? Serpente está com falta de criatividade?

—O Matheus disse para mim que depois do espetáculo haveria muito choro e pesadelo, apenas pela presença do leão, provável que as demais crianças ou animais raptados tenham o mesmo pesadelo. E, pelas minhas contas, esses quatro são os últimos dos doze pesadelos.

*

—É amanhã! - A cidade estava polvorosa com a chegada do primeiro Baile de Primavera, havia muitas pessoas novas na cidade, muitos visitantes, os rumores correram longe, apesar de ser um evento novo de uma cidade que estava abalada com os últimos acontecimentos.

—Ao menos, tudo parou há três meses. - Dona Gláucia terminava de dar os toques finais no vestido que ela mesma quis fazer para Gisele. - Quem diria que só enterrar no lugar certo aqueles três condenados fosse resultar nessa paz na cidade.

Padre Pagliazi cansou de, ao menos, tentar corrigir a mulher, que tais palavras poderiam machucar quem passasse perto e gostava de um dos três que vieram a falecer naquele terrível incêndio, mas nada resolvia, a mulher estava simplesmente surda para isso.

—Se ela soubesse que esse tipo de comportamento é nada cristão, que apenas rezar rosário atrás de rosário o dia todo não resolve nada se sua alma é fechada e imprópria. - Ele encarava o movimento do pessoal colocando barracas, mesas, tudo caminhava para o sucesso do Baile. - E que assim seja.

*

As quatro feras se aproximavam da dupla. Os dois suavam frio, tinham em mente que aquela última parte, uma reunião de quatro pesadelos, deveria ser pior que as outras, não seria apenas um leve pensamento que os ajudaria. O respirar profundo dos leões se aproximava, eles farejavam os dois, que ainda apresentavam ferimentos de sangue, suor e muita dor pelo corpo todo, o primeiro ataque seria trágico.

Os quatro animais apenas seguiram em frente, sem prestar atenção nos dois.

—Será que somos muito magros para eles? - Mas as quatro feras começaram um combate entre si, em meio a arranhões no corpo ficando ainda mais abertos. - O que é isso? - Os dois se encaravam, César estava com o revólver em mãos, engatilhado.

—Leões são animais territorialistas, são poucos machos, quando não apenas um por grupo, eles estão lutando para saber quem será o líder e, assim... Saber quem comerá a gente primeiro. - César apertou mais firme o revólver, nem lembrava quantas munições havia dentro, ainda sentia o corpo todo gélido da água da enchente, o ar ainda não voltava por completo aos pulmões, ele estava tremendo de medo. - Fique calmo, essas lutas costumam demorar muito tempo.

Tobias começou a apontar para os leões, havia feridas se abrindo por todos os lados nos corpos deles, porém não sinal do combate que ocorria, os animais já apareceram totalmente feridos, não era o que esperavam.

—Mas... Esses animais já estão feridos... Como?

—Provavelmente as crianças que viram e tiveram pesadelos com esses animais, também imaginaram como eles morreriam ou repararam que os animais estavam bem feridos durante o espetáculo, então isso será nossa arma, porque o vencedor será vitorioso, porém estará bem machucado.

Não demorou muito para que um a um, sobrando apenas uma fera sem despencar no chão, o leão olhou para eles, mas estava debilitado, havia muitos ferimentos em seu corpo, não daria conta de avançar mais uma vez, então era a chance de César de apontar.

—Ainda não, apenas vamos avançando para o final do túnel, o leão não vai nos seguir. - E assim aconteceu, o leão se esforçou para avançar perante a dupla, mas a perna fraquejou. - De relance, a perna dele está ferida, a pata está quebrada. Avançar agora causará muito mais dor do que a fome que ele está. - O olhar do leão era triste, dolorido e trágico. - Há muito mais dor que ele passou em vida do que podemos imaginar.

Os dois atingiram o final do túnel, havia uma escada circular, semelhante a da entrada, eles começaram a subir. Pé ante pé, pois não sabiam o que havia em frente, eles se deparam com uma porta, como se fosse um alçapão. Os dois, com muita força, toda força que conseguiram forçar a madeira, que não era tão pesada. Eles ouviam um enorme converseiro que vinha de não tão longe, estava quase abrindo o alçapão.

Assim que conseguiram, depararam-se com uma escuridão enorme, havia apenas as luzes de algumas velas que dançavam, escutavam um farfalhar de vozes, bem mais altas e gritando ao longe, além das portas do recinto, mas também pequenos sussurros próximos, como se alguém estivesse cochichando.

De forma calma, eles saíram do buraco de onde estava e se assustaram onde estavam, era a Matriz da cidade.

—Por que a casa do Salazar se encerra aqui? - Eles se encararam. - Pagliazi sabia do homem e do que ele andava fazendo?

—Isso explica a calma dele em querer manter o caso no sigilo, mas também a calma dele no dia da morte, ele nunca fui uma pessoa emocionada, claro, mas o homem cometera suicídio era o homem quem mais deu dinheiro para a Igreja. - Os dois olharam ao redor, havia muito ramalhetes de flores para cima e para baixo, a Igreja estava decorada. - Isso não parece nada com enfeite para velório...

Ouviram barulho lá fora, parecia uma banda tocando, muitas pessoas gritando, fogos de artifício no céu. Em seguida, um grito veio da entrada da Igreja, quando eles viraram o olhar e se deparam com algumas crianças, as quais com certeza não deveriam estar ali, apenas queriam aprontar.

—Fantasmas! - E saíram correndo para a praça, avisando todo mundo. - Pagliazi foi o primeiro a vir, ele iria fechar a porta atrás dele, como se quisesse manter sigilo, mas muito foram invadindo, todos assustados. Dona Ana e Gisele vieram mais rápido ainda.

—Tia... O que está acontecendo? - Tobias foi abraçado fortemente, Soraia e Matheus também vieram logo, abraçando César enquanto choravam muito. Os dois não entendiam nada, encararam o lado de fora e viram todo o festival que ocorria. - Não pode ser... Baile da Primavera?

—Impossível, não ficamos três meses no túnel... Não deu nem horas...

Pagliazi os encarava com um olhar sombrio, os dois notaram, sabiam que as suspeitas sobre ele poderiam ser verdadeiras, teriam de ter cautela. Os dois ouviam sussurros ao longe, eles estavam mortos, mas como voltaram a vida? Era uma surpresa a todos, ainda mais para alguns que choraram muito, Dona Ana quase morreu do coração ao saber da morte do afilhado, o padre teria mentido? Impossível, teve velório, ele mostrou os caixões. Sim, os caixões, não os corpos, ele disse que estavam muito queimados e sem semblante bonito. Ah sim, explica os dois ali na frente, estão longe de queimados.

—Uma mentira dita muitas vezes torna-se uma verdade. - Matheus resmungou no ouvido de César. - Pagliazi está diferente, ele não gostou do retorno de vocês, não há novo Xerife, o cargo ainda é seu.

O olhar para Tobias se comunicou, ele ouviu o que o bibliotecário falou, então ele esperava os dois voltarem da tarefa do túnel, tudo aquilo fazia parte de um plano, mas qual era? Dona Ana encarou o ferimento dos dois, começou a ordenar a todos que os carregasse para fora, daria água, comida, bebida, curativos, chame os farmacêuticos! Ele está bêbado! Eu mesma cuido disso!

O caos parecia diversão, os dois ainda não entendiam qual o fluxo temporal que ocorrera enquanto estavam fora, aquilo era estranho, estava nos planos de Pagliazi e nos planos de Serpente. Sim, ela estava por trás, e nada melhor do que subjugar um clérigo para realizar suas funções.

Os dois foram postos em uma mesa, a que ficava mais perto das barracas de comida e bebida, os dois não precisavam pagar, poderiam comer e beber o quanto quisesse, era o prêmio deles por terem voltado com vida do além, segundo os rumores, as fofocas corriam a solta, Dona Ana não deixava ninguém os atormentar enquanto comiam, aos poucos, o estômago de ambos estava roncando muito, eles comiam com calma. Na teoria, há três meses não comiam, nem bebiam, muito menos dormiam.

—Então temos um suspeito?

—Sim, e creio que ele agirá essa noite. - Os dois olharam para o céu, uma lua enorme, lua cheia, totalmente avermelhada. - Segunda lua cheia do mês, lua cheia especial.

—A famosa Lua de Sangue. - Era Matheus. - Uma data muito importante para muitos, diga-se de passagem. - Ele puxou uma cadeira, driblando as ordens de Ana, que não queria ninguém importunando os dois, inclusive o Padre ela impediu de se aproximar. Pois vá conversar com os visitantes, essa é a sua função. Verdade, havia muitas pessoas desconhecidas. - As estalagens estão cheias, precisamos correr com a inauguração de espaços novos, mas que não vão afetar as baixas estações.

—Tivemos enchentes essa primavera?

—Nenhuma, foi uma primavera seca, monótona, nem as flores deram o ar da graça. Parece que estamos azarados esse ano. Mas foi bom, conseguimos manter o Baile na data certa. - Eles encaram o centro da praça, havia muitas danças, muita música, muita bebida. - E onde estiveram nesses últimos três meses?

Tobias contou, resumidamente, desde que foram à casa de Salazar até saírem pelo alçapão ao lado do altar da Igreja. Ao analisar os arredores, ninguém prestava atenção neles, porém a voz suave segredava sobre as suspeitas com Pagliazi.

—Então o Padre pode estar mancomunado com Serpente... Que curioso. Não surpresa, mas curioso. Nos últimos casos de feitiçaria, maldição ou sabe sei lá o que essa cidade já teve, a Igreja sempre foi um porto seguro para o pessoal, mas até o padre está nessa.

—E sobrou para o coitado do Salazar. - Nuvens começaram a se aglomerar no céu, mas a Lua continuava brilhando, ainda mais intensamente. - E eu não estou gostando nada disso. - César o olhou para o céu. - Será chuva?

—Acho que não. - Tobias cheirava o ar. - Está tudo muito seco, não tem umidade. - Ele olhou para Matheus. - Doze pesadelos, passamos por doze pesadelos de recém-nascidos que foram sacrificados para servir de alimento à Serpente. - E relatou com mais detalhes o que fizeram e quais eram os pesadelos. - Por tudo o que você já leu, o que pode significar? - Ele encarou o céu, a Lua de Sangue, o Padre alegre no palanque da praça, todo mundo muito bêbado.

—Não é o nosso fim, mas preparem-se para lutar. - Ele olhou para a Lua, mais uma vez. - Ela brilha, muito intensamente, cor de sangue, muito sangue. - Um trovão cortou os céus. - Vocês disseram que houve duas enchentes?

—Não, apenas uma, mas intensa.

—Então aquela foi uma enchente apenas, a segunda está por vir. - Uma chuva forte caiu em cima deles.

Tobias e César se encaram, Matheus entregou ao Xerife um apito, que foi assoprado intensamente, quem fosse seus aliados saberia o que era o sinal, e revólveres seriam sacados. Não era água a chuva.

—Sangue, fruto das doze crianças sacrificadas.

 


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