Outono no Rio escrita por Goldfield


Capítulo 1
Capítulo I




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Outono no Rio

Capítulo I

Quando uma guerra chega, e o perigo se torna constante, a vida de algumas pessoas para por completo. Mas a de outras continua, e sofrida...

Outono de 1940.

Vento. As folhas das árvores mudavam de cor e caíam, amontoando-se em grandes montes aos seus pés...

Em meio à floresta que cercava Paris estavam localizados vários vilarejos. Uma estrada rústica, de terra, estendia-se até a Fazenda D'Arc. A propriedade tinha esse nome devido à devoção de seus proprietários para com a santa padroeira da França: Joana D'Arc. Tanto que haviam colocado o nome da bem-aventurada em sua filha, Joana.

Seu pai, senhor Lorieau, era um fazendeiro pobre. As uvas que plantava em sua fazenda à produção de vinho não davam mais lucro, principalmente com os contratempos da guerra.

Sim, a guerra... Essa palavra de seis letras tão temida rompera através das fronteiras da França. O III Reich queria conquistar a Europa e nosso país teria que colaborar, por bem ou por mal.

Nunca havíamos precisado tanto de outra Joana D'Arc para libertar a França...

Lorieau, desiludido e vivendo de favores de parentes como eu, doutor Grenoble – médico e caro irmão de sua esposa, a pobre Claire Lorieau –, bebia, a cada dia, uma garrafa de vinho de sua rica adega. Assim, aos poucos, ia perdendo a razão.

Eu caminhava pela estrada já descrita, a caminho da fazenda de meu cunhado. O vento batia em minha barba castanha, cobrindo-a de fina poeira. Meu aspecto chegando ao destino estaria talvez tão sujo quanto minha amarga tarefa: não tinha notícias boas para dar, mas teria de dá-las.

O sol começava a desaparecer no horizonte. As raposas e lobos se recolhiam às suas tocas, enquanto as crianças voltavam para casa da escola e o acendedor de lampiões já preparava seus instrumentos para iluminar os bairros pobres de Paris, onde a eletricidade ainda não havia chegado; ao contrário da fome, miséria e doenças.

Quanto mais o domínio alemão aumentava, mais as moléstias se alastravam, a carestia crescia, pessoas perdiam seus empregos...

Alguns passarinhos ainda voavam, porém logo partiriam ao aconchego de seus ninhos. Nisso, vi, sobre um pinheiro, um ninho no qual alguns filhotes piavam, esfomeados. Não havia nem sinal da mãe.

De modo igual estava a situação da França: ao povo tudo faltava e o inimigo se acomodava, mas os líderes não faziam nada a respeito. Pétain e seus aliados cederam à ameaça nazista, chegando praticamente a oferecer uma cadeira ao inimigo. Pareciam mais espiões de Hitler que governantes franceses minimamente inclinados a resistir.

Alguns bravos compatriotas estavam dispostos a isso, no entanto. Ainda que fosse difícil. A dissidência do Exército dava-se fora, nas colônias, enquanto internamente mal podia mover um dedo em ajudar tais resistentes. Estes logo seriam completamente massacrados em suas investidas, por todo o país.

Os ingleses, inimigos no passado, agora pareciam preocupados com nossa situação. A parceria da Grande Guerra se revitalizava, embora com frutos bem mais escassos. Churchill buscava forças para nos libertar. Talvez isso fosse só medo, pois, após a máquina de guerra alemã haver dominado nosso território, já pretendia cruzar o Canal da Mancha e colocar Londres em xeque após exaurir os britânicos com terríveis bombardeios.

Imerso em pensamentos sobre líderes e suas controversas intenções, percorri a ponte de concreto sob a qual passava o Rio Sena.

Ah, o Sena... A família inteira, até nossos mais antigos antepassados, havia crescido ao redor daquele rio. Suas águas límpidas, margens acolhedoras e as tocas dos animais silvestres nas cercanias haviam sido palco de romances, brigas, alegrias...

Ou seja, conheciam como ninguém a saga dos Monteaux.

Aos poucos, a cerca da fazenda surgiu à minha frente. Nem percebi e já estava de frente à porteira. Abri-a devagar e entrei na propriedade onde minha irmã – que abrira mão do sobrenome "Monteaux" ao se casar – e cunhado viviam.

O sol dava seus últimos suspiros antes de desaparecer completamente. Cruzei a horta, situada perto do celeiro, no qual estavam guardadas as ferramentas e repousavam os cavalos. Eram três belos animais: um macho e forte, embora teimoso, costumava ser montado por meu cunhado Lorieau. Os dois outros eram éguas. Uma delas, de estatura média, era montaria preferencial de minha irmã; e a última, ainda filhote e filha dos dois demais equinos, pertencia à minha sobrinha.

Achava curioso como aqueles cavalos refletiam seus donos no porte e comportamento...

A casa da fazenda não era muito grande: formada por dois quartos, uma sala e uma cozinha com fogão a lenha. Havia uma porta do lado de fora, dando à escada que levava até a adega de vinhos subterrânea; e, também fora da casa, existia pequena construção de um metro quadrado onde se faziam as necessidades da natureza.

Bati à porta da sala duas vezes até meu cunhado atender:

— Ah, é você, Grenoble? Entre.

— Obrigado, Lorieau – respondi, entrando pela porta e notando tanto a careta quanto o tom descontente do anfitrião. – Não parece muito feliz em me ver...

— O que faz aqui numa terça-feira? Você só costuma vir aos domingos. Deve saber que, nestes tempos, visitas inesperadas são mau agouro... Sente-se.

Acomodei-me numa cadeira. Antes havia várias poltronas ali, porém agora só restava uma, onde Lorieau sentou-se. Teve que vender as outras para pagar dívidas na cidade. Cada vez que eu retornava àquela casa, notava mais peças da mobília ou objetos ausentes. As poltronas, por exemplo, desapareceriam uma a cada visita. Era certo que nem a de meu cunhado restaria...

— Por que está aqui, Grenoble? – perguntou Lorieau.

— Tenho algo a contar a vocês – declarei, extenuado tanto pela caminhada quanto o teor da informação.

— É uma notícia boa ou ruim?

— Já que evocou os tempos de guerra logo que entrei, acha poder haver notícias boas neles, meu cunhado?

Nisso, Claire veio da cozinha, apoiou-se ao batente da abertura entre os dois cômodos e, vendo-me, saudou:

— Olá, meu irmão.

— Boa noite, querida irmã.

— O que faz aqui numa terça?

— Tenho uma notícia para dar, como adiantei ao seu marido – fiz uma pausa, bufando. – Mas como se juntou a nós, é justo que toda a casa ouça. Poderia chamar minha bela sobrinha Joana?

— Sim.

Claire foi chamá-la em seu quarto. Ela veio – sorridente, como sempre – segurando seus livros de estudos, pois estava fazendo as tarefas de casa dadas há cinco dias, pois nesse período não tivera aula na segunda-feira. Diante da ocupação nazista, o funcionamento de muitas das escolas tornava-se incerto. Circulavam relatos de professores desaparecendo, alguns envolvidos com a Resistência.

— Olá, tio Grenoble – saudou a radiante jovem. – Muito boa noite.

— Boa noite, sobrinha.

Joana, em seus dezessete anos, era bela como as personagens dos épicos e canções. Tinha cabelos negros, olhos azuis e linhas do rosto esculpidas de modo suave e perfeito. Devido à sua beleza, vários rapazes a cortejavam. Lorieau era severo e não aceitava que nenhum deles tivesse um sentimento maior que amizade por sua filha. Chegava aos extremos dessa ideia, aliás, movido por uma mistura de zelo paternal e fervor religioso: desejava que ela fosse sempre casta e, futuramente, planejava mandá-la a um convento.

— Vamos, Grenoble – pediu Claire. – Conte logo o que tem a dizer.

— Está bem, minha irmã.

Fitei os olhos dos três presentes e, após respirar fundo, comecei:

— Vocês sabem que sempre trabalhei na Santa Casa de Misericórdia de Paris como assistente farmacêutico. Os superiores apreciavam meu trabalho, os pacientes sempre confiaram em meus diagnósticos, seguiam minhas receitas e tomavam os remédios que pedia. Hoje, no entanto, vi que tudo isso de nada adiantou. O diretor da Santa Casa me mandou embora, junto com outros médicos e enfermeiros, dando o dinheiro que estava para receber: uma mixaria. Ele alegou que a instituição está passando dificuldades e por isso dispensou alguns funcionários. Entendo que a iniciativa acima de tudo é filantrópica, mas... Era de onde tirava meu sustento. Essa é a mensagem que tinha para dar.

Testemunhei as feições de meus parentes se contorcerem de surpresa e receio. Apesar de minha habilidade manipulando medicamentos, inexistia tratamento que pudesse conceder para livrá-los daquela penúria; e isso pesou como nunca em meu coração.

— Meu Deus... – lamentou Lorieau. – Então você foi mandado embora?

— Sim. E se daqui a pouco mais de uma semana eu não encontrar um novo emprego, acabarei passando fome, pois gastei todas as minhas últimas economias.

Claire estava pasma. Não disse nada, apenas me observando com os olhos arregalados.

Ela tinha razão para cair nesse estado: o que os ajudava a viver eram empréstimos – doações, melhor dizendo, considerando a falta de exigência que pagassem – os quais lhes fazia todo mês, de cerca de cem francos cada. Lorieau me prometia pagar o dinheiro quando os tempos melhorassem; mas isso, pelo visto, ainda demoraria a acontecer.

Joana, apesar de jovem, entendia desses assuntos e me olhava com expressão um pouco menos espantada que a da mãe. Admirava seu ar sempre maduro, promessa de uma pessoa formidável assim que crescesse. Mesmo assim, estava em parte petrificada, digerindo arduamente o conteúdo de minha revelação.

Lorieau indagou, tal qual um minerador querendo cavar ao fundo de um poço contendo gás prestes a explodir:

— E em que, meu cunhado, você gastou suas últimas economias?

— Comprando um rifle de guerra, para me defender caso os alemães cheguem às redondezas.

— Eu não acredito no que estou ouvindo! – bradou o fazendeiro, levantando-se da poltrona com uma mão à testa. – Os alemães vão, sim, chegar aqui. Já estão por toda parte! Logo virão a esta região procurar resistentes para prendê-los. Se o pegarem com essa arma, será detido. Ou pior: fuzilado!

— Não sou um resistente, mas se nazistas aparecerem por aqui, irei matá-los um a um! Como devia ter feito no Somme, vinte e cinco anos atrás!

— Pierre... – suspirou minha irmã, chamando-me pelo primeiro nome. – Você tem essas ideias impetuosas desde criança, e a guerra não o ajudou a superar sua ira. Não acha que é hora de parar com isso, pois acabará morrendo?

— Concordo com minha mãe – afirmou Joana, sem medo de invadir as trincheiras do mundo adulto. – O senhor já está ficando velho e não deveria agir assim. A vida não é uma eterna batalha.

À época, eu havia recém-completado meus quarenta e sete anos: existência marcada pelos anseios nacionalistas franceses após a derrota aos prussianos; esse ódio canalizado contra os alemães na Grande Guerra – na qual lutei – e jamais realmente apaziguado, ainda mais agora que eles tornavam a nos invadir.

Encarei os olhos fraternos de minha irmã, os brilhantes de minha sobrinha e os severos de Lorieau. Após um instante sem dizer nada, levantei-me da cadeira e caminhei na direção da porta. Minha irmã se adiantou:

— Por favor, não vá! Não quisemos ofendê-lo. Coma conosco. Não gosta de carne de javali? Era o que mais comia quando pequeno...

— Sim, fique, Grenoble – convidou Lorieau, ainda que soasse contrariado. – Eu mesmo cacei a presa. Queremos cear ouvindo suas sábias histórias. Joana as adora.

Caçar para comer... – lembro-me de ter ponderado. – Antes, entretenimento. Agora, necessidade.

— Sim, tio – somou-se minha sobrinha, íris reluzentes tais quais as águas do Sena numa manhã ensolarada. – Fique conosco para a ceia. Amo suas histórias. Quando era menor, o senhor as contava para eu dormir caso estivesse sem sono. Agora que cresci, nunca mais as ouvi. Por favor, fique conosco.

— Está bem... – cedi, retrocedendo através da sala.

Os semblantes de todos se alegraram, suplantando ao menos momentaneamente o pesar anterior. Minha irmã foi preparar a mesa para comermos. Lorieau fez a pergunta que eu esperava desde que me abrira quanto à situação:

— Podemos pagar-lhe as dívidas depois do outono? Os tempos estão difíceis, caro Grenoble, e sei que não tem um tostão. Mas não posso fazer nada...

— Fique tranquilo, Jacob Lorieau – pousei uma mão em seu ombro. – Quando vocês puderem, me paguem. Nem que leve anos, até todos os meus cabelos embranquecerem. Além disso, não quero ver minha sobrinha sem o seu material de escola.

— Como vai se sustentar?

— Darei um jeito. Sempre foi assim.

Joana não ouviu a conversa. Se tivesse ouvido, teria com certeza protestado contra minha decisão, principalmente por incluí-la como prioridade.

Minutos mais tarde, minha irmã chamou-nos para cear. Sentamo-nos em volta da mesa de quatro cadeiras: desgastada e bamba, porém ainda resistindo como um fragmento do espírito francês. Fiquei de frente a Lorieau, e Joana acomodou-se diante da mãe.

Começamos a comer a carne de javali – dura e fibrosa, mas tão blindada de queixas quanto um tanque de guerra alemão. Após levarmos sete ou oito pedaços do suíno à boca, minha sobrinha pediu amavelmente:

— Conte uma história, tio Grenoble.

— Claro, mon chéri.

Depois de consultar a memória e superar a moleza causada pelo início de digestão, iniciei o relato:

— Um dia, um belo e gordo cordeirinho caminhava por um bosque de pinheiros. Andou, andou e andou o dia todo. Quando já acabava a tarde, não sabia o caminho de volta. Desesperado, decidiu pedir orientação ao primeiro animal que visse. No caso, foi a coruja. Porém, apesar da inteligência da ave, ela não sabia o caminho de volta. Depois, encontrou uma raposa, mas, apesar de toda a sua esperteza, ela tampouco conhecia o trajeto. Depois, encontrou um pardal. Entretanto, mesmo ele podendo voar e enxergar todo o bosque do alto, ignorava o caminho. Mais à frente, o cordeirinho avistou um lobo. Inocente, foi pedir-lhe orientação. A fera, vendo o cordeirinho, respondeu, quando perguntou sobre o caminho, que ele deveria segui-lo, pois o guiaria fora do bosque. O lobo levou o ovino até a alcateia, a qual o cercou e matou. Os assassinos dividiram entre si sua carne, comendo até encherem as barrigas.

— Ai, que horror! – queixou-se Claire, limpando a boca com uma tira de pano.

Joana, no entanto, demonstrou estar bem longe de se chocar com o tom sanguinolento da fábula:

— Qual é a moral, tio Grenoble? – ela inquiriu, muito interessada.

— Quando nos perdemos nos caminhos da vida, não podemos confiar na ajuda de qualquer um. Enquanto poucos são confiáveis, a maioria não sabe como ajudar, ou acaba enganando os inocentes – esclareci.

— Um conto um tanto inapropriado à ceia, mas a lição é admirável – retratou-se minha irmã, acenando satisfeita. – Você conta histórias como ninguém.

— Sou obrigado a concordar... – Jacob endireitou-se na cadeira.

— Vá buscar a sobremesa, mamãe! – pediu minha sobrinha logo que terminou seu prato.

Claire foi pegar algo na cozinha, e logo voltou com um prato contendo bonito bolo de milho. Ela o dispôs sobre a mesa e cortou quatro pedaços, colocando um em cada prato dos presentes.

Joana começou a comer o quitute, sorrindo para mim. Eu era seu tio favorito, uma vez já me dissera. "Ao menos o único que se importa com ela e conosco" – a irmã afirmara em outra ocasião. Todos os demais parentes estavam espalhados pela França, não tão distantes em quilômetros, porém com certeza em consideração.

Após terminar a sobremesa, Lorieau começou a palitar os dentes, dizendo à filha:

— Temos que acertar sua ida ao convento, Joana. Não quero que seja cortejada por nenhum rapaz. Esses abutres das redondezas... Aquele François, filho dos Dubois, é o pior de todos! – ergueu um punho em rancor. – Quando viver enclausurada, sua beleza terrena não importará mais, e sim a fé em seguir a doutrina de Cristo, propagando sua obra.

— Sim, meu pai – anuiu minha sobrinha, cabeça baixa. – Se deseja que eu seja sempre casta, assim serei.

— Para qual convento vocês mandarão Joana? – indaguei, um pouco triste e contrariado, sem receio de demonstrar oposição àquela escolha de Jacob. Se minha sobrinha lembrava Joana D'Arc na determinação, não queria de modo algum que imitasse sua sina como santa.

— Ao Convento das Irmãs da Virgem, em Paris – esclareceu Lorieau.

— Aquele em que as freiras aprendem enfermagem? – perguntei.

— Sim.

— As irmãs provavelmente atuarão como enfermeiras na guerra. Seja do nosso lado ou a favor dos alemães, o perigo é imenso. Não é melhor só mandar Joana depois que tudo isto acabar?

— Se esperarmos, ela passará da idade ao noviciado – meu cunhado replicou rígido. – Não o reconheço, Grenoble. Ao entrar aqui hoje, exaltou mais uma vez sua vontade de fazer algo para salvar este país. Decidiu tirar a comida de nossas mesas para comprar uma arma. Por que minha filha não pode seguir esse caminho? A Ordem pode inclusive tirá-la da França, o que seria ainda melhor!

— Não concordo com esse seu ponto de vista...

— Por favor, não briguem – interferiu minha irmã. Por um momento, desejei que os anseios expansionistas de Hitler pudessem ser contidos daquela simples maneira.

Resmungando, Jacob deslocou a atenção a um copo de café. Minha sobrinha, por sua vez, observava tudo calada. Quando mencionamos sua provável participação na guerra, percebi que ela empalideceu por um instante.

Não, ela definitivamente não deveria passar pelo mesmo chamado da virgem com a qual dividia o nome, passando pelas mesmas agruras...

Cerca de meia hora depois, despedi-me da família e parti ao sobrado onde morava, nos subúrbios de Paris. Chegando às ruas da cidade, logo de início me deparei com uma bandeira vermelha, contendo uma suástica no círculo branco em seu centro, tremulando numa janela...

O terrível signo que, a partir dali, definiria nossos destinos.

X – X – X

Não vi mais Joana aquele outono, porém soube que poucos dias depois de minha visita à casa de Claire, Lorieau mandou minha sobrinha ao Convento das Irmãs da Virgem, onde ingressara como noviça e aprenderia o ofício da enfermagem.

Muitas vezes, a existência é traiçoeira; e quando certas coisas são passíveis de acontecer, elas geralmente acontecem. Para nosso infortúnio, as tragédias nisso se incluem...

Num dos últimos dias daquele outono, numa tarde de sol, minha irmã foi lavar roupas no Rio Sena. Quando voltava à fazenda carregando a trouxa, uma patrulha alemã estava à beira da estrada.

O homem comandando o grupo de dez homens, um tal capitão Schreiber, viu minha irmã passar pela estrada e focou nela a atenção através de seu monóculo. Ostentando a terrível caveira da SS no quepe, fora enviado à área rural em torno de Paris após denúncias dos próprios franceses quanto à atividade de resistentes – os partisans – na região.

No passado, eu me perguntara como os traiçoeiros Borguinhões tiveram a coragem de apoiar a invasora Inglaterra durante a Guerra dos Cem Anos. Diante das atitudes dos franceses colaboracionistas perante a Alemanha, eu finalmente descobri.

O capitão emitiu um julgamento mental sobre as intenções e atividades de minha irmã – ainda que jamais a houvesse visto na vida – e, dando uma ordem em sua língua aos soldados que comandava, começou a segui-la de longe, sem que ela pudesse perceber.

Depois de chegar com o destacamento à cerca da fazenda, o oficial esperou cerca de cinco minutos após minha irmã entrar na casa para chamar pelo dono da propriedade.

Lorieau, que no momento alimentava os cavalos no celeiro entre goles de uma garrafa de vinho, foi atender à patrulha alemã. O capitão informou que eles estavam averiguando todas as fazendas da região para checar se não havia resistentes. Meu cunhado, por medo ou ânsia em demonstrar colaboração, abriu a porteira.

O grupo seguiu diretamente à casa da fazenda. Ao entrarem, Lorieau convidou-os a sentar. Apenas o capitão Schreiber o fez.

Claire estava na cozinha, fazendo café. Lorieau mandou que a mulher servisse os alemães e saiu, voltando ao celeiro a fim de concluir sua tarefa.

O comandante levantou-se e seguiu ao fogão. Minha irmã permaneceu de costas, olhando-o de soslaio. Imponente e autoritário, Schreiber lançou a pergunta sobre Claire saber sobre atividades partisans nos arredores. Assim que ela negou com um veemente balançar da cabeça, Schreiber questionou a respeito dos papéis da compra de um rifle.

Meu rifle – vendido por um contrabandista de armas em Paris que, sob tortura, cedeu meu nome, dentre outros, à SS. Tendo um cargo conhecido como farmacêutico, não foi difícil aos nazistas chegarem aos meus parentes.

Trêmula e gaguejando, Claire insistiu em negar. Foi quando, estendendo uma das mãos enluvadas, o capitão tentou lhe envolver o pescoço e estrangulá-la.

Minha irmã, tentando se defender, chutou seu tórax. O nazista, revoltado, esbofeteou o rosto dela, chamando-a de vagabunda.

Nisso, Lorieau entrou na cozinha e jogou-se sobre Schreiber. O comandante repeliu-o com um soco, e dois dos soldados alemães abriram fogo contra meu cunhado. Jacob Lorieau voou sobre a mesa, vestes ensopadas de sangue e a garrafa de vinho espatifada; o corpo sem emitir mais qualquer movimento.

Claire tentou fugir, porém um dos soldados a empurrou, e ela caiu de bruços no chão. Schreiber sacou sua Luger e fulminou mortalmente minha irmã com um disparo na nuca.

O capitão, recompondo-se, mandou que os comandados retirassem os dois corpos da residência. A instrução seguinte foi espalharem querosene e atearem fogo em tudo: na casa, no celeiro, na horta e na adega...

Os soldados carregaram os cadáveres para fora da fazenda enquanto tudo era consumido pelas chamas. Os parcos vinhedos reduzidos a cinzas, o relinchar agoniante dos cavalos ecoando através de toda a área ao arderem trancados no celeiro. Todo um sonho construído após várias gerações de suor e sangue... Totalmente destruído em poucos instantes.

Ao chegarem à ponte sobre o Rio Sena, Schreiber ordenou que os corpos fossem jogados na água. Assim fizeram os integrantes da SS; conforme o capitão, rindo, ajeitava o monóculo para melhor enxergar e marcava com um lápis um traço numa pequena folha de papel, na frente de outros três.

A propriedade dos Lorieau fora a quarta, aquele dia, a ser riscada do mapa.

 

 


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