A Melodia das Profundezas escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 7
Encantamento do Mal Primitivo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/803929/chapter/7

Por segundos, eles conseguiram recolocar as últimas tábuas no lugar antes que tudo escurecesse e desabasse em cima deles. César e Tobias encaravam a enorme escuridão que pairava à frente deles, ainda mais que jamais suspeitaram que embaixo daquela casa haveria uma espécie de túnel, as chamas lá em cima ainda queimavam, revelando um pequeno e estreito percurso mais adiante.

—Devemos seguir? Ou esperar que o fogo se apague e tentarmos sair por cima?

—Vai uns vários dias até as madeiras se queimarem por completo e deixarem de estar quente, então se conseguirmos sair por cima, vamos nos queimar feio. E outra, o teto caiu, vamos precisar levar em conta que alguém viu o incêndio e veio apagar.

—Conhecendo o histórico de fofoca dessa cidade, é difícil eles não terem nos visto.

—Sim, mas colocar a mão no fogo só pelo histórico dessa cidade, não ajudará... - César deu alguns passos para frente, trombando em algo de metal. - Teremos de seguir em frente. - Ele olhou, era uma lamparina, havia muito óleo dentro dela. - Só precisamos de luz.

—Eu acendi as velas com isso, deu certo. - Ele riscou um fósforo,, ele o riscou na caixinha e uma pequena luz forte se alastrou pelo túnel, que se revelou ser mais estreito do que pensavam. - Bom, levando em conta que Salazar era mirradinho de tudo...

Eles avançaram, a quantidade de ratos mortos e alguns ainda vivos, esses já fugiam, que se espalhavam pelo chão de terra era enorme, tudo estava fétido, o cheiro de carne podre que subia até as narinas dos dois jovens, tinham náuseas.

—O cheiro do óleo não ajuda nada também, pior que os incensos da paróquia. - Tobias precisou parar.

—Eu sei que está cansado, mas não podemos parar... Tomar um fôlego aqui dentro não tem muito sentido... Aliás, mal sabemos quanto tempo temos aqui dentro ainda.

Pegando Tobias pela mão e pousando o braço dele em seus ombros, eles permaneceram em pé por pouco tempo.

—Isso me lembra o dia que você se atirou para cima de mim... - Tobias resmungou. - Isso foi há tanto tempo, parece que foi ontem que eu entrei na delegacia com medo dos esporros que a Dona Gláucia estava me dando.

—Isso que eu disse sobre não termos muito tempo aqui, e você falando sem parar.

—Awn, está com medo do que os ratinhos vão pensar? Aliás, se eles estão vivos aqui, é porque tem comida a eles e tem ar para os pequenos, então só precisamos seguir em frente. - Uma lufada de vento entrou pelo túnel, quase apagando a chama da lamparina, e eles notaram que havia uma passagem mais adiante, provável o lugar onde Salazar saía antes de retornar para a sua casa, ou um lugar onde pudesse sair de sua casa sem ser visto. - Interessante... Por que será que ele gostaria de sair de casa sem ser visto? Aliás, será que ele não recebia visitas sem sabermos?

—Pode ser, mas precisamos descobrir. - Tobias recuperara o controle do estômago e avançou rapidamente ao lado de César, que encarava com vigor a animosidade do garoto, gostava disso nele, pensava muito em como eles se ajudaram e se divertiam muito nos últimos anos, desde que ele completara 16 anos e atingira a maioridade, querendo mais e mais ajudar na segurança da cidade, mas o fingimento... era preciso.

Eles atingiram o que seria o fim do túnel, mas não era o que esperavam. Uma luz solar parca invadia o local, era uma abertura acima da enorme área redonda, era estranho o que eles viam, e dali entrou aquela rajada de vento.

A área era redonda, parecendo uma caverna, ali se encontrava enormes pilares de pedra, todos rústicos, e no centro, uma pequena mesinha com um livro em cima, e muitas tochas já acesas para dar iluminação ao recinto. Os dois se encaravam, sabiam o que isso significava, não foi o primeiro culto satânico que viam na vida.

—Mas sem pentagrama nenhum no chão?

—Mas a mãe natureza não precisa de sinais humanos para ser chamada. - Uma voz grave e sibilante os atingiu com força, eles congelaram de medo, encararam o pilar mais central, logo atrás de uma mesa, algo se movia. Apertando os olhos, Tobias segurou um grito de tremor, não era o pilar que se movia, mas algo em sua superfície. - Pentagrama... Apenas para invocar um frouxo que só existe para vocês, cristãos... Ah, mas eu sou fruto dessa sua imaginação fértil, apenas existo facilmente fora do seu imaginário, aterrorizando mais e mais vocês.

Ambos encaravam a enorme serpente que circundava o pilar e ela parou apenas quando atingiu o topo, encarando os dois com seus enormes olhos fendados.

*

—Acho que podemos voltar a pensar sobre o Baile de Primavera, não é? - Na casa do Padre, reuniam-se algumas figuras conhecidas na cidade, entre elas o novo Xerife. Dona Ana estava em casa, não quis participar, ainda não conseguia acreditar na ausência de Tobias. Gisele engoliu o que restara de alma boa e se juntara de vez às quatro beatas.

—Mas realmente é necessário por hora pensarmos nisso?

—Faltam dois meses para a festa, precisamos acelerar com os processos. - Todos ali concordaram com a necessidade de acelerar os processos dos preparativos, ainda mais que o evento se espalhou por toda a região e algumas pessoas já vinham visitar a cidade para saber como passar a semana.

*

A serpente tinha um corpo cilíndrico e forte, tinha manchas alaranjadas em meio a uma cor preta extremamente brilhante e vistosa, como se tivesse lustrado totalmente seu corpo alongadamente comprido com óleo, a cabeça era de forma triangular, e a língua bífida entrava e saía sem parar, o olhar dela era penetrante, congelou totalmente os dois em seus respectivos lugares que não conseguiram sair de forma alguma.

—Ela... Tá falando..? - Tobias se aproximou lentamente de César e buscou a mão dele para segurar, o medo percorria cada canto de seu corpo, seus pelos estavam eriçados, suava muito. César nada falava, encarava ainda com afinco a serpente, não queria perder qualquer movimento dela.

—Eu esperava que Salazar fosse passar por aquela entrada ainda hoje, mas ele deve ter fugido de medo. - Não seria possível, mas César jurou que ela aparentava sorrir.

—Foi você... Você quem causou aquele ferimento no braço dele... Que deixou o braço quase todo aberto.

—Ah, então ele está morto mesmo... Deveria ter imaginado, nenhuma assinatura desaparece do Livro enquanto alguém vivo estiver. - Ela remexeu o corpo, parecia satisfeita com o resultado final. "Não pode ter sido ela quem o matou... Ela não tem membros para atirar, mas será que ela o ameaçava a tirar a própria vida?" - E até sei que vocês não irão me servir igual aquele atrapalhado e mau caráter, mas eu sei que vocês irão me ajudar com o que estou precisando no momento.

—Você quem ordenou o sumiço das crianças?

—Olha, que garotinho esperto... - Ela saiu de onde estava e avançou para mais perto de Tobias, o serpentear de seu corpo arranhava o chão, a carapaça de escamas dela ecoava como milhares de agulhas penetrando um corpo delicado, a audição deles era o pior inimigo naquele momento. - Eu sinto... Cheiro do pecado. - E ela encarou os dois, o sorriso ficou ainda maior.

—Do que você está dizendo?

—Eu também já amei, mas foi há muito tempo, eu nem me importava mais com o que era meu por direito, mas me foi retirado porque eu não era uma boa serva, por isso eu simplesmente destruí o bem precioso dele, e ainda ri muito, mesmo amaldiçoada. Desapareci, fui colocada para hibernar, mas novamente me encontro entre os homens, mas sem meu amor, diferente dos dois, que ainda podem viver esse amor, só precisam mesmo renunciar ao mundo que tanto vocês amam.

Os dois se encaravam, César tinha a mão posta sobre a cintura, onde esperava um de seus revólveres.

—E nem precisa sacar sua carabina de fogo, humano. Salazar tentou atirar em mim uma vez, coitado, eu não mordi mais forte aquele resto de ratazana que havia me dado porque eu queria saborear o quão gorda e macia a refeição era. - O olhar dela escureceu, exalando raiva e rancor. - Mas ele pagou caro. Eu estava gentil com o atraso dele para me entregar as doze crianças, eu até estava aceitando novilhos porque ele afirmava não nascer muitas crianças, mas depois da insolência, ele teve de buscar bebês para meu plano, e não me arrependo de nada. Vê-lo sofrer com a desilusão das famílias, sentir o choro de desespero de pequenas e macias crias gordinhas, bem alimentadas, todas elas riam e amavam quando eu balançava minha calda para elas, mal sabiam que isso as penetraria. - E mostrou as longas presas.

Os dois sentiram ainda mais frio, o medo e o pavor mordiam cada músculos do corpo deles, as palavras dela sobre amor e liberdade, mas também de ódio e morte, tudo ecoava na cabeça deles.

—Mas Salazar não concluiu tudo o que era necessário, e a Lua de Sangue está se aproximando, então precisamos correr, não é? - Uma das pedras tremia e se abriu, como uma porta, e revelou uma escadaria, que descia sem fim. - Leiam esse livro o mais rápido que conseguirem e desçam por aquela escada, quanto mais cedo começarem, mais cedo terminam, mais viva eu fico e mais tempo vivos vocês terão... Ah, se concluírem as tarefas.

—E o que indica que faremos tudo o que você está mandando? - O olhar de repressão da Serpente fincou seu corpo e ele só teve ideia do perigo quando uma enorme ratazana, parecendo um filhote de urso, invadiu o recinto. A serpente bateu nela com a calda e o corpo do animal colidiu com a parede, eles conseguiram ouvir o crânio se rachando e o animal entrando em colapso. - Bom, ao menos você tem seu jantar.

—Parabéns para você, que não será meu jantar hoje. - Ela fechou os olhos. - Podem ir, a leitura e sua missão os espera.

*

—Matheus, está aí? - Era a voz de Ana, a tia de Tobias, que batia na porta do bibliotecário. O homem abriu a porta, ele já era diferente dos anos anteriores, engordara um pouco, a barba cresceu bastante e já se encontrava careca. - Podemos conversar? - Ela entrou e se sentou na poltrona como era de costume que sentasse ali, a mulher foi agraciada com uma xícara de chá enquanto ele tomava um pouco de uísque. - Ah, faça-me o favor! - Tomou a garrafa da mão dele e virou um pouco em sua xícara, que antes estava pela metade, mas agora quase transbordou.

—O assunto é sério, pelo visto. - Ele colocou uísque em outro copo e o posicionou perto de Ana.

—Meu sobrinho está morto, ninguém fala nada sobre ele ou sobre o César, e já querem fazer aquele tal Baile. Não estou achando ruim que tenha, ao menos é uma desculpa para as mulheres que encomendaram vestidos ao menos, paguem conforme combinado. Mas nem missa de sete dias os dois tiveram, eles simplesmente rejeitaram porque morreram na casa daquele assassino medíocre. - Matheus a encarava, permitindo que desabafasse sobre sua ira. - Meu afilhado, Matheus, ele está no purgatório por conta da patifaria dessa gente, vontade de refazer o que fizeram na Matriz há três anos, mas agora na casa daquela rabugenta que até minha sobrinha de sangue levou de mim.

—Sim... Fique sabendo que as Quatro Beatas agora são Cinco Beatas... A concórdia nunca anda sozinha, não é?

—Demais, minha sobrinha... Achei que ficaria mais ao meu lado após a morte do Tobias, mas se mancomunou rapidamente para o lado da velha ranzinza... Nem dá para chamar de bruxa, porque já conheci bruxas mais gentis e bondosas que ela... Deus me proteja de não voar no pescoço dela, já que me chama de galinha mesmo. - Matheus segurava o riso, mais por respeito. - Pode rir, um dia esfrego a fuça daquela amargurada no chão sujo da Igreja.

—Mas Ana, assim, a senhora acha mesmo que César e Mathias se foram? - A mulher se assustou.

—Faz um mês e meio que eles partiram, Matheus, por que diz isso agora?

—Nem com o Salazar o velório foi com caixão fechado, que tinha um tiro no meio da têmpora, por que com os dois, os caixões estavam lacrados com cadeado?

*

Não demorou muito para eles encerrarem a leitura do livro, muito mais era sobre imagens e sobre práticas e cautelas, mas metade estava em língua antiga que eles jamais saberiam, então era na base da dedução.

—Ou seja, para sairmos daqui, temos de passar por 12 etapas, cada uma referente a um medo da criança capturada, tudo isso para finalizarmos o fechamento do ciclo e assim você fazer sabe sei lá o que com toda a força mística que tiver aqui dentro e usar a seu favor? - A serpente confirmou e apontou novamente para a porta. - Já dizia o ditado, quanto mais cedo começarmos, mais cedo terminamos.

Os dois seguiram para a porta, com muito receio, indo cautelosamente, a ponto de nem andar muito. A Serpente, encarando a demora, deu uma cabeçada nos dois, que foram arremessados fenda adentro. Enquanto a porta se fechava, eles recuperavam a consciência. Havia uma luz no final da escadaria.

—Então só nos resta descer...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Melodia das Profundezas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.