Mother's Savage Daughter escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 2
A Filha que Ficou


Notas iniciais do capítulo

Trago a mesma playlist do cap anterior, porque esse é o mood: https://www.youtube.com/watch?v=F9F_MqATLUI&t=1350s



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Minha família é feita para não ter raízes.

Isso é um pouco estranho por aqui, não conheço muitas famílias que se dividiram, espalhando-se pelo continente, não como a minha. Penso sobre isso testando a nova corda que acabei de colocar no arco. Encontrei a antiga corda rompida depois do tempo que o arco passou intocado, e espero que isso não seja um mau agouro, mas sou do povo de Yhriam, e temos as nossas superstições. A corda do arco rompida é azar na caça, sálvia nas janelas protege de fantasmas, casar na primavera traz felicidade, uma infinidade de pequenos segredos vistos em qualquer sombra. Sabemos que nada disso é real, mas sempre tem aquela voz interior dizendo “E se for?”. Nossos antepassados sempre usaram esses segredos e nenhum de nós ousa contradizer, mesmo que alguns gostem de provocar os mais velhos zombando das tradições. Eu mesma fui uma dessas quando adolescente, desdenhando em voz alta da importância que meus pais davam aos sinais, e interpretando-os em busca de orientação quando estava sozinha.

Mas no momento, fujo das superstições como fantasmas fogem de sálvia. Não quero essa sombra agourenta em meu futuro.

Não me tranquiliza em nada errar a primeira flecha, sem sequer acertar o alvo. Mas não tem problema; respiro fundo, preparo outra.

Minha família sempre pareceu querer deixar aquele lugar.

Os irmãos do meu avô deixaram as terras e foram para o sul, dois deles chegaram até Prusvart. O terceiro foi para o oeste, e a última notícia que tiveram dizia que ele estava perto da cordilheira de Opis. Para meu avô, em uma fazenda no interior de um reino como Yhriam, parecia que ele tinha alcançado os limites da terra, com o mundo inteiro a suas costas, e meu avô parecia lamentar não ter a mesma história.

Levo a mão à aljava para encontrá-la vazia. Não percebi que já tinha acabado com as flechas. Nenhum acerto. Tento me lembrar das minhas primeiras aulas, focando menos no alvo e mais nos gestos, na minha postura, esperando recuperar o talento que um dia tive.

Os irmãos do meu pai não chegaram a ir tão longe. Tia Challys vivia em Yaz, o reino vizinho, mas eu a vi duas vezes apenas. Ela poderia estar nos limites do mundo que não faria diferença, pois quando olhava para Yhriam, não sentia nada. Já meu tio Arcaent, ele não deixou Yhriam por vontade, e, quando voltou, encontrou uma família nas pessoas, mas não um lar naquela terra, e agora também vivia em Yaz, cumprindo religiosamente suas visitas anuais. Às vezes me pergunto se ele e a tia Challys se encontram com mais frequência do que eu encontro qualquer um dos dois, mas algo me diz que não, e não sei dizer de quem seria a culpa, ambos parecem ser muito distantes.

E tinha minha irmã, Kasja. De quem eu não sabia nada. Depois de deixar a fazenda, ela apareceu umas três vezes, e nenhuma vez depois da morte de nossos pais. Talvez por isso minha mãe sempre tentou nos impedir de partir. Somos uma família destinada a se separar, somos poeira jogada ao vento.

Mas eu não sou assim.

O que Kasja encontrou lá fora, eu já tinha aqui. Pois enquanto minha mãe só tinha olhos para Kasja, e meu pai trabalhava do amanhecer ao anoitecer, eu tive nos campos e nas árvores os meus tutores. Aqui é o lugar onde cresci e corri livre, e nunca precisei olhar para o mundo além das minhas cercas. Sei que algumas pessoas me olhariam com pena por causa disso, pois não conheço a grandeza do mundo ou a riqueza dos povos, não aprendi os segredos de livros antigos em uma sala escura ou vi as obras de artistas nobres. Mas eu vi e aprendi outras coisas. A grandeza da floresta e a riqueza dos sorrisos nos festivais de outono, os segredos do plantio e da colheita e a obra divina diante dos meus olhos todos os dias. Cada dia sendo rico em sua própria forma.

Eu estou noiva há quatro meses. Elred me pediu em casamento em uma noite no meio do verão, com um céu tão claro que parecia que todas as estrelas nos observavam. E como boa yhriana, estou apenas aguardando a primavera chegar para finalmente tornar oficial algo que construímos já há alguns anos, desde que meu pai o aceitou como auxiliar e Elred passou a viver conosco, tornando-se uma presença tão constante e íntima que ele já era minha família, e eu a dele, antes mesmo de sermos um casal. Sempre vivemos como família, mas agora seria diferente. Um laço inquebrável se formaria quando dissermos nossos votos, diante dos cálices, com uma faixa de seda branca e dourada unindo nossas mãos. Construiremos nossa família, criaremos nossos filhos. E quanto mais penso sobre isso, mais vejo o quanto eu quero que meus filhos conheçam aqui a liberdade que eu conheci.

E eu não vou permitir que isso seja roubado deles e de mim.

— Há quanto tempo você está de pé? – Elred apareceu no alpendre, com uma mão protegendo os olhos sonolentos da claridade.

Ele chegou a tempo de me ver acertar o alvo pela primeira vez. Bem distante do centro, na beira da tábua pintada que eu usava quando ainda estava aprendendo, mas foi a primeira de todas as minhas tentativas que mostrou algum avanço. Então eu sorrio para ele, respondendo:

— Algum tempo. Mas ainda não o bastante.

Ele analisa a cena, a testa franzida em curiosidade.

— Você sabe que eles vão começar a nos treinar só depois de amanhã, não é? Ele esperam conseguir reunir mais gente nesses dias.

— Ótimo! – Pego outra flecha, posicionando-a no arco. – Até lá, terei acertado o centro pelo menos uma vez.

Elred abre um sorriso leve e terno, apoiando-se na viga. Ele enxerga algo de divertido e admirável no meu jeito, desde o dia em que nos conhecemos. E é o único, pois reconheço que não sou lá muito gentil, e poucos têm essa paciência… Mesmo achando adorável a expressão que tem agora, eu nunca admitiria. Também não preciso, ele sabe. Sem encará-lo, olhos fixos no alvo, aviso:

— Se continuar com esse sorriso bobo, não vou me concentrar.

Ele riu, convencido.

— Então eu te distraio? – Ouço o comentário já revirando os olhos, mas um sorriso me escapa de qualquer forma. Ele ergue o queixo, confiante. – Eu sabia, você é caidinha por mim, não é?

— E eu pensei que estava disfarçando tão bem. Quando percebeu? Quando eu disse “sim” para você?

— Foi um sinal bem forte, mas eu já desconfiava um pouco antes. Você já comeu algo? Eu vou passar um café.

Deixo o arco e as flechas de lado, seguindo-o para dentro. Poucas vezes comemos separados, e nunca quando podemos evitar. Sem sombra de dúvida, eram os melhores momentos do dia. Mesmo em dias difíceis, quando as refeições não eram acompanhadas de risos ou gracejos, mas de planos preocupados e silêncios graves. Ainda assim, eram os melhores momentos do dia, pois qual fosse a dificuldade, não estávamos enfrentando sozinhos. Talvez por isso, agora, mesmo diante do futuro incerto, a mesa possui um clima leve. Qualquer que seja o peso do futuro, é menos assustador quando estamos em dois.

Passamos o café da manhã discutindo sobre a fazenda. Não poderemos nos dedicar ao trabalho quando as preparações para a defesa da cidade começassem. Decidimos pedir ajuda ao Sr. Armory novamente, não é algo que gostamos de fazer, mas é a única opção. Sr. Armory, dono das terras vizinhas, era velho demais para se unir à defesa, e seus netos, novos demais, além de alguns trabalhadores que tinha à disposição. Ele poderia distribuir alguns homens para a nossa fazenda no período, em troca de parte do lucro. O dinheiro faria falta, mas pouco era melhor do que nada, e o acordo era a única opção para que todo o nosso trabalho durante o ano não fosse jogado ao vento.

Aquele inverno seria escasso, mas já vimos piores.

.

— E você me queria em casa… – comentei, no primeiro dia, em meio a tantos homens e mulheres dispostos a dar as vidas naquela aposta. A praça central da cidade estava abarrotada de gente, mais pessoas reunidas do que jamais tinha visto mesmo nos festivais.

Elred me lança um olhar cético. Não sei por quê. Afinal, ele me conhece bem, e várias vezes me disse que minhas palavras preferidas são “eu avisei”.

— Oh, me desculpe por pensar na sua segurança, Asra, sou mesmo uma pessoa horrível.

— E isso porque eu que sou a dramática…

Muitos rostos conhecidos, tantas pessoas da nossa comunidade. Rostos com os quais eu tinha crescido, outros que eu vi crescer também. Por sinal, esses não deveriam estar aqui, mas não preciso me preocupar por muito tempo, o pai logo aparece repreendendo os filhos de forma exaltada. Não deveriam ter mais de 14 anos, crianças que não fazem ideia do que realmente acontecerá, mas queriam fazer parte, porque sentem que será importante.

Um velho soldado organizou tudo isso. Harland. Ele não é mais o guerreiro de outra época, mas há valor na experiência, e mesmo que não lutasse com a força de antes, ainda podia ensinar. Ainda podia planejar. Ele sabe que a vantagem de nossos inimigos é apenas aparente. São pessoas sem reino ou nação, que habitam as florestas durante o dia e saqueiam vilas e aldeias à noite, e são numerosos, mas não são um exército. O perigo que representam vem da prática e da frieza adquirida com o costume, mas possuem tanta técnica quanto qualquer um de nós. Pelos avanços dos últimos ataques, ainda temos algumas semanas antes que cheguem até nós. Harland sabe que não nos transformará em soldados nesse tempo, mas ele é um de nós, sabe que enquanto nossos numerosos inimigos são guerreiros perigosos, nós também já nascemos lutadores. A diferença é sutil, mas decisiva. Grupos são formados, iniciam-se as preparações. Não vejo mais Elred do amanhecer ao anoitecer, tampouco troco palavras com qualquer um. Todos estão imersos nos próprios pensamentos e receios, concentrados, quase como se pudessem ver a sua frente o inimigo declarado.

A aura pesada da antecipação torna o dia bem mais cansativo do que eu esperava. É o primeiro dia, e isso significa que tudo é real. O risco, o perigo, a nossa pequena “guerra” que não entrará nos livros, mas lembraremos nas histórias.

As semanas passam estranhamente rápido, como se o tempo corresse contra nós. Eu não sou a melhor arqueira entre nós, pois alguns ali jamais deixaram de praticar, enquanto eu permiti que me dissuadissem dessa arte que tanto me acalmava. Eu certamente dei motivos para isso. Não fui uma garota fácil e tinha pouca paciência para os rapazes que me seguiam até em casa. Um deles se feriu, e minha mãe tomou o arco como um castigo.

Você era uma flor tão delicada quando criança, como foi crescer mais dura que um carvalho?” Era para ser uma reprimenda, mas o comentário me fez sorrir. Eu via mais encanto em árvores de raízes antigas e profundas, que apenas ficavam mais belas com o passar das décadas, do que em flores que morrem com o inverno.

Embora não seja a melhor, meu avanço é palpável, pois apenas preciso recuperar o hábito que já dominava. Elred me preocupa. Ele aprende rápido, mas diferente de mim, estará no chão e exposto. Se fôssemos um feudo com altos muros como alguns mais ao centro do reino, todos usariam arcos de um lugar seguro, e apenas derrubaríamos um por um que ousasse se aproximar. Mas não vivemos dessa forma. Nossos campos são abertos, expostos. Teremos uma vantagem inicial pela distância, mas logo aqueles que nossas flechas não derrubassem estarão sobre nós, e precisaremos de alguém para pará-los. Por isso a maior parte dos voluntários estava se esforçando com espadas velhas, relíquias de família, facas ou o que mais pudesse servir. Porque não somos guerreiros, mas somos lutadores, é algo inato. Não sabemos morrer sem lutar.

Meu pai sempre dizia que era possível ver coisas boas em qualquer acontecimento. Eu nunca acreditei muito. Como minha mãe, sou uma velha ranzinza em plena flor da idade. Mas eu lembro dessas palavras agora, pois o tempo nos guia para algo perigoso e decisivo enquanto nos mostra algo que eu não tinha percebido antes. Já anoiteceu, Elred e eu estamos exaustos, um sendo o apoio do outro, quando Amalya nos encontra ali, nos limites da praça e estende duas tigelas de sopa para nós. Não entendo de início, mas logo vejo os outros junto dela, todas as pessoas que não se uniram à defesa, qualquer que fosse o motivo. Nossa nova rotina consome nossos dias inteiros, não temos como cuidar dos afazeres, e ao fim do dia estamos exaustos demais até mesmo para pensar em voltar para casa. Então Amalya e os outros fazem por nós o que podem. Distribuem comida e roupas limpas, nos oferecem um teto ali na cidade pois já está tarde demais para voltarmos para a fazenda. Embora o reino seja fragmentado, as pequenas comunidades sempre foram unidas, mas aquela nova forma de gentileza e agradecimento eu ainda não tinha visto.

E tão rápido quanto começou, o nosso tempo acaba. As semanas passaram, e obviamente não estamos prontos, mas estamos no melhor que poderíamos alcançar. A cada três ou quatro dias recebíamos notícias de novas áreas atacadas, as invasões cada vez mais perto, mas não era a hora de combater ainda, precisamos de cada dia que tivemos para nos preparar. Até chegar o último deles. A coluna de fumaça de terras degradadas erguia-se tão próximo que, começando a jornada com os últimos raios de sol, ainda poderíamos chegar até eles antes do amanhecer. Mas essa noite não é para isso. Treinamos duro por semanas e podemos não conseguir nada, então essa noite nos permitimos esquecer.

Curamos o receio de um futuro incerto com música. Uma festa na véspera de uma invasão, porque… Bem, por que não? Pode ser a nossa última noite de paz, e queremos passá-la sorrindo.

Nossos passos não têm nada de elegância ou etiqueta, não é esse tipo de dança. Os instrumentos arranham alguma música popular ao som das palmas daqueles que não estavam dançando, e as duplas atravessam o campo desviando de pedras e raízes com tanta facilidade quanto se dançássemos em um salão nobre. Energia pura descrevia o momento, unindo cada um de nós como uma corrente, e nem sentimos o cansaço. A música, os risos e a sombra agourenta do dia seguinte à espreita não nos deixam cansar. Solto-me de Elred com um giro, unindo-me às outras moças no centro, onde dançamos de mãos dadas seguindo a melodia ritmada das palmas de nossos pares acompanhando os músicos, e, instantes depois, as posições de invertem: os rapazes no centro, as moças os cercando. Logo, os dois grupos se misturam e estou novamente nos braços de Elred.

Como nuvens carregadas aguardando desabar, aquele aviso à espreita, percebo a razão oculta desta festa. Diminuo os passos, enquanto os outros ainda se movem ao ritmo animado da música, e minhas mãos deslizam dos ombros para as costas de Elred em um abraço firme e urgente. Algo passa rápido em minha mente, tão rápido que mal chega a ser um pensamento. Pelo menos não um que eu consiga entender, sei apenas que é ruim, uma sensação de ausência, mesmo que eu ainda esteja nos braços dele.

Pois eu percebo agora a segunda razão dessa dança. É uma despedida.

As pessoas sorriem e aplaudem, cantam e tocam, mas seus olhos úmidos refletem a ciência de que não estaremos todos juntos na noite seguinte. Mesmo assim, nenhuma lágrima foi derramada, nem deles, nem de mim. Somos o povo de Yhriam. Nossas raízes são antigas como as dos carvalhos, aqueles a quem minha mãe sempre me comparava. Somos resistentes feito os cedros da floresta e a rocha das montanhas.

Elred e eu não estamos sozinhos, mas não importa. Ele parou também, estranhando minha mudança de humor, mas eu continuo ali, meu rosto contra seu peito pois não quero que me veja agora. Não com essa insegurança repentina. Meu tio às vezes falava sobre destino e intuição, o que sempre fazia tia Elyn revirar os olhos. Sempre preferi a visão dela, que não via nenhuma força acima das escolhas, mas pergunto-me se há mesmo tanta diferença assim entre uma coisa e outra. Se meu tio estivesse certo, essa sensação… significa algo? Um sinal do destino? Se um destino feito para nós ou criado por nós, não importa muito.

— Asra… O que foi?

— Vamos nos casar… – falo. Era para ser um questionamento, mas a pergunta se perdeu em meus pensamentos.

— Ora, é claro que vamos!

— Não, eu quis dizer… Vamos nos casar. Agora. Não temos que esperar…

Eu sempre fui direta, nunca tive problemas para dizer o que quero. Mas agora mal consigo olhar em seu rosto, e minha voz é engolida pela música. Penso que Elred não deve ter me escutado, mas ele se afasta com delicadeza, deixando um beijo suave em minhas mãos. Seu sorriso é tranquilizador como sempre, mas de uma austeridade incomum, vista nas raras situações em que ele sente que uma conversa é importante. Das mãos, ele subiu para o rosto. Fecho os olhos, tentando estender esse momento. Sempre apreciei o carinho no gesto de um beijo no rosto, tão diferente da sensação de ter os lábios dele nos meus, mas diferente não significa ruim. É acolhedor. Ele não se afastou, pelo contrário. Segurou-me em um abraço e respondeu para que apenas eu ouvisse.

— Não, Asra. Não assim.

Por alguns instantes, não consigo pensar em nada com essa resposta.

— O que quer dizer?

— Nós merecemos mais do que casar às pressas na véspera de um massacre, meu amor. Nós vamos nos casar, sim, mas estaremos na nossa terra, nossa casa, com a nossa família. Isso não será tirado de nós.

Ele fala com tanta certeza e fervor, que tento não me prender mais àquela sensação. Ela não desaparece, não completamente. É o assobio do vento nas montanhas; distante, mas audível. Inofensivo, mas persistente. Afasto aqueles pensamentos, pois não quero pensar em nada além daquele futuro em que Elred e eu estamos em casa, e na família que vamos construir quando o nosso lar estiver seguro. Gosto do que ele me diz. Tanto das nossas vidas corre risco agora, e nunca fizemos nada além de viver. Somos boas pessoas, não é justo que precisemos lutar para defender a vida que temos. Não é justo que nos obriguem a isso, a morrer e a matar para manter o direito de viver em paz. É revoltante. É aterrorizante, pois mesmo que seja necessário, não é fácil, não será fácil, e não falo apenas de vencer. Obscuro é o coração de quem não sente nada ao matar outra pessoa, e o mundo ainda não é tão caótico assim para nos deixar tão pouca humanidade.

Somos pessoas boas vivendo em paz, mas, no dia seguinte, seríamos assassinos. Porque outros nos obrigaram a ser. Quem ainda respirasse teria roubado o ar de outra pessoa, quem voltasse para a família teria tirado alguém de outra família. E isso é necessário e não é culpa nossa, é verdade, mas também é muito para lidar.

Mas aqui estamos, mesmo assim, então eu gosto de pensar que ao menos aquela escolha não seria tomada de mim. Não é apenas um traço de normalidade, é a tradição que me une aos meus antepassados, à minha pequena família soprada pelo vento. Elred tem razão, muito já foi roubado para permitir que me tirem qualquer coisa a mais.

Mas não perco a chance de uma provocação.

— Nunca vi alguém negociar com o destino assim…

— Você faz isso todo dia. Acha que eu poderia viver com você todos esses anos e não absorver um pouco dessa sua teimosia também? Além do mais, não é uma negociação, é uma promessa. Eu e você vamos nos casar na primavera. É por isso que você precisa voltar para mim, meu amor.

— E você para mim. Uma promessa, então. Voltaremos para casa e teremos nossa vida. Não ouse quebrar essa promessa!

Ele ri.

— Nunca menti para você, não é hoje que isso vai mudar.

Terminamos a noite afastados de todos, sozinhos, ainda ouvindo a música próxima e a fumaça no céu. Nossas mãos entrelaçadas, pois sei que apesar do tom confiante, ele também sente que me soltar agora seria um erro. Fizemos promessas um para o outro, mas são apenas gritos contra o vento. Sempre estive decidida a participar daquilo, mas não significava que eu não estava com medo. Agora, mais do que sempre, eu temo o que nos aguarda. Eu temo ser novamente a última, a filha que ficou quando todos já tinham partido, e que nunca teve tempo para lamentar o que perdeu, porque a vida continua e não respeita o luto de ninguém. E se eu soltá-lo agora, o destino o tiraria de mim? Ou me tiraria dele? Um de nós desvaneceria diante do outro, ou estaríamos juntos na noite seguinte, exaustos, assustados e mudados para sempre, mas ainda vivos e ainda juntos?

Sei que em algum momento teremos que nos separar, teremos de nos soltar. No dia seguinte, eu não o veria, nem ele a mim, e tudo o que podemos fazer é confiar que o destino está a nosso favor.

E torcer para que quando tudo acabasse, o lar que tínhamos um no outro ainda estivesse de pé.


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Notas finais do capítulo

História finalizada. Pois é, não era a intenção mostrar a luta, só a expectativa dela, era pra ser uma fic mais emotiva do que de ação, espero que tenham gostado.
Muito obrigada por ler ♥



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