South escrita por Venus


Capítulo 1
Tempestade


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/802122/chapter/1

Mayuri observava as nuvens escuras que começavam a se formar no horizonte com atenção. As pernas da garota balançavam no ar, metros acima do chão, conforme ela se inclinava ainda mais em direção ao vazio, tentando distinguir os detalhes das pesadas sombras que tomavam o céu.

—Vai cair se continuar tão distraída- Kyane provocou, escalando o iceberg para se posicionar no topo, ao lado da amiga- Sorte sua que cheguei para te salvar.

Mayuri revirou os olhos, recolhendo as pernas e ajeitando a postura.

—Acredite, eu tinha tudo sob controle- ela garantiu, se afastando da borda do iceberg e caminhando com cuidado em direção à outra- Deveríamos voltar para a Tribo logo. Uma tempestade terrível está se aproximando, e precisamos avisá-los.

Kyane fez um gesto de pouco caso.

—Água não costuma ser um grande problema para nós- ela debochou, e Mayuri riu.

—Não, mas creio que dessa vez será mais chuva do que podemos conter- ela comentou, e Kyane fez uma careta.

—Tão ruim assim?- ela perguntou, e Mayuri assentiu- Nunca vou entender como você consegue adivinhar tanta coisa só olhando para algumas nuvens. Mas, já que você diz, eu confio.

Kyane era jovem. Estava nos últimos anos da adolescência, e tinha a mesma idade de Mayuri. Seus cabelos negros possuíam um corte curto, com uma franja cobrindo parcialmente o rosto delicado. Tinha pele escura e olhos castanhos, e era baixa e esguia, o que contribuía para sua agilidade tremenda e sua elevada efetividade em batalha. Kyane era uma das melhores guerreiras da tribo, e frequentemente ficava com a função de caçar, o que ela provavelmente estava fazendo alguns minutos antes, uma vez que era possível constatar o vislumbre de uma pata saindo de sua bolsa.

—Então vamos ter guisado no jantar?- Mayuri perguntou, indicando a bolsa com um gesto de cabeça.

Kyane concordou, com um sorriso animado.

—Vamos! Thalya comentou que queria testar uma receita nova, espero que fique boa, como sempre- ela disse.

Mayuri riu, começando a descer o iceberg. A cada passo que dava, usava de sua dobra para criar um pequeno degrau no gelo, evitando uma possível queda. Kyane a seguia cuidadosamente.

—Thalya não costuma errar quando o assunto é comida- Mayuri disse, criando o último degrau antes de conseguir saltar para a plataforma de gelo mais próxima- Mas agora vamos logo, temos que chegar antes da tempestade.

Kyane assentiu, também saltando.

—A última a chegar tem que limpar a caça?- Kyane propôs, encarando a silhueta vaga da Tribo no horizonte.

Mayuri abriu um sorriso travesso.

—No três?

—Um...

—Dois...

Mayuri não esperou pelo fim da contagem, e disparou a correr à frente da amiga. Sabia que não tinha chances contra Kyane se fosse jogar conforme as regras de seu jogo, e não era do tipo que gostava de perder.

Kyane fez uma careta, mas não perdeu tempo, e logo começou a correr atrás da amiga. Não estava particularmente disposta a limpar a caça naquele dia.

De volta à Tribo, Thalya tentava ensinar algumas técnicas de dobra às crianças que possuíam tal dom. A maioria parecia estar se saindo bem, mantendo o pequeno chicote de água suspenso no ar sem grande dificuldade. A aluna mais problemática, ironicamente, era justamente a mais velha.

Lunyi tinha a idade de Thalya, ou seja, apenas um ou dois anos mais jovem que Kyane e Mayuri, mas era uma verdadeira negação em dobra. As quatro jovens acabaram tendo muitas responsabilidades para com a Tribo desde que grande parte dos adultos saiu para repelir investidas da Nação do Fogo em uma tribo vizinha, e Lunyi em geral cumpria com seu dever, mas, mesmo após meses e meses de insistência, não conseguia apresentar grandes avanços em sua técnica de dobra de água. O que era irônico, na visão de Thalya, tendo em vista que sua amiga era uma das melhores curandeiras da tribo, mas ainda assim não conseguia manipular a água de maneira minimamente ofensiva.

Lunyi tinha cabelos acobreados, pele clara e olhos escuros. Era alta e esguia, assim como Thalya, contudo, essa era a única semelhança física que compartilhavam. Thalya tinha cabelos cacheados e escuros, e pele morena.

Naquele momento, Lunyi parecia terrivelmente concentrada, com uma expressão sofrida em seu rosto, e a postura ainda mas retesada do que de costume.

—Muito bom, crianças!- Thalya elogiou, conforme caminhava entre os alunos, observando o progresso de cada um- Acho que por hoje é só, mas teremos mais lições amanhã.

Assim que isso foi dito, as crianças começaram a se dispersar, e Thalya se aproximou de Lunyi para falar com a amiga. Lunyi então desfez o chicote de água e sorriu, aliviada por não tê-lo derrubado, como da última vez.

Antes que qualquer uma delas pudesse iniciar um diálogo, contudo, Thalya viu Kyane e Mayuri adentrando o pátio da Tribo em alta velocidade, com Kyane correndo um pouco à frente da outra.

Mayuri tinha estatura mediana e cabelos castanhos ondulados, que caíam até seus ombros. Sua pele era clara, e seus olhos, intensamente verdes. No momento, seu rosto estava corado devido ao esforço da corrida, e ela caminhou até as outras meninas com uma careta, assim que percebeu que Kyane havia chegado primeiro.

—O que vocês apostaram dessa vez?- Lunyi perguntou, observando as amigas com um sorrisinho entretido.

Mayuri mal conseguia falar, de tão ofegante, então foi Kyane quem respondeu:

—Mayuri irá limpar a caça para mim. Como uma cortesia.

Thalya riu.

—Não sei se fico triste por ela ou feliz por mim. É inegável que ela faz um trabalho bem mais caprichoso do que o seu- ela comentou, e Kyane fez uma careta.

—Vencedores não precisam saber limpar a caça. Sempre haverá alguém que o faça por eles- ela replicou, e Mayuri riu.

—Isso mesmo, Kya, fique se vangloriando. Assim mal irá notar quando minha vingança terrível chegar- ela ameaçou, e todas as garotas riram.

—Sempre soube que era você quem atraía as tempestades como forma de vingança. Muito suspeito que sempre acerte quando elas estão chegando- Kyane debochou, e todas riram, menos Mayuri, que arregalou os olhos.

—Minha nossa, é mesmo, eu já estava quase me esquecendo de avisar dessa vez! Uma tempestade se aproxima, meninas. Deveríamos tomar alguma providência antes de começarmos a fazer o jantar- Mayuri disse, e Thalya deu de ombros.

—Bem, não deve ser nada com que se preocupar, então acho que podemos ir fazendo o jantar, e, quando as nuvens estiverem mais próximas, lidamos com elas- ela disse, e as outras pareceram concordar, ainda que com alguma relutância por parte de Mayuri.

Obter e preparar a comida do restante da tribo era uma das obrigações que ficara a cargo das garotas desde que a vasta maioria dos adultos havia se ausentado. Os que ficaram para trás eram crianças, idosos e mulheres grávidas, que ajudavam como podiam, mas a parte mais pesada do trabalho havia inevitavelmente ficado com as moças. Eram as únicas em idade de lutar que não haviam deixado a Tribo junto com os outros, talvez por serem jovens demais, talvez porque alguém simplesmente precisava ficar para trás. Thalya procurava pensar nisso como um privilégio, afinal, elas estavam em um cargo de relativa liderança e de muita importância, tendo que proteger e cuidar de todos aqueles incapazes de se protegerem sozinhos, mas, por vezes, as tarefas eram exaustivas demais para tão poucas pessoas, sobretudo tão jovens.

Mayuri limpava a caça com facilidade e até mesmo uma certa graça, manejando a lâmina de sua pequena faca quase que como uma extensão dos próprios dedos. Enquanto isso, Thalya já colocava a água para ferver, e Lunyi colhia algumas ervas da pequena horta com a ajuda de Kyane.

—Consegui tirar o couro inteiro- Mayuri comentou, entregando a carne limpa para Thalya- Acho que dá para fazer um gorro.

Lunyi, se aproximando da fogueira com uma cesta cheia de ervas aromáticas, encarou o pedaço de couro que secava sobre uma pedra.

—Daria um cachecol bonito, também- ela constatou, começando a cortar os temperos- Mas branco não é minha cor, me deixa pálida demais. Você não estava precisando de agasalhos novos, Kyane?

A moça citada, que agora usava de sua dobra para ajudar Mayuri a lavar as mãos, ergueu o olhar.

—Estava. Um urso revoltado rasgou meu casaco e meu cachecol favoritos com as garras. Não deu para resgatar quase nada do tecido- ela lamentou, e Mayuri soltou uma risadinha.

—Bem, é isso o que você ganha por ser tão atrevida. Achou mesmo que conseguiria lidar com o urso sozinha?- ela provocou, e Kyane fez uma careta.

—Meu pai já conseguiu antes, não vejo porque eu não conseguiria- ela respondeu, e Mayuri arqueou uma sobrancelha.

—Seu pai é o melhor caçador da tribo, ele não conta- a garota disse, e Kyane fez careta.

—Caçar é de família. Um dia eu ainda vou conseguir.

—Ser um grande dobrador também é um traço da minha família, e olhe só para mim- Lunyi resolveu entrar na conversa, com um tom irônico.

Todas riram.

—Ainda vou conseguir te ensinar tudo o que sei. Não há aluno tão difícil que eu não possa consertar- Thalya disse, e Lunyi arqueou uma sobrancelha.

—Duvido muito. Mas espero que você esteja certa.

Após alguns minutos, todos os ingredientes estavam no caldeirão sobre a fogueira no meio do pátio da Tribo. A refeição ficaria pronta dentro de algumas horas, pouco depois do anoitecer, se o cozimento levasse o tempo habitual.

—Está ficando com um cheiro bom- Lunyi comentou, e Thalya sorriu, convencida.

—Claro que está, fui eu quem fiz.

Lunyi revirou os olhos, mas riu.

—Thalya está cada dia mais metida- Kyane provocou, e Thalya arqueou uma sobrancelha.

—Olha quem fala!- ela retrucou, mas, antes que Kyane pudesse retribuir à provocação, iniciando um pequeno embate, Mayuri as interrompeu:

—Meninas? Acho que a tempestade está chegando- ela constatou, apontando para o céu, que exibia nuvens pesadas e escuras, se aproximando cada vez mais depressa da tribo.

Ao ver isso, Thalya arregalou os olhos.

—Minha nossa, May, por que você não avisou que eram tantas assim?- ela perguntou, e Mayuri fez uma careta.

—Eu avisei que seria bom lidarmos com isso antes de começarmos a fazer o jantar- ela replicou, mas Thalya a ignorou, começando a andar em direção ao horizonte.

—Vamos logo, o que estão esperando?- Thalya reclamou- Temos que salvar nossa sopa de ser destruída por essa tempestade. Antes que seja tarde demais.

Kyane e Lunyi a seguiram imediatamente. Mayuri ficou um pouco para trás, resmungando, mas logo as seguiu também.

Afastar tempestades da tribo era algo que as garotas haviam observado os adultos fazerem por diversas vezes, mas que haviam efetivamente feito apenas algumas, e nunca antes com tantas nuvens. Costumavam deixar as chuvas mais brandas passarem pela tribo, mas tempestades como aquela destruiriam as barracas e a horta, então não havia opção se não tentar.

Caminharam por algumas centenas de metros, até que chegaram ao limite das nuvens, onde um vento forte e algumas gotas de chuva já começavam a se manifestar.

—Essa é das bravas!- Kyane observou, tentando colocar seu cabelo, que voava encima de seus olhos, de volta no lugar.

—Por isso mesmo precisamos desviá-la da tribo!- Thalya constatou- Vamos lá, não temos muito tempo.

Ela ergueu as mãos para o céu, tentando se concentrar ao máximo na nuvem mais próxima. Nuvens não passavam de água, ela pensou, tentando mentalizar a figura maciça e ameaçadora acima de sua cabeça como não sendo tão diferente das ondas, que normalmente movia com tanta facilidade. Foi difícil, mas logo ela sentiu a água, ainda que cercada de eletricidade, respondendo ao seu comando. A nuvem começou a se mover de modo lento e dificultoso para a esquerda, longe da linha da tribo.

Mayuri e Kyane também moviam nuvens menores, com alguma dificuldade, mas Lunyi parecia não conseguir fazer nada contra as ameaças chuvosas que nublavam o céu. Seu rosto estava vermelho com o esforço, mas suas melhores tentativas não pareciam surtir efeito algum.

Thalya não se desesperou, sabia que ela e as outras conseguiriam mover as nuvens a tempo, se mantivessem o atual ritmo. Só não contava com o vento forte que começaria a soprar logo em seguida, carregando as nuvens em direção à tribo com uma velocidade assustadora e incontrolável.

—Droga!- Thalya praguejou, vendo que uma última nuvem, a maior de todas, continuava avançando, e que tanto ela quanto Mayuri e Kyane já estavam ocupadas demais para cuidar dela- Lunyi, você vai precisar lidar com essa.

A expressão no rosto da ruiva era de puro desespero.

—Eu não vou conseguir- ela lamentou, ainda tentando, em vão, mover a nuvem.

Thalya estava prestes a soltar um de seus melhores discursos motivacionais, quando Kyane a interrompeu de maneira repentina, mas estranhamente efetiva:

—Mulher, não pense demais, só dobre a porcaria da nuvem! Ou vamos ficar sem jantar!

De alguma maneira, a ameaça de destruição da sopa, que a essa altura deveria estar quase pronta, fez uma determinação quase sombria surgir no rosto de Lunyi.

—Ninguém mexe com meu ensopado!- ela exclamou, voltando a se concentrar na nuvem, raivosa.

E, soltando um grunhido com o esforço, Lunyi moveu os braços em um arco brusco, o que fez a nuvem ser jogada com violência para o lado.

Imediatamente, os últimos raios de sol daquele fim de tarde voltaram a brilhar sobre as quatro garotas. O céu estava novamente limpo de qualquer ameaça, e a tribo estava à salvo.

—Lunyi!- Thalya exclamou, assim que constatou que estavam mais uma vez em segurança- Eu não acredito que você conseguiu! Estou tão orgulhosa de você!

Thalya puxou Lunyi para um abraço, e ela riu, tão feliz quanto a outra.

—Minha nossa, aquilo foi incrível!- Mayuri exclamou, assim que Thalya soltou Lunyi- Pensei que você tivesse dito que não conseguia dobrar nem para salvar a própria vida.

Kyane riu.

—Talvez a própria vida não, mas o ensopado, com certeza- ela provocou, e Lunyi soltou uma risada.

—Você me conhece bem demais.

As jovens caminharam de volta para a Tribo, ainda rindo e falando sobre o ocorrido. Assim que chegaram, já puderam sentir o cheiro da sopa, que começava a ferver sobre a fogueira.

Naquela noite, Mayuri contou às crianças da tribo uma história épica, enquanto todos comiam o jantar reunidos ao redor da fogueira. Um conto sobre uma Conjuradora de Tempestades maléfica e uma jovem guerreira de coração puro, que domou a terrível tempestade com as próprias mãos e salvou o mundo da eterna escuridão.

Enquanto ouvia a história de sua amiga, Thalya sentia uma sensação morna e agradável formando-se em seu peito. Ela em geral era uma pessoa prática, não costumava deixar-se levar por suas emoções com facilidade, mas havia algo de profundamente comovente sobre aquela cena. Com a guerra cada vez mais próxima, momentos de paz como aquele se tornavam cada vez mais raros, e, por isso mesmo, mais preciosos. E Thalya não tinha como saber o que o amanhã reservava para nenhum daqueles ali presentes, mas, por um momento, ela teve certeza de que, mesmo nos tempos mais escuros, ainda assim haveriam aqueles capazes de cantar sobre a luz, com a certeza de que, um dia, ela voltaria


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Comentários são sempre apreciados


XOXO
-Venus ♥