Outono no Rio escrita por Goldfield


Capítulo 2
Capítulo II




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Capítulo II

Outro outono, em outro rio. Bem distante da tragédia da guerra, uma alma insuspeita está prestes a ser tragada por aflitivos desdobramentos...

Os músicos empenhavam-se no cavaquinho, pandeiros e tamborins, a voz do cantor compondo perfeita harmonia com os instrumentos. Os corpos se movimentavam contagiados pelo salão, vários deles colados uns aos outros. O samba de Donga preenchia o recinto de calor, contrastando com o clima mais ameno de maio naquela cidade conhecida pelo sol tão intenso – ainda que justamente dele viesse seu charme.

Desta vez não há castigo

Se vais à Penha comigo

Tu tens que me dar vantagem

Vais pagar minha passagem

Carregar minha bagagem...

James, no entanto, permanecia à margem do festejo. Com seu copo de cerveja na mão, observava o vai-e-vem dos casais e a alegria das rodas em sutis acenos da cabeça acompanhando as notas da música; um dos pés balançando para lá e para cá no evidente recado que queria dançar, ainda que seu dono não permitisse.

Estava no Brasil há quase um ano, e ainda não se sentia plenamente acostumado. Não que não fosse sua vontade: queria e muito se habituar à pátria da mãe – onde a vida, embora com dificuldades totalmente distintas dos Estados Unidos, mostrava-se tão mais terna e colorida. Aprendera bem o português, conseguindo falá-lo quase sem sotaque. Além disso, seu nome possuía boa sonoridade na língua local, os falantes ficando espantados ao descobrirem que a tradução mais aproximada era "Tiago".

Perder a timidez e deixar o samba contagiar seu esqueleto retraído desde a infância, entretanto, era missão que nem o Rio de Janeiro conseguira cumprir.

Eu bem sei que tu não gostas

Mas juro que nesse dia

Vais me carregar nas costas...

Dois rapazes cruzavam o salão entre os frequentadores, segurando garrafas de cerveja – um deles esbarrando num grandalhão trocando passos com sua esposa e por pouco não arrumando confusão. A contenda foi esfriada pela fala mansa e gestos apaziguadores do outro componente da dupla e, resolvida, permitiu que esta continuasse seu caminho até James.

— Como assim? – o garoto do encontrão questionou indignado. – O que está fazendo parado aí, gringo?

Apesar do termo, James sabia que Chico não tinha intenções hostis. Era só mais um dos vários apelidos pelo qual o tratava, demonstrando bem mais carinho que zombaria.

— Talvez tentando não encostar em alguém e arrumar encrenca, como você ali atrás! – o outro jovem, Almir, emendou brincalhão. – O James deve ter é razão!

— Você também? – Chico rebateu, subindo o tom para fazer-se ouvir além do samba. – Olhe bem... – esticando um braço, ele apontou à extensão do salão. – Há aqui muitas beldades às quais vocês gostariam de se encostar, não?

James soltou um riso sem graça, ao que bebericou mais um gole do copo.

— Está muito quente aqui, e gente do norte pode acabar derretendo pela falta de costume – Almir afirmou, dando uma piscadela ao amigo estrangeiro. – Vamos dar uma volta pela orla. Isso vai fazer o James relaxar.

Mesmo um tanto contrariado, Chico assentiu num gesto, pondo-se a caminho da porta. Logo o trio atravessava a saída do local, abandonando seu ar abafado.

À praia de Ipanema, os amigos foram recebidos pelo sopro fresco e salgado da brisa marinha, tanto o limiar do oceano quanto a moldura de morros em torno da cidade envolvidos pelos tons acobreados do pôr-do-sol.

Admirando o espetáculo, seu olhar acompanhando os contornos curvos do Pão de Açúcar tal qual fosse um doce gigantesco imerso num panorama ainda maior de delícias, James perguntou-se se outro lugar do mundo podia oferecer o mesmo deslumbramento que o Rio. Mesmo com o país vivendo entre a euforia e a tensão, sujeito à vontade de um ditador, os braços abertos do Cristo ao topo do Corcovado aparentavam garantir bênçãos suficientes para que o encanto daquela terra não se perdesse – e, embora a criação protestante do rapaz o houvesse ensinado a repudiar ídolos, não podia agradecer mais àquela representação de Deus pela dádiva.

Um presbiteriano com inclinação ao catolicismo; criança do frio Connecticut que, mesmo com pouca resistência ao calor, preferia muito mais as praias tropicais... Um cidadão norte-americano registrado com nome inglês, mas cuja pele parda e cabelos negros, herdados da mãe, remetiam muito mais àquela outra terra.

Assim era James Roberts, marcante ponte entre os Estados Unidos e o Brasil. E o rapaz vinha cada vez mais considerando dinamitá-la, estabelecendo-se de vez daquele lado da travessia.

— Precisa perder esse receio, gringo – aconselhou Chico. – Se não deixar que o samba baixe aos seus pés, nenhuma moça vai notar seus encantos.

— Existem as mulheres que não gostam de dançar... – James protestou, as mãos enfiadas nos bolsos reforçando seu incômodo com a direção da conversa.

— Como a Cidinha? – Almir especulou. – Com o perdão da palavra, mas, estando com ela, aí sim você dançaria!

O amigo se referia ao temperamento difícil da jovem, digno de notoriedade em todo Rio de Janeiro. Menina rica, tratada com tudo do bom e do melhor a ponto de se tornar enjoada. Sendo também de família abastada, James costumava frequentar os mesmos espaços que Maria Aparecida e seus pais, o que lhes garantira certa aproximação. Jamais ousara partir a um flerte, todavia; ainda que ela se mostrasse aberta. Não bastando as histórias que a cercavam, o próprio rapaz sentia-se velejando seu barco por águas tempestuosas demais.

— Eu e a Cidinha somos só amigos – James justificou-se, querendo ter um guarda-chuva para cobrir-se das alegações dos chegados que sabia virem em seguida.

— A depender do pai dela, vocês já estariam casados com o Vargas como padrinho – Almir provocou. – O general vive falando aos quatro ventos que quer um marido estrangeiro à filha. Americanos são ótimo partido... Embora eu tenha certeza que o velho preferiria um alemão!

Sabendo do envolvimento do pai de Cidinha no Ministério da Guerra e da posição majoritária favorável a Hitler em seus corredores, James compreendeu e não se irritou com a analogia. Temia, aliás, que um dia a estátua do Cristo desse lugar a um monumento em pedra do líder nazista com o braço em riste e bigodinho à cara. Não que política realmente lhe importasse e o alinhamento de Vargas com a Alemanha o irritasse a nível pessoal, porém era algo capaz de trazer a guerra até ali – e com isso seu paraíso estaria comprometido.

Droga, seria ele tão egoísta assim?

— Tem ideia de quando verá sua "amiga" de novo? – Chico questionou malicioso.

— Haverá um jantar diplomático no Copacabana Palace semana que vem, e acredito que ela estará lá com o pai e a família – James respondeu meio desconcertado. – Meu pai é um dos organizadores. Parte do esforço da embaixada americana em estreitar os laços com o presidente Vargas.

— Eu tomaria cuidado, ou seus laços com a Cidinha logo estarão bem estreitos também... – Almir afirmou. – A ponto de não conseguir mais se desenrolar!

Numa careta, James girou um pé e chutou areia sobre as calças do amigo. Este desviou tarde, sem evitar ter as barras da vestimenta cobertas de grãos – revidando ao também erguer o sapato e despejar um amontoado deles sobre Roberts.

Rindo, os três jovens prosseguiram pela praia conforme o horizonte era dominado pelo crepúsculo.

X – X – X

O aspecto dourado do interior do hotel era proporcionado tanto pelos ostentosos lustres junto ao teto quanto as lâmpadas nas pilastras, criando caminho iluminado à "Golden Room" – se a decoração dos cômodos até ali já não reluzisse o suficiente.

Olhando de canto os salões com mesas de jogos vazias ao passar por seus pórticos, James concluiu que as atividades do cassino haviam sido suspensas aquela noite para a realização do jantar. Comparou sua própria ida até ali a um grande jogo de azar – e, sabendo qual era o prêmio, estava incerto sobre se queria ou não ter sorte.

A Golden Room brilhava mais que os demais recintos, tal qual houvesse sido decorada pelas mãos nuas do Rei Midas. Mesas se estendiam por toda parte com tortas, assados, doces, bolos e confeitos; sem contar as garrafas de vinho e champanhe recém-abertas pelos garçons, seu conteúdo espumante despejado em compridas taças translúcidas.

Os convidados, em fraques ou vestidos, acomodavam-se através do salão para serem servidos. O pai, num terno mais casual que destacava sua posição profissional acima de anfitrião, cumprimentava dignitários do governo brasileiro – vários deles usando fardas repletas de insígnias e divisas. O ministro Dutra devia ser um deles, acompanhado dos mais influentes generais...

O temor de identificar o pai de Cidinha, e com ele a filha, fez a respiração de James pesar.

Uma vitrola distribuía música pelo ambiente, embora volta e meia engasgasse com oscilações da agulha sobre o vinil. Tratava-se de uma melodia a piano até um tanto animada; à qual faltava vigor, porém, por não trazer o artista tocando pessoalmente – perdendo às rodas de samba não só nisso, como na ausência de cordas e percussão. James sentiu falta do salão em que estivera com os amigos dias antes, e lamentou pelos altos círculos daquele país levantarem tantas restrições à música do povo...

O que viu a seguir agitou-o quase às vias de fazê-lo balançar os pés mesmo sem batuque. Para correr fora dali, todavia.

Quem contemplasse Maria Aparecida em seu vestido branco rendado – acompanhado de chapéu de feltro, luvas e saltos da mesma cor – poderia tomá-la erroneamente como um poço de candura, quando a realidade acusaria o erro de julgamento. Naqueles tons claros combinando com seus cabelos loiros ocultos sob o adereço à cabeça, a James mais remetia a uma assombração; nem mesmo o sorriso aberto ao vê-lo conseguindo dissipar tal sentimento, capaz de travar-lhe as pernas e torná-lo presa perfeita à filha do general.

— Boa noite, Jimmy – ela saudou-o ao parar diante dele.

O franzir de sobrancelhas do rapaz expressou à moça seu estranhamento em relação ao apelido.

— O que foi? – ela pareceu confusa. – Não é assim que encurtam seu nome na América?

— Sim, mas antes é preciso que a pessoa permita alguma intimidade... – Roberts replicou evasivo. Não era bem assim, porém torcia para que a jovem engolisse a desculpa.

— Vocês americanos se dizem paladinos da justiça, e deslizam nisso por todo lugar que andam! – ela riu debochada. – Aquela praga do Chico te ensinou a me chamar de "Cidinha" antes mesmo de sermos apresentados. Se fosse assim, deveria se referir a mim como Maria Aparecida – ela completou com ar pomposo.

Não bastasse a garota ser uma armadilha ambulante, ela fazia questão de plantar novas arapucas em cada uma de suas falas. Era fato conhecido não gostar de seu nome, fruto de uma promessa da mãe a Nossa Senhora Aparecida para que a filha fosse curada de uma paralisia nos braços quando bebê. A moléstia passara, e agora Cidinha – como preferia ser chamada – usava os membros para abraçar o mundo, ou ao menos tentar.

Envolver James Roberts com eles não seria tão fácil.

— Tudo bem, pode me chamar de Jimmy, então... – o jovem cedeu sem demonstrar incômodo. – Não é a única a me chamar assim por aqui, se acha isso um privilégio.

— E quem mais chama? Sua mãe? – a moça indagou divertida, olhando em seguida ao redor. – Por falar nela, não veio ao jantar?

— Estava se sentindo indisposta. Além disso, não gosta deste tipo de exposição. O preço de se casar com um diplomata estrangeiro, que ela evita sempre que possível...

Cidinha continuou fitando em volta, a impaciência com a morosidade do recinto expressada pela agitação ao balançar-se para lá e para cá sob o vestido, até propor:

— Vamos escapulir à piscina? Está abafado aqui dentro.

Quem diria que Maria Aparecida Fonseca usaria a mesma deixa que eu para sair do salão? – James perguntou-se intrigado. Melhor seria jamais revelar aquilo, ou a garota o consideraria sua alma gêmea.

Só então o cérebro do rapaz processou melhor o convite, tomado por adicionais notas de surpresa:

— V-você quer di-dizer... para um mergulho?

— Deixe de ser besta, Jimmy! – ela exclamou arregalando os olhos e exibindo na totalidade o atraente sorriso. – Só uma caminhada lá fora, à brisa do mar. Eu iria sozinha, mas é outono e me resfriaria.

Dizendo isso, Cidinha ofereceu-lhe um dos braços enluvados.

James hesitou por um instante, porém tomou o membro da jovem junto ao seu e, assim unidos, andaram descompromissados na direção da área externa.

O ar noturno envolveu-os de imediato, lhes arrepiando os poros e levando Cidinha a agarrar-se a James com mais força. Tomado pelo calor da moça junto ao seu, ele passou a contornar a piscina do hotel rumo à sacada, um pouco mais elevada, de cujo parapeito era possível admirar a Avenida Atlântica e a imensidão do oceano.

A lua crescente elevava-se acima do limiar marítimo como um olho semiaberto fazendo vista grossa à proximidade de James e Cidinha, enviando o recado às estrelas tampouco interferirem. Ao brilho difuso da noite, o Pão de Açúcar parecia agora uma barreira disposta a proteger seu encontro, as luzes dos prédios próximos e morros mais distantes denotando a curiosidade do mundo quanto ao andamento daquele flerte, embora se contivessem da mesma forma que os astros no céu.

James apoiou-se de costas à balaustrada, a pose tentando transmitir irreverência e esconder seu nervosismo. Parte deste transpareceu em seu rosto e voz, entretanto, assim que viu Cidinha tirar um maço de cigarros da bolsa e acender um deles com um fósforo:

— Hei, que está fazendo?

— Quietinho, Jimmy, ou meu pai vai me matar... – ela respondeu após uma tragada. – Todos nós temos direito aos nossos segredinhos, certo?

O fio de fumaça saído dos lábios finos de Cidinha subiu serpenteando ao firmamento antes de ela emendar:

— Como meu pai ter me prometido em casamento.

James recebeu a revelação como um tapa na cara, incerto se o verdadeiro intento fora feri-lo ou acordá-lo ao que realmente sentia. Precisou de alguns segundos recompondo-se junto ao beiral, sem precisar olhar as feições da acompanhante para ter certeza que um sorriso se insinuava em sua boca.

— Como é isso? – sua pergunta saiu descompassada, o corpo agora gelado ansiando por parte do calor proveniente das janelas iluminadas da Golden Room.

— Nosso país entrará na guerra ao lado da América, Jimmy. Esse é um fato consumado – pelo tom, Cidinha demonstrava saber melhor da política corrente que os próprios jornais. – Meu pai é um entusiasta incorrigível do Eixo. Segue os passos do ministro Dutra, que terá de se corrigir perante Getúlio para se adequar aos novos ares. Papai também pretende fazer isso, mas não sem uma desforra. Quer que eu me case com um alto oficial nazista. Da SS, ao que parece. Uma garantia caso Hitler vença a guerra, algo em que ele acredita. Partirei à Alemanha mês que vem.

James não sabia o que pensar. Até aquela noite, considerara toda a conversa sobre ser um pretendente a Cidinha mera troça, uma implicância dos amigos para elevar seu ego à custa da fama da moça. No entanto, se também tomara o relacionamento daquela forma... por que se sentia tão aflito, consumido por dentro como se o coração pegasse fogo?

— Desejo que seja feliz! – ele soltou subitamente, incapaz de evitar a voz embargada. – Terá uma vida de rainha... Como sempre mereceu.

— Os nazistas não são muito simpáticos às mulheres, infelizmente – ela rebateu com desdém. – Segundo o que circula há anos, pouco as enxergam além de parideiras aos supostos "arianos perfeitos". Esse casamento é um contratempo temporário com o qual terei de lidar... E por isso mesmo quero atar todas as pontas antes de deixar o Brasil.

— Atar as pontas?

Cidinha de súbito pousou a palma de sua mão direita sobre o peito de James, pressionando o fraque, para então esclarecer:

— Como aquela que há tempos deveria ter unido nossos corações.

Curvando-se adiante, os lábios da garota encontraram os do rapaz num ardente beijo, o leve gosto de tabaco contribuindo a deixá-lo definitivamente aceso. Conforme as línguas se tocavam, James sentiu todo o calor daquela terra – causa de incômodos pontuais ao longo de sua estada – concentrado no desejo pulsante à boca de Cidinha, tal qual o corpo desta colado ao seu. Longe de atordoá-lo, quis poder derreter e fundir-se à amante, as mãos percorrendo suas formas e arrancando-lhe o chapéu para poder acariciar seus cabelos.

A pressão da moça sobre si foi tanta que por um momento acreditou que ela o derrubaria da balaustrada – precipitando-o metros abaixo à rua no que, em seu entusiasmo apaixonado, considerou ser uma morte feliz. Apoiou melhor a cintura ao parapeito, porém; e, depois de uma série de longos beijos e apalpadas cada vez mais ousadas de ambas as partes, Cidinha recuou o rosto para dizer:

— Espero que o lindo americano que tive a sorte de encontrar no Rio de Janeiro não seja uma dádiva passageira, pois o quero aqui quando eu voltar!

— Sou mais brasileiro que americano – James sorriu. – Dependendo de mim, daqui não sairei. Mas você... como faria para voltar?

— Assim que a Alemanha perder a guerra, o casamento se tornará insustentável. Será a deixa. Teríamos de esperar no máximo cinco anos.

— Fala isso como se tivesse certeza que Hitler perderá... – depois de ouvir tantas notícias aterradoras sobre o avanço dos nazistas na Europa e dos aliados japoneses pelo Pacífico, inclusive contra seu país de registro, Roberts não conseguia ser tão otimista.

— Sendo assim, torça como nunca para isso! – ela riu cheia de si. – Ainda mais agora que seu Tio Sam entrou na briga.

Rindo mais da atitude da parceira que de confiança, James tornou a beijá-la.

X – X – X

O pai entrou primeiro no palacete, bufando de cansaço conforme retirava o terno e, exibindo a camisa branca usada por baixo, desatava a gravata do peito para pendurá-la no suporte do vestíbulo. James considerou que seu braço direito devia estar quase travado de tanto apertar as mãos de convidados aquela noite – mas se o genitor trazia ar de triunfo pelos pontos adquiridos à possível aliança entre Brasil e Estados Unidos, o filho também vinha satisfeito por sua própria conquista. Algo reforçado, aliás, pelas manchas do batom de Cidinha junto à sua boca que, descuidado, ele se esquecera de limpar.

Contrastando com o aspecto vitorioso dos dois homens, encontraram a mãe de Jimmy sentada à mesa de jantar vazia, numa cadeira sob o lustre aceso, tal qual estivesse invocando espíritos – no caso, somente seus demônios interiores, considerando os olhos irritados pelo choro.

— Mãe, o que aconteceu? – o jovem indagou assustado, vendo o pai unir-se a ela pelo lado contrário do móvel de modo inquietantemente cúmplice.

— Andrew, precisamos contar a ele! – a mãe impôs irredutível ao marido. – Não conseguirei esconder por mais tempo, você usando sua influência para tentar impedir que aconteça ou não.

— Do que estão falando? – James insistiu cada vez mais temeroso.

Deixando escapar uma lágrima pela face já marcada, a mãe empurrou um envelope através da mesa. Suspeitando do conteúdo, o rapaz sentiu as mãos adormecerem, retraído quanto a tocar o invólucro como se fossem se desfazer pelo simples contato.

Ainda assim estendeu-as e, retirando um papel dobrado do interior da correspondência, abriu-o para constatar ser uma mensagem datilografada: o emblema do Exército gravado à parte superior, e assinaturas de oficiais na ponta oposta...

Uma ordem de convocação.

X – X – X

O Buick conversível acelerava pela Avenida Rodrigues Alves, acompanhando o traçado da Baía de Guanabara, rumo à Ilha do Governador. O dia ensolarado coroaria o deslocamento como invejável passeio – se o clima no interior do automóvel, mesmo aberto, não pesasse feito chumbo sobre seus ocupantes.

James preferira trazer a mala com seus pertences no próprio colo, ao invés de inseri-la no bagageiro do veículo. O gesto possuía aspecto simbólico, como se fosse algo a que o jovem se agarrasse para não fugir ao dever.

No assento à sua frente, ao lado do motorista da família, a mãe apoiava pesarosa o braço direito à porta do carro, incapaz de voltar-se para trás e muito menos contemplar o filho nos olhos. Ao lado deste no banco traseiro, Cidinha tinha os cabelos presos num lenço e as íris cobertas por óculos escuros, levando a crer querer também evitar contato com o amado – embora as mãos unidas entre os assentos provassem o contrário.

— Querer registrá-lo como cidadão americano e convencê-lo a servir no Exército foi uma decisão de seu pai para que pudesse contar com todas as benesses daquele país, que me acolheu de forma tão calorosa... – a mãe afirmou, tal qual falasse ao vento devido à posição de seu rosto. – Não contávamos que tudo mudaria tão rápido, outra guerra viria. Se eu soubesse... Perdoe-me, Jimmy, por não ter levantado objeção.

— Vocês não podiam saber – o garoto respondeu, olhar distante na baía assim como seus pensamentos. – Além do mais, sempre quiseram meu bem.

Já conviviam com aquela terrível expectativa há algum tempo, porém, suspeitando que o preço da decisão passada logo recairia negativamente sobre os ombros de James. Há mais de um ano a neutralidade dos Estados Unidos na guerra passara a pender por um fio, e o ataque japonês a Pearl Harbor só criara uma contagem regressiva à convocação do rapaz. Teria, agora, de atender ao chamado do país que lhe conferira nome e a promessa de um futuro. Ainda que seu coração estivesse em outro lugar...

— É só uma questão de tempo, Jimmy – apesar de tudo, Cidinha insistia em sorrir. – Quitaremos nossos destinos, e voltaremos a nos encontrar aqui, num outono como este, para nos tornarmos marido e mulher. Não importa o que passarmos, não importa o que digam. Sempre seremos um do outro.

— Digo o mesmo, meu amor – erguendo o punho da moça, James beijou-lhe os nós dos dedos. – Já havia um mundo entre nós, antes de nos conhecermos e podermos nos apaixonar. Se essa distância já foi superada antes, poderá muito bem ser derrotada de novo.

Arrastando-se sobre o banco, o casal trocou um beijo nos lábios, envolvido pela maresia convertida em som pelo quebrar das ondas junto ao cais. Pouco adiante, as estruturas da Base Aérea do Galeão começavam a se desenhar, assim como uma aeronave em voo similar àquela que conduziria Jimmy através do Atlântico.

No restante do trajeto, passaram pela Ilha do Fundão, onde, numa praia, avistaram um grupo de mulheres negras, trajando vestes e turbantes brancos, depositando alimentos e bebidas à areia.

O carro desacelerou, ao que os ocupantes puderam identificar porções de feijão, camarão e peixes, além de garrafas de champanhe.

— Ai, esse povo da macumba! – queixou-se Cidinha, cruzando os braços incomodada.

James, entretanto, foi tomado pelo interesse. Durante o tempo na América do Norte, tivera contato com os indígenas da terra e seus rituais ancestrais, alvo de igual preconceito pelos homens brancos. Compreendia bem o que sofriam, pois, ainda que no Brasil fosse visto como um distinto cidadão americano, nos Estados Unidos o tom de pele lhe conferia o tratamento depreciativo de um "latino", um homem "de cor".

Estreitou os olhos à orla, lutando contra más recordações. Mesmo se não acreditasse naquelas entidades, queria compreender o que significavam – ainda mais por ter contato com sua reverência num dia tão decisivo a si.

— A palavra correta é "candomblé", certo? – ele não se intimidou em corrigir a namorada.

— Sim – foi o motorista, um senhor negro chamado Feliciano, quem esclareceu. – Elas estão entregando oferendas a Obá, orixá celebrada no dia de hoje, trinta de maio. Grande guerreira, sempre munida de sua espada e escudo. E, claro, uma mão cobrindo um lado da cabeça.

— Por quê? – questionou a mãe de Jimmy, também curiosa.

— Obá ofereceu uma orelha ao esposo, Xangô, como prova de seu amor. Tudo, porém, não passou de um ardil de Oxum, a orixá que disputava o amor de Xangô com Obá. Por isso ela esconde a marca de sua mutilação.

— Uma guerreira... – Cidinha assimilou por um instante, virando-se em seguida a James. – Quem dera os governantes também nos recrutassem, e eu pudesse partir à guerra ao seu lado.

— Não entendo! Aquelas senhoras estão carregando a imagem de uma santa católica, não? – a mãe do rapaz tornou a inquirir, apontando à figura de uma mulher de espada e armadura, esculpida em gesso, levada por uma das candomblecistas.

— No sincretismo que definiu nossa fé, os orixás passaram a corresponder aos santos dos católicos – Feliciano explicou.

— E qual é aquela, no caso? – quis saber Cidinha.

Enquanto Jimmy tinha o olhar fortemente atraído à santa guerreira, o motorista elucidou:

— Joana D'Arc.

 


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