Segunda chance escrita por Laura Vieira, WinnieCooper


Capítulo 24
Capítulo 23




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Clara sentia seu estômago doer de fome, revirava na cama de seu pai sem conseguir dormir. Perto das cinco da manhã não aguentou mais e se levantou, pegou Carijó II, colocou debaixo de seus braços, andou a passos leves para não acordar Petruchio e foi até a cozinha.

Olhou para o fogão e não achou nenhuma panela, procurou alguma fruteira e as bananas que tinham estavam verdes, olhou na despensa e só encontrou arroz, farinha branca e feijão cru. Foi quando reparou num saco pendurado no teto cheio de batatas. Estava mais de vinte e quatro horas sem comer, começou a se culpar de ter rejeitado a comida da Neca na noite anterior, prometeu a si mesma que não ia mais rejeitar comida nenhuma que ela lhe oferecesse, quando tirou duas batatas do saco. Olhou para o lado e viu que o fogão estava desligado, não fazia ideia como ligava o fogo para cozinhar as batatas e muito menos os passos que era cozinhar as batatas. Bateu os pés de ódio e olhou para a galinha.

— O que acha Carijó? Mal não há de fazer não é? - deu um sorriso amarelo e com a fome que estava mordeu a batata crua.

Estava mastigando com ódio e ouvindo a barriga roncar quando seu irmão entrou na cozinha.

— Ah rá! Sabia! Sabia! - ela se sobressaltou de susto e olhou brava para ele. - Tá morrendo de fome ao ponto de comer batata crua?

Ele começou a rir e Clara ergueu seus ombros tentando pensar numa desculpa para se sentir soberana.

— É claro que não estou com fome, eu só… eu só… sofro de gastrite aguda, como nosso avô Batista e morder batata crua é a única coisa que melhora meu estômago.

Júnior sacudiu a cabeça em negativa, sabia que era mentira, mas era uma ótima mentira ao ponto dele não conseguir contestar.

— Pois acho que tá morrendo de fome sim ao ponto de parecer um fantasma de tão pálida que tá.

— Você que parece uma assombração aparecendo na cozinha essa hora.

— Eu tava indo tirar leite das vaca, porque eu trabalho nessa fazenda, o contrário d'ocê.

— Ah quer saber? Vou voltar a dormir…

Clara deixou a batata crua mordida para trás e começou a se encaminhar para o quarto que o pai tinha reservado para si, não o quarto que ela dormia com ele. Pensou nas palavras: vaca e leite. Seu estômago revirou de fome de novo e sorrateiramente, saiu da casa sem que seu irmão fosse atrás.

Observou o galpão de queijo vazio e o curral onde as vacas dormiam. Quando viu um senhor tirando leite. Ela sabia que era o marido de Neca e resolveu fazer uma tentativa.

— Bom dia. - cumprimentou o mais meiga que conseguiu.

— Muito bom dia fia do seu Petruchio.

Clara sorriu e apontou pro balde que ele colocava leite.

— É daí que vem o leite? Das vacas?

— Ara, mas menina das Europa não sabe da onde vem leite? - ele começou a rir.

— Achava que vinha nas garrafinhas da padaria. - ela respondeu inocentemente.

— E como elas vão parar lá? Vindo da vaca. - ele continuava a rir. - Deve de nunca saber o gosto real do leite né? Leite de cidade nem tem gosto de leite. É aguado.

— Não sei mesmo o gosto do leite. Nunca bebi vindo da vaca assim.

— Ara! Mas experimenta.

Vicenzo pegou uma caneca e começou a encher direto tirando leite da vaca. Clara viu a caneca se enchendo, a espuma se formando e sua barriga roncando cada vez mais alto. Ele lhe entregou a caneca e ela bebeu sem nojo algum com a fome que estava desesperadamente. Bebeu tão rápido que mal sentiu o gosto aveludado e doce do leite.

— Ocê tá com bigode. - ele informou sorrindo.

— Bigode? - Clara passou a língua em seu lábio limpando o bigode de leite. - O senhor não coloca um pouco mais para mim?

Clara por fim bebeu três canecas de leite. Ouviu passos e resolveu sair dali.

— Olha se o chato do meu irmão aparecer não diga que bebi leite tá?

— Ara, se ocê não quer que eu diga eu não digo.

— Obrigada. - ela saiu aos tropeços do curral e deu de cara com Júnior.

— Ocê não ia pro quarto? - perguntou desconfiado.

Clara passou a mão rapidamente no rosto tentando tirar qualquer resquício de leite e colocou a galinha que ainda permanecia em seu colo no chão.

— Vim tomar a fresca, Carijó precisa de ar. - apontou a galinha. - Aí garoto, para de cuidar da minha vida!

Júnior continuou a olhar desconfiado pra ela, Clara simplesmente o ignorou e deixou que a galinha ciscasse e foi atrás dela. Carijó II entrou no galpão de queijo e Clara pôde ver a quantidade de queijo produzido. Alguns estavam dependurados secando. Alguns estavam nas prateleiras prontos para serem entregues. Seu estômago rugiu novamente, olhou para o lado para ver se seu irmão estava por perto, pegou um queijo e comeu ele, saboreando cada mordida. Ele derretia em sua boca e ela pensou que nunca havia comido um queijo tão delicioso como aquele.

— Bom dia, ocê já tá acordada? - Clara se assustou com a voz de Neca na cozinha assim que voltou para dentro de casa.

— Fui levar a Carijó para dar uma passeada. - explicou apontando a galinha que estava em seu colo.

— Mas ocê deve de tá morrendo de fome, não jantou. Quer uma broa com manteiga e café?

— Não, tenho meu orgulho se meu pai não quer que eu coma sem trabalhar eu não como e estou sem fome. - ela virou as costas para Neca.

— Espere. - Neca se encaminhou até um armarinho no canto direito da cozinha e abriu para que Clara visse. - Ocê parece muito a sua mãe e sua história parece muito a dela. Eu não admito o seu Petruchio deixando ocê com fome só pra trabalhar.

— De fato, é um absurdo mesmo. Trágico demais até para mim! - ela colocou a mão no peito. - Mesmo eu não tendo muita fome.

— Memo assim vou deixar um prato de comida pr'ocê toda noite aqui. Se ocê sentir fome ocê come. - Neca sussurrou.

Clara arregalou os olhos, teve vontade de abraçar ela, mas se conteve e concordou com a cabeça, virou as costas e se encaminhou para seu quarto. Petruchio viu a filha saindo da cozinha e encarou Neca.

— Essa menina vive de brisa seu Petruchio.

— De brisa, de brisa, ela é muito da esperta igual a mãe. - Petruchio concluiu. - Não tá ajudando ocê na cozinha?

— Não seu petruchio, nem perguntá ela perguntou o que era pra fazê.

— Pois ocê vai me prometer que não vai dar comida pra ela.

Neca piscou duas vezes e deu um passo pra trás, cruzou os dedos atrás de suas costas e respondeu:

— Se o senhor não quer que eu dou, eu não dou.

— Acho bom, acho bom, Catarina não educou ela, vou ter que fazer isso.

Neca concordou com a cabeça vendo o patrão sair porta a fora para tirar leite.

Calixto havia conversado com Mimosa boa parte da noite, a esposa estava tão preocupada com o estado de Catarina que ele ficou pensando consigo como introduziria o assunto da ex-mulher ao patrão. Queria o convencer a ir atrás dela, conversar ou pelo menos a convencer de comer. Ele não precisou introduzir o assunto, pois enquanto tirava o leite com o amigo de anos, Petruchio resolveu desabafar.

— Catarina mimou a Clara demais Calixto, demais… - confessou cansado. - Sabe que nem dormi no próprio quarto ela consegue dormir?

— Uma menina daquele tamanho tem medo de fantasma? - Calixto perguntou.

— Eu não sei se é medo, eu só sei que ela me agarra e me pede tremendo pra não abandonar ela, que ela não consegue dormir sozinha e eu… eu… ah Calixto, quinze anos sem saber que tinha uma filha, eu faço o que ela pede. - ele deu dê ombros.

— O senhor é mole com ela heim seu Petruchio, depois diz que dona Catarina mimou ela.

— Mas que mimou a Catarina mimou, nem ajudar na cozinha ela não ajuda. Deve de tá comendo escondida. - ele coçou a barba. - Mas eu educo ela, eu educo!

Calixto tirou seu chapéu e pensou como falaria o que queria falar ao patrão.

— ...De certo dona Catarina quis suprir o falta do pai, aí deu tudo o que a menina pedia.

— Mas Júnior nunca teve mãe e ele não é mimado como ela.

— Mas Juninho é homem, homem não pode ser mimado não. E a menina tem a personalidade dela.

Petruchio bufou diante do que o velho amigo dizia, sabia que Calixto tinha razão.

— Pior que é, eu olho ela e só vejo Catarina, tá andando com Carijó debaixo do braço pra tudo quanto é lado…

— Não sabe cozinhar, nunca pegou numa vassoura, vive de nariz empinado, igualzinha dona Catarina quando chegou aqui…

Petruchio negou com a cabeça sabendo que tudo era verdade.

— Como vou esquecer ela? Como vou esquecer ela assim?

— O senhor não esqueceu ela nem nos quinze anos separados. Acha que depois de abraça e beijá ela há de esquecer?

Calixto havia tocado na ferida. Por mais que Clara lhe lembrasse a ex-mulher, o cheiro dela, o gosto de seu beijo e as promessas que fizeram no dia que se acertaram ainda estavam em seu pensamento. E isso ele não conseguia apagar.

— Mas eu vou esquecer, vou pegar uma borracha e apagar tudo.

— Sabe o que é pior seu Petruchio? É que se acontecer algo pior o senhor vai ficar com remorso.

— Arriégua, remorso? Do que tá falando? - Petruchio olhou para Calixto sem entender nada.

— Catarina tá doente seu Petruchio, muito doente… Mimosa me disse que a febre não cessa e ela não quer comer.

— Arri! Até ocê vai me infernizar com esse assunto?

— Se dona Catarina virar caveira, as caveiras de seu pai e de sua mãe ão de chacoalhar de desgosto no cemitério por deixar morrer a mãe de seus filhos…

— Mas para de falar das caveiras de meu pai e de minha mãe que ocê sabe que eu não gosto.

— Mas eu falo, eu falo sim, porque é muita ingratidão! - Calixto ergueu o queixo diante do patrão, Petruchio olhou desconfiado para ele. - O que eu sei, que quando era o senhor doente, dona Catarina ponhou ordem nessa fazenda não deixando nois morrer de fome e cuidou do senhor… e agora…

— Agora o que Calixto?

— Agora o senhor tá com medo de ver ela doente, é isso. Falei o senhor gostano da verdade ou não! - Calixto bateu as mãos uma na outra e Petruchio se aproximou dele nervoso.

— Medo? Eu? Com medo? Eu?

— Medo sim, medo sim, porque o senhor não quer ver a verdade na sua frente, encarar dona Catarina é a mema coisa de encarar a verdade. E a verdade te dá medo!

— Oh Calixto, ocê para de zurrar besteira que medo de Catarina eu nunca tive e nunca vou ter. - Ele cutucou Calixto no ombro. - E se ela tá doente a culpa é dela. Ela que mentiu pra mim de minha filha, ela que ficou na chuva.

Ele engoliu em seco, lembrando-se dela molhada na chuva tentando lhe explicar tudo, dela tocando em seu rosto pra ver se ele não estava com febre.

— Pois o senhor não passa de um covarde. Um covarde que não quer encarar ela pelo fato de não querer saber os motivo!

— Motivo? E olha que não sou covarde não!

— Os motivo que fizeram ela sair do Brasil de verdade! Mimosa sabe que não foi pouca coisa, e se tem alguém que pode sabê disso é só o senhor, mas o senhor é tão covarde que nem vai lá escutar ela! - Calixto o cutucou no ombro e Petruchio olhou nervoso para ele.

— Covarde não sou e se quer saber eu vou lá falar com ela sim. Vou porque não tenho medo de mulher nenhuma e de passado nenhum. Muito menos de Catarina! - ele saiu bufando do curral.

Calixto deu um sorriso de lado.

— É só provocar ele que ele vai. - ele bateu as mãos uma na outra e voltou ao trabalho de tirar leite.

xx

Júnior voltou para seu quarto, reparou que Neca e Mimosa trabalhavam sozinhas na cozinha e ainda podia permanecer com a desculpa para o pai de não ir à escola enquanto a irmã não trabalhasse. Mas tinha a carta da mãe, a carta que ele recebeu de Mimosa na noite anterior...

Ele não ia abrir, ia rasgar, queimar, jogar no fundo do poço para que não tivesse como resgatar as palavras depois. Mas seu sentimento, o carinho que sentiu pela mãe ao conhecê-la, as confidências que trocaram, mesmo ela estando disfarçada e a conexão imediata com ela, lhe fizeram ler o papel quase na mesma hora em que Mimosa deixou seu quarto na noite anterior.

Agora, com o papel em mãos, já havia quase decorado as palavras ali escritas. Era a mesma letra da carta anterior que havia lhe deixado em seu nascimento e representava tanto para si que Júnior não sabia o que fazer, quais seriam seus próximos passos.

Abriu o papel e resolveu reler.

"Lisboa 16 de outubro de 1936

Olá meu filho, feliz aniversário, sei que nunca receberá essa carta, mas lhe escrevo para eternizar minhas memórias e meus sentimentos. Penso em você todos os dias, mas o dia de seu nascimento é diferente e tão imensurável em significados para mim.
É verão e o sol nos convidou para vir até a areia, brincar de construir castelos e a boiar em meio às ondas. Seria injusto eu lhe dizer que ensinei sua irmã a boiar no mar e que você jamais terá esse momento comigo, você cresceu sem mim e eu queria lhe dizer o porquê. Eu queria lhe dizer o porquê nunca lhe peguei no colo, o quanto me dói até hoje a sensação de ter metade do meu coração arrancado de mim, ter o mundo e lhe perder no mesmo momento. Eu queria lhe dizer o porquê nunca olhei seu rosto, fico imaginando sua imagem, sua voz, sua personalidade e seu jeito. Eu queria lhe dizer o porquê eu parti, o porquê fui para longe com sua irmã e te deixei com o seu pai, mas nunca poderei. Então guardo comigo esses momentos em pensamentos, em lembranças que o tempo não pode tocar porque foram construídas por mim...

Eu e você…

Boiando enquanto as ondas nos atravessam…

Eu e você…

Construindo castelos na areia, escrevendo nossos nomes na areia da praia e torcendo para a onda não destruir...

Tudo na vida é muito efêmero, como as ondas que destroem os castelos de areia, as mesmas ondas que apagam nossos nomes na areia, mas o meu amor por você é eterno.

Com todo meu amor, sua mãe.
Catarina Batista."

Ele queria entendê-la. Entender seus motivos para partir, se seu amor por si era de fato eterno e se todos os anos separados fizeram ela o amar mais. Seu coração se enchia de dúvidas e incertezas e ele tomou a decisão.

Voltaria para a escola, tomaria coragem e deixaria a mãe se aproximar dele aos poucos, mesmo que lhe doesse um pouco, era melhor deixar a ferida cicatrizar encarando tudo de frente e não se escondendo.

Petruchio se surpreendeu ao encontrar o filho com a filha, ambos prontos para irem à escola, ele não sabia que Júnior seria tão pacífico em chegar a ir a escola sem que Clara ajudasse nas tarefas domésticas, pois ele tinha certeza que Júnior sabia que ela não ajudava nas tarefas. Resolveu não perguntar o porquê dele ir estudar. Queria que ele fosse. Queria que ele aprendesse e crescesse em seu aprendizado e queria que posteriormente ele não lhe cobrasse se a irmã tivesse mais conhecimento que ele.

Chegaram juntos no portão da escola, Júnior ignorou a irmã deixou que o pai lhe ajudasse a descer da carroça, Clara deu um beijo na bochecha do pai e marchou ao lado do irmão nervosa.

— Vê se me esquece nessa escola. Finja que eu não existo, não quero que os outros saibam que eu tenho um irmão jeca.

— Ah rá! - Júnior começou a rir pra ela, enquanto via a irmã andar na sua frente a passos rápidos. - Eu vou é gritar pra todo mundo que ocê é minha irmã, ou seja, uma jeca!

Clara bufou e trombou com Miguel, ele segurou os ombros dela e viu que a amiga estava brava, mas também triste.

— C-C-Clara, co-o-omo es-s-sta?

— No paraíso Miguel! No paraíso! - ela saiu dos braços dele nervosa. - Me deixa!

Júnior riu mais quando viu a irmã se desfazer do amigo dela raivosa.

— E aí capacho gago? Ainda não cansô de ir atrás dessa ardida?

Miguel olhou para ele chateado, preferiu não responder.

— Olha, da pra ver que ocê gosta dela, não sei como, mas gosta dela.

— C-c-como ami-i-i-ga. - Miguel remendou.

— Com a idade que nois tem não dá mais pra gostar de uma mulher como amiga. - Miguel suspirou sem saber como o contradizer. - A sua sorte é que eu gosto d'ocê. Vou te ajudar. - Ele bateu nos ombros de Miguel.

— M-m-me aju-u-u-dar? - ele perguntou receoso.

— Confia em eu.

Miguel não sabia o que dizer, como o contradizer ou negar tudo. Aceitou a possível amizade com o irmão de Clara.

xx

Mimosa e Bianca suspiravam olhando Catarina dormindo na cama, estavam preocupadas pois a febre não baixava, por mais remédios que faziam ela beber, sua febre persistia.

— Eu não sei o que fazer Mimosa, não sei mais o que fazer, o médico disse que teremos que internar ela se Catarina não reagir aos medicamentos.

— Ela não come Bianca, ontem se recusou a tomar o remédio. É pior que uma criança teimosa.

— Crianças são vocês, me deixem em paz! - Catarina respondeu ainda de olhos fechados. Bianca sentou-se na beira da cama, segurou a mão dela.

— Minha irmã, abra os olhos, reaja! Você precisa reagir Catarina!

— Abrir os olhos para quê? Reagir para quê? Se as pessoas que quero ver não ligam pra mim. Vou acordar e reagir para quê se quando acordo eu estou vivendo num pesadelo, prefiro o mundo dos sonhos em que posso criar uma outra realidade para mim.

Bianca olhou chorosa para Mimosa sem saber o que falar ou como agir para ajudar a irmã. Ambas já haviam feito de tudo para que os filhos e Petruchio a visitassem. Estavam de mãos atadas esperando que o destino fosse bom com Catarina.

xx

Júnior acabou se unindo a Miguel, não eram melhores amigos, mas se apoiavam. Por serem bolsistas, Miguel ser gago e Júnior ter sotaque caipira, ouviam cochichos e olhares tortos dos outros alunos, pela primeira vez em muito tempo, Miguel não se sentiu indefeso, só sentia-se assim quando Clara estava por perto que não deixava ninguém o ofender por ser gago, mas como a amiga estava brigada com ele e triste pelos cantos se recusando a conversar consigo, resolveu receber o apoio do irmão dela. Se surpreendeu no intervalo ao descobrir que ele conhecia Elisa.

— Até que enfim voltou! - Elisa comemorou seu retorno.

— É… aconteceu umas coisas na minha vida e acho que voltá, vai ser melhor pra eu. - ele deu dê ombros explicando a amiga.

Estavam no pátio, Miguel observava os dois conversarem depois de muito tempo sem se verem.

— Encontrou sua mãe?

— Encontrei… e não foi bem como eu imaginava…

Miguel observava a cumplicidade deles em silêncio, Júnior explicava a Elisa como encontrou a mãe e como tudo saiu do controle no dia que soube quem ela era de verdade.

— ...Você devia tentar ouvi-la de novo. Mãe é mãe! Mãe está aqui pela gente por tudo.

— I-i-isso é ver-r-rdad-d-de. - Miguel concordou.

— Estava melhor da gagueira Miguel, o que aconteceu? - Elisa o olhou preocupada, lembrava-se que cada dia mais ele completava suas frases quase sem gaguejar todas as palavras, então se lembrou do amigo abalado no dia anterior depois que Clara esbarrou consigo. - Eu sei o porquê. Aquela sua amiga a Clara que me odeia. Toda vez que vê ela sua gagueira piora.

— É porque ele gosta dela e fica nervoso por causa dela.

Miguel olhou bravo para os dois que sorriam para ele.

— N-não é b-b-bem a-a-a-assi-i-im!

— É pior, acredita que ela é minha irmã Elisa?

Continuaram conversando o resto do intervalo. Clara observava de longe o trio e não entendia o que eles diziam. Não tinha feito amizade com nenhuma garota da escola, sentia-se cada vez mais sozinha e frustrada com sua vida. Só não chorava de ódio porque tinha seu orgulho.

Já no período da tarde, Júnior e Clara subiram na carroça discutindo quando o pai veio lhes buscar, ao invés de irem almoçar na fazenda acabaram na loja. Petruchio deixou eles lá.

— Preciso que fiquem um pouco aqui, tenho um lugar pra ir. E não tinha ninguém pra atender aqui na loja enquanto estou fora.

— Não há problema pai, por mim eu vinha direto na loja trabalha depois da escola.

— Bom, eu só espero que não briguem ao ponto de destruírem o estoque da loja de novo, não estamos rasgando dinheiro.

— Diga isso a ela, que fica um pouco nervosinha e começa a tacar tudo o que vê pela frente.

— Diga isso a ele, para não me irritar! - Clara fuzilou Júnior com o olhar.

— Arriégua! Não briguem! - Petruchio bateu a mão na mesa para chamar a atenção de ambos. - Eu não demoro.

Viram o pai sair da loja e sentaram-se separados a fim de evitarem confusão.

Petruchio precisava ver Catarina, as palavras de Calixto ecoaram em sua cabeça a manhã toda enquanto entregava os queijos e atendia os clientes da loja. Não estava pronto para ouvir suas desculpas, a dor pela mentira ainda lhe atingia a alma, mas lhe devia uma visita, pelas semanas que cuidou de si na fazenda enquanto esteve doente. Precisava vê-la.

Então com a coragem que não sabia que tinha, tocou o sino da casa de Bianca e quando viu a ex-cunhada o receber com o maior sorriso de alívio, previu que as coisas não andavam bem.

— ...Ela não come Petruchio…

— ...Ontem se recusou a tomar até o remédio… - continuou Mimosa.

— ...Se recusa a abrir os olhos, estamos desesperadas.

Petruchio concordou com a cabeça ouvindo as duas na sala e levantou as mãos pedindo calma.

— Eu vou falar com ela. Vou falar com ela.

xx

Clara estava atrás do balcão observando seu irmão atendendo os clientes que entravam na loja, era sempre gentil, todo sorrisos, pedia para eles provarem os produtos e acabava vendendo pouco. Ela fez não com a cabeça e revirou os olhos quando o último cliente provou todos os produtos e saiu sem comprar nada.

— Você é um péssimo vendedor. - exclamou.

— Eu sou o melhor vendedor da família garota. Vê se não se mete onde não tem experiência de nada.

Clara resolveu não retrucar, esperou o próximo cliente aparecer. Quando uma senhora entrou na loja, correu para atendê-la antes que o irmão o fizesse.

— Boa tarde, a senhora conhece os sabores da fazenda Santa Clara?

— Boa tarde mocinha, já provei o queijo, mas comprei na feira e não aqui, soube que vendem outros produtos, gostaria de provar.

Clara concordou com a cabeça e pegou um requeijão embalado e mostrou a ela.

— A senhora está com sorte, hoje na compra de um de nossos queijos você ganha vinte e cinco por cento de desconto no preço do requeijão de corte. - a mulher olhou pra ela surpreendida. - Todos os dias temos promoções. Nunca provou nosso requeijão de corte? Delicioso, derrete na boca. Eu, que morei na Europa minha vida inteira, nunca comi queijos tão saborosos como os da fazenda Santa Clara.

Júnior ergueu as sobrancelhas desacreditado nas falas da irmã, mas não a retrucou.

— Olhe e na compra de dois requeijões, a senhora ainda ganha um pote pequeno de iogurte natural.

— Ora mocinha, adorei você.

A senhora acabou comprando três queijos, dois requeijões de corte, e dois doces de leite, pois Clara disse que dava desconto no segundo pote.

Quando recebeu o dinheiro em mãos, foi até o irmão e esfregou as notas no nariz dele.

— Minha primeira cliente e ganhei mais dinheiro do que você. - ela riu e ele emburrou sua feição e cruzou os braços no corpo.

— O tanto de desconto que ocê deu? Deu mais mercadoria de graça.

— Está com inveja, está com inveja porque eu vendi tudo aquilo só por boca, sem ela provar nada. Sou muito melhor do que você para negócios.

Júnior tinha que admitir que pelo menos um dom a irmã tinha.

xx

Petruchio entrou no quarto e observou Catarina deitada na cama, estava pálida, mais magra do que se lembrava e tinha as pálpebras escuras. Dormia, um sono tão tranquilo que mal dava pra notar sua respiração. Seu coração se apertou. Apesar de todas as dores pelas mentiras de anos, ele não podia dizer que era ignorante a ela. Vê-la frágil, como um vaso em sua própria mão, lhe causava dor.

— Oh Catarina… - sentou-se na beirada da cama e tocou suas bochechas. Tirou uma mecha que caia sob seu rosto e passou os dedos pela sua testa, que estava quente. - Meu favo de mel, ocê precisa melhorar.

Catarina mexeu o corpo, sentiu um aroma familiar de queijo, pensou estar delirando. Sonhava com a fazenda e os tempos que passou lá, devia ser uma peça de sua imaginação. Quando abriu os olhos, viu a mão áspera que tanto conhecia tocando seu rosto.

— Petruchio, você está aqui. - falou com a voz fraca olhando o ex-marido nos olhos.

— Estou. - ele concordou com a cabeça, sentindo Catarina segurar sua mão fortemente, como se não acreditasse que ele de fato estivesse lá. - Tô é preocupado com ocê. Que história é essa de estar doente e não tomar remédio? Nem comer?

— Eu… eu… preciso conversar com você. Há tantas coisas que preciso lhe dizer. Te contar. - Catarina sentou-se na cama com um pouco de dificuldade. Petruchio levantou e pegou um travesseiro colocando nas costas dela. - Você veio me ouvir…

— Eu… eu… - não sabia se estava preparado para voltar a noite da briga, ainda estava com dor em seu coração, remoendo tudo. - Depois… depois d'ocê comer, tomar os remédios e melhorar. Depois de tudo, a gente conversa, Catarina. - ela negou com a cabeça triste. - Eu prometo pr'ocê, prometo até conversar sem brigar. Te escutar. Não hoje.

— Você ainda está chateado comigo? - perguntou preocupada sentindo sua garganta se fechar.

— Ocê vai primeiro tomar seu remédio. - ele foi até a cômoda e lembrando das instruções de Mimosa, mediu o remédio numa colher e levou até ela.

— Eu sei que menti, foi horrível esconder a Clara de você. Mas eu sempre lembrava de você quando olhava pra ela, lembrava de você escolhendo o nome, dos nossos planos para o futuro, sua felicidade em saber que ia ser pai…

Ouvir Catarina falar do passado mexia em feridas nunca cicatrizadas. Doía.

— Não vamos falar disso agora…

— Como ela está se adaptando à fazenda? Eu nunca dormi nenhum dia longe dela. Meu filho ainda está bravo comigo? Ele disse que nunca mais queria me ver.

— Tome. - Petruchio limitou-se a dizer colocando a colher do remédio na boca dela. - Clara está bem, se adaptando a tudo. Júnior foi para a escola hoje depois de muito tempo sem ir. E ocê trabalha lá, eu sei, que com o coração que ele tem, que é pra ver ocê…

— Será? - perguntou esperançosa.

— Eu não vou te negar meus filhos, ocê é mãe, não vou separar ocê deles, então precisa comer, melhorar, sair dessa cama e conquistar eles de volta.

Ela concordou com a cabeça observando ele pegar um prato de sopa no criado-mudo.

— E você? - perguntou esperançosa, deixando que ele lhe desse uma colherada de sopa na boca.

— Eu não consigo te perdoar agora. Dói demais pensar em todas as mentiras… - ela segurou a mão dele sentindo Petruchio um pouco trêmulo. - Eu não consigo falar com ocê sobre o passado, agora eu só consigo falar do presente e no momento eu preciso que melhore. Melhore para depois a gente falar do futuro.

Catarina sentiu seus olhos embargarem, concordou com a cabeça, era um fio de esperança que fazia ela subir à superfície e respirar. Se agarraria a esse fio, melhoraria e recuperaria sua família novamente.

 


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