Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda de Seiya escrita por Masei


Capítulo 94
A Estelar Safira de Odin


Notas iniciais do capítulo

Após fugir da prisão, os Cavaleiros de Atena são surpreendidos por uma domadora-de-lobos que guarda as Florestas antigas de Asgard.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/800469/chapter/94

Os aristocratas da alta corte de Asgard, geralmente de famílias antigas e outrora muito ricas, cada qual tinham o que chamavam de retiro nas florestas. Um casebre humilde, mas afastado das agruras da cidade, em que a fome e o desespero varriam tanto aqueles mais abastados, mas principalmente os miseráveis. De tal forma que naquele ano do senhor Odin, já não importava mais de que lado do passadiço da fortaleza você morasse: era certo que passava fome e orava à noite pedindo clemência ao Pai de Todos.

Alguns anos antes daquela crise invernal que tomava Asgard, no entanto, a região encontrava paz dentro de seus muros e, embora o inverno fosse sempre rigoroso, ao menos não havia escassez de comida para seu povo. Uma jovem Princesa Freia sentava-se em uma fonte congelada em frente ao retiro de sua família, com quem frequentemente dividia os passeios com sua irmã Hilda.

— Me desculpe, mas você deveria voltar para o seu quarto, Princesa Freia. — falou ao seu lado Hagen, também mais novo, magro e já muito alto, como espichado na adolescência.

Ela o olhou ao seu lado, sua tez mais morena do que o povo do norte, seus cabelos queimados por um sol que ali não existia. A fonte na forma de cavalos inteira coberta de gelo, que a Princesa tentava raspar com as mãos retirando placas e quebrando pequenas estalactites que haviam se formado. Ao ver que não poderia fazer tanto pela fonte tomada pelo gelo, ela sentou-se no banco de pedra próximo à ela.

— Hagen, alguma vez já desejou ter nascido numa terra verde e fértil banhada pelo sol?

Seus olhos eram tristes olhando para a neve que cobria o chão e a pergunta surpreendeu o jovem Hagen ao seu lado. Mas talvez por educação e decoro diante dela, Hagen não ousou responder àquela pergunta, de modo que Freia continuou como se falasse sozinha.

— Não é natural, Asgard possui um clima tão inóspito que tira a nossa liberdade e faz nós todos sofrermos. Às vezes eu me pego sentindo ódio pela nossa terra-natal, que nos impõe tantos sacrifícios. Você nunca se sentiu assim? — perguntou ela finalmente para ele.

— Princesa Freia, eu… — mas o garoto parecia hesitar, com medo de maldizer e sofrer consequências maiores daquela terra.

O jovem Hagen, entretanto, manifestou ao redor de si uma aura clara, como se o seu corpo sublimasse o ar frio ao seu redor, feito um gelo fumegante e seco. Mas era também brilhante e, ao seu lado, Freia sentiu certo calor chegar em sua face sempre gélida. Com um movimento de sua mão, o jovem garoto derreteu todo o gelo que cobria aquela fonte tão querida por Freia, transformando-o em pura sublimação no ar.

A Princesa lhe sorriu de volta ao ver que a face de Hagen não mais era iluminada por aquela sublimação ao redor de seu corpo.

— Eu apenas quero estar ao seu lado. — falou ele seriamente.

Ela apertou o sorriso no coração e os dois juntos ouviram os passos de alguém na neve se aproximar do casebre de madeira do retiro usando seu bonito vestido azul-claro e seus cabelos quase-brancos soltos ao vento: era Hilda, sua delicada irmã.

— Ora, Freia, não amole assim o pobre Hagen. — disse ela com o sorriso mais doce e fraterno do mundo no rosto.

Hilda, que mesmo muito nova já era a responsável pelo povo de Asgard, juntou-se aos dois no banco de pedra.

— É um lindo seidr esse que seu coração manifesta, Hagen. — disse ela sobre aquela estranha energia do garoto.

— Tenho treinado muito, Senhorita Hilda. — justificou ele.

— Veja, irmã. — apontou Freia para três iniciais toscamente riscadas na perna dos cavalos da fonte que reapareceram quando Hagen as descongelou.

Duas delas eram precisamente as iniciais de seus próprios nomes, mas havia entre elas uma terceira letra no idioma antigo de Asgard que fez as duas emudecerem brevemente de tristeza.

— A ausência do Mestre Durval ainda é sentida por toda Asgard. — falou Hagen para elas.

As duas filhas olharam para o amigo de pé, que parecia prestar algum tipo de respeito àquele que era o pai das meninas e que havia morrido na mais recente guerra entre Asgard e um país vizinho. Durval havia sido o governante de Asgard por muitos anos antes de cair em batalha e deixar, muito cedo, o cargo à sua jovem filha Hilda, que já desde o seu nascimento sabia-se que era a Voz de Odin na Terra de Asgard. A mãe de ambas, no entanto, faleceu quando as duas ainda engatinhavam, vitimada por uma terrível doença agravada pelo frio impiedoso de um desses invernos inesquecíveis da região.

— A natureza dura de nossa terra-natal Asgard impõe terríveis sofrimentos a nós todos, minha irmã. — começou falando Hilda, tomando a mão de Freia. — Mas não devemos odiar ou lamentar nossa condição. Se nós suportarmos toda essa provação, apesar de nossos corpos serem castigados pelo frio, nosso coração será mais radiante do que o sol e mais fértil do que as florestas.

E então Hilda pegou nas mãos frias de sua irmã e lhe sorriu docemente; levantou-se e guiou a irmã menor ao redor da fonte para mostrar como, no corpo de um dos cavalos daquela fonte, um grupo de flores brotavam da pedra fria. 

— Veja, Freia. Essa flor. Mesmo exposta ao vento e ao frio, essa flor conseguiu fincar raízes e sobreviver na terra de Asgard para florescer gloriosamente.

Freia olhou para o rosto doce de sua irmã e então para Hagen que as observava também, sempre de muito perto.

Sempre que voltava àquele lugar, aquela era sua memória mais bonita; principalmente desde que Hilda havia tomado para si o manto das Valquírias e o governo ferrenho de seu povo com o Anel de Ouro em seu dedo. Era ali que Freia decidira ficar, expulsa do Palácio Valhalla de onde havia nascido, mas de volta onde o sol parecia queimar mais forte em seu peito.

E outra vez estava ali diante da fonte, novamente toda congelada, enquanto ela, esbaforida, tentava enxergar as iniciais na base do cavalo, quando um sopro quente derreteu o gelo como em sua memória preferida. Ela olhou para trás sobressaltada e ali viu Hagen, trajado com sua maravilhosa Robe Divina prateada, mas com detalhes lindos em carmesim.

Ela sabia que ele estava ali para novamente a levar de volta à prisão, de modo que deu-lhe as costas e entrou no casebre simples de madeira onde buscou juntar algumas achas para acender a lareira da sala. Antes que ela faiscasse um quebra-pedra para dar calor às lenhas, sentiu uma lufada atrás de si que arrepiou a madeira imediatamente em fogos bruxuleantes. Era o seidr de Hagen, ela conhecia bem.

— Eu ia acender sozinha. — protestou Freia, mas Hagen nada lhe respondeu. — Está aqui para me levar outra vez?

— Não. — falou ele, finalmente. — Houve uma fuga de prisioneiros do quartel e também no Palácio Valhalla. Vim para ver se estava bem.

— Não estou em perigo. — falou Freia em um tom bravio.

Hagen fechou a porta atrás de si, ajoelhando-se diante da Princesa Freia com sua bonita Robe Divina coberta por uma capa branca e vermelha aos pés dela.

— Há invasores da Grécia entre nós. Hilda tinha razão. — falou Hagen para ela.

— Não, Hagen. — ajoelhou-se ela também para encará-lo de frente. — Não é verdade, minha irmã ainda é a causadora disso tudo.

— Princesa Freia, eu não consigo entender porque você se esforça tanto para contrariar a Senhorita Hilda.

— Minha irmã não segue os desígnios dos Deuses. Ela jamais deveria ter colocado aquele Anel.

— Princesa Freia! — bradou Hagen, levantando-se. — Deve acostumar-se com o fato de que a Senhorita Hilda não é mais a sua irmã. Ela é a Voz de Odin. Ela é Odin. O Anel não deveria estar com qualquer outra pessoa senão com ela.

E então colocou a mão sobre a lareira onde ainda havia pendurados os quadros de Durval, pai de Freia, como de sua mãe, cujo nome era Astrid. 

— Já nos cansamos de ver tanto sofrimento. — falou ele. — A Senhorita Hilda também se cansou. É chegada a hora de nós nos libertarmos dessa prisão. Eu lembro bem que isso também lhe doía enormemente, Freia. — falou Hagen, lembrando-se daquela que também era uma de suas muitas memórias queridas.

— Também não quero ver meu povo sofrer, mas não por uma mentira. É mentira que o Santuário de Atena esteja nos atacando. Me escute, Hagen. Tudo que eles querem é selar a Relíquia de Poseidon. Este inverno rigoroso que nos ataca é obra dos Mares, pois Poseidon está fora de seu tempo, como também está aquele Anel. 

— Do que está falando, Princesa Freia? — perguntou Hagen, confuso.

— Tudo faz sentido, meu amigo Hagen. — falou ela, muito terna. — A Relíquia de Poseidon, que acreditamos ser a única em todo o mundo, na verdade é apenas uma de uma coleção espalhada pelos Sete Mares. E esta é a última. E quando for selada, a paz voltará à Asgard.

Hagen levantou-se, tomado de profunda confusão, mas os olhos de Freia eram decididos olhando-o de volta. Faltavam-lhe as palavras diante de um relato tão apaixonado e distante dos ensinamentos que ela própria havia recebido nos salões de Mímir. Ele não era um devorador dos livros como ela, mas justamente através dela era que ele conhecia a grande maioria das histórias sobre os tesouros de Surtr. Algo havia mudado.

— De onde vem isso? — perguntou ele, como se já soubesse a resposta.

Freia calou-se e seus olhos desviaram-se para o fogo da lareira.

— Diga-me, Princesa Freia! Quem lhe falou essas sandices?

— Não são sandices, Hagen! — protestou ela.

— Tinha mais alguém naquela cela, não é verdade?

— Hagen, nos ajude. — implorou ela. — Hilda não deve usar este Anel. Não agora!

E então ela pegou nas mãos de Hagen, protegidas pela dura armadura de sua Robe Divina.

— Com as Safiras de Odin, o feitiço sobre minha irmã pode ser quebrado. — falou ela, implorando e buscando nos olhos do amigo alguma ajuda. — Os Cavaleiros de Atena vieram em paz e tudo que querem é selar Poseidon, mas Hilda não permitirá e…

— Cavaleiros de Atena? — interrompeu Hagen, soltando as mãos de Freia.

— Espere, Hagen! — pediu ela. — Precisamos ajudá-los, por favor, me ajude a recuperar a razão de minha irmã!

Mas Hagen estava lívido e caminhou até a porta do retiro.

— Por favor, me ajude, Hagen! — caiu de joelhos Freia.

— Quer usar a Espada Balmung contra sua própria irmã? — perguntou ele, incrédulo, abrindo a porta do retiro e deixando uivar o vento que soprava do lado de fora. — O que aconteceu com você, Princesa Freia? Isso é planejar contra a vida de Hilda e sabemos muito bem o destino daqueles que se levantam contra ela. Eu deveria prendê-la nos calabouços inescapáveis de Valhalla.

— Hagen!

— Mas sou incapaz de fazer isso. Fingirei que não ouvi absolutamente nada do que me disse, mas conte-me pelos deuses, Princesa Freia. Quem foi essa pessoa que lhe contou essas mentiras todas? Anda, diga-me!

— Não, Hagen!

— Não importa. Eu o encontrarei!

Freia gritou às suas costas e correu atrás do Guerreiro Deus que também disparou daquele retiro abandonado de volta para a cidade-principal. Dois corações em pedaços, cada qual por um motivo, mas ambos doloridos.

 

—/-

 

A floresta que cobria a planície na base daquele enorme rochedo em que se levantava o portentoso Palácio de Valhalla era selvagem e, àquele tempo, deserto, pois o inverno rigoroso vitimou grande parte dos animais que ali viviam, mortos também pela fome que congelava toda a região. Um corvo enorme, negro e lindo, voou da mais alta torre do Palácio para pousar em galhos tranquilos daquela floresta, em que uma garota olhava para o bonito animal com pensamentos distantes.

A garota também trajando uma linda Robe Divina azul-safira com detalhes em matizes mais claros e escuros, um saiote feito com a carcaça de um enorme mamífero predador e os cabelos compridos cortados de maneira selvagem para que não lhe caíssem no rosto. Ela encarou o corvo negro contra o galho nevado de uma árvore e caminhou adiante por uma trilha entre troncos e galhos que somente ela conhecia naquele local até uma clareira formada por uma enorme explosão que afastou os poucos animais daquela região.

A Guerreira Deusa ajoelhou-se afastada ao lado de um tronco de árvore e viu que a neve que antes cobria aquela clareira foi arremessada para longe, atingindo troncos de árvores e até mesmo a parte inferior das copas; de modo que o chão adiante tinha revelado a terra úmida que escondia-se debaixo do tapete branco. Ela também notou que as árvores mais próximas da clareira estavam inclinadas para dentro da floresta, como se torcidas por qualquer força descomunal.

Mas foi o que penava no centro daquela clareira que fez a Guerreira Deusa sentir certo calafrio dentro de si; não por qualquer sentimento de pena por aqueles jovens que sofriam, mas por lembrar-se dolorosamente de si mesma que outrora também estivera em profundo sofrimento em uma clareira semelhante e sequer muito distante dali. Ao seu lado, silencioso feito um fantasma, um lobo acinzentado aproximou-se.

Muitos anos já haviam passado para ela, mas às árvores ao redor, que viraram sua casa, era como se fosse ainda outro dia, em que a terra gelada e branca foi tingida do sangue da traição e da covardia. Foi naquele dia que ela encontrou seus irmãos, corajosos lobos que a salvaram da morte certa.

Há quase quinze anos atrás, quando a garota, então uma contente criança de poucos anos, fazia um passeio de domingo ensolarado com sua rica família, uma daquelas que frequentava o Palácio Valhalla e era sempre convidada aos bailes de gala em tempos imemoriais; uma família cheia de história e prestígio, que com seus subalternos tomou o domingo para galopar pela floresta a fim de terem um dia perto da natureza.

E nesse fatídico dia ensolarado, coisa rara em Asgard, a comitiva foi surpreendida por um imenso urso das montanhas enfurecido por qualquer razão, que imediatamente atacou mortalmente sua mãe, que cavalgava à frente de todos, como uma princesa nórdica; seu sangue tingiu árvores e a neve quando ela foi ao chão já morta com a patada terrível do animal. Seu pai, a garota lembrava-se bem, saltou de seu cavalo e tentou ainda evitar que o enorme animal se banqueteasse da carne de sua mãe, atingindo-o com galhos inúteis até também ser arrasado com as garras afiadas do animal, lançando-o contra uma árvore, também já morto.

Seus gritos, ainda muito jovens, de uma criança de três ou quatro anos pedindo por ajuda, por clemência, por qualquer milagre que salvasse a seus pais e à ela mesma, foram todos ignorados pelo resto da comitiva e guardas que, amedrontados, simplesmente abandonaram o proeminente casal e aquela criança à própria sorte. Ela nunca mais esqueceu-se da dor de chamar seus pais, já mortos, para que se levantassem, ou então ver que os cavaleiros simplesmente a haviam abandonado quando ela gritava com toda sua força para que lhe ajudassem.

E o enorme animal, incomodado com o choro e os gritos da criança, colocou-se sobre os dois pés para destruir a criança com sua enorme força, mas então foi surpreendido pelas presas de uma alcateia de lobos que surgiu para atacá-lo. Como seu pai havia tentado, a pequena ainda tentou usar os galhos quebrados para ajudar na briga impossível, pois mesmo que o número fosse muito maior, os lobos eram arremessados para todos os lados pela imensa força do animal que se defendia. Mas se não podiam matá-lo ali, os lobos feridos que, mesmo arremessados ao longe, ainda voltavam para acossar o enorme urso, finalmente fizeram-no simplesmente desistir daquela refeição custosa e fugir pela floresta, onde pudesse comer em paz.

A garota, outrora filha de uma rica família proeminente de Asgard, agora via-se rodeada de lobos, que não pareciam menos terríveis que aquele urso assassino; no chão, os corpos assassinados de seus pais. E se ela havia sido abandonada por seus semelhantes e até mesmo familiares, foi a alcateia daqueles jovens lobos que a adotou entre eles dali adiante por muitos anos.

E assim como os corpos de seus pais jaziam ensanguentados na neve há tantos anos, à frente dela agora também haviam cinco corpos feridos lentamente recobrando a consciência. Ela olhou para cima e adivinhou que aqueles ali haviam se jogado ou caído do alto da montanha, onde sabia ficar o Palácio Valhalla. Três daqueles que lentamente acordavam ela logo reconheceu, pois ela havia tomado parte de uma emboscada há algumas semanas para prendê-los.

Sua Robe Divina lhe fora entregue por Hilda em pessoa, pois o povo de Asgard já conhecia as histórias da menina-fera que vivia na floresta e, em um tempo de larga escassez de homens e mulheres capazes de guerra, a união da garota com a natureza e seus lobos fez com que seu seidr fosse brilhante e forte, de modo que ela acabou por se tornar uma Guerreira Deusa. E sua primeira missão foi a tomada do trio que desembarcou de um barco-auxiliar no porto.

Ela moveu-se de uma árvore para a outra, sempre muito atenta àqueles na clareira que conversavam preocupadamente sobre sua missão, mas ela pouco compreendia suas palavras. Tão distante dela quanto os lamentos de uma baleia-do-norte, pois sua compreensão do idioma do povo de Asgard, de quem era herdeira, já era muito rudimentar, para dizer o mínimo, o que dirá de estrangeiros nunca esperados em sua terra. Sem dúvidas que para ela era mais fácil falar aos lobos, seus irmãos, que a um semelhante.

Arisca e afeita à natureza, ela arriscou se aproximar ainda mais, de modo que pudesse continuar a se esconder nas sombras da floresta, mas ao menos ver de mais perto as faces daqueles prisioneiros que haviam escapado de onde não deveriam. Uma daquelas jovens levantou-se, claramente desconfiada, e olhou na sua direção dentro da floresta, sem encontrar seus olhos, mas claramente suspeitando de algo à espreita. A Guerreira Deusa olhou ao seu lado para o lobo acinzentado e fez um gesto com as mãos.

Ele respondeu uivando para o céu branco, ecoando pelos troncos de árvores e sendo respondido por muitos outros espalhados naquele bosque que encarava a clareira. Os jovens que sofriam no centro levantaram-se todos e colocaram-se uns apoiados nos outros quando viram surgir da escuridão os grunhidos famintos de lobos-da-neve de todas as direções.

— Shun. — chamou Ikki, como se pedisse que ele fizesse algo.

Imediatamente o cosmo fogo-róseo tomou conta de seu corpo e a garota, na escuridão, maravilhou-se com aquela aura que parecia queimar-lhe o corpo. Viu como as folhas das árvores nevadas moveram-se de leve, como se sopradas delicadamente, e viu no chão como uma corrente de ar parecia correr pela terra úmida, paralisando o avanço de seus lobos-irmãos e dificultando a caminhada traiçoeira daqueles animais que, diante daquela dificuldade, finalmente passaram a rosnar, inconformados que não podiam seguir para estraçalhar aquele raro banquete.

Ela meteu os dedos na boca e fez uivar um assovio muito mais agudo, fazendo com que os pássaros escondidos revoassem e os lobos parassem sua marcha lenta onde estavam. Ela levantou-se por detrás da árvore em que se escondia e pisou na luz da clareira diante de todos, e o que viram foi uma garota de cabelos acinzentados pela neve, cortados em um moicano que lhe deixava a lateral direita da cabeça descoberta, enquanto o cabelo alongava-se pelas costas quase até a cintura. Vestia uma armadura de um profundo azul-safira com detalhes mais claros e um saiote felpudo; tinha olhos claros e penetrantes, mas o rosto cheio de cicatrizes.

Os lobos retornaram para o fundo da floresta, desaparecendo da vista de todos naquela clareira, embora tivessem certeza de que qualquer vacilo ou outro comando daquela garota e eles todos poderiam ser estraçalhados pela fome das feras.

— Uma domadora de lobos? — perguntou Ikki diante de todos.

A garota nada lhe respondeu, pois sequer compreendeu o que ela lhe falou. Ela deu alguns passos adiante deles, sempre com olhos desconfiados e selvagens; Geist viu com clareza que havia uma pedra preciosa e muito brilhante na cintura daquela proteção que a garota usava: não havia dúvidas de que era uma Guerreira Deusa, um dos protetores daquela região debaixo de Odin.

— Ela não nos entende, Ikki. — falou Shun às suas costas.

A garota ferina encarou Shun feito uma fera que escolhe sua presa e então apontou para eles e os jovens notaram como sua mão era protegida por longas garras ambarinas na ponta daquela armadura que usava. Deles, seu dedo em riste passou para a montanha atrás do grupo, adivinhando que haviam escapado da prisão de Valhalla; eles constataram que, embora selvagem, não estavam lidando com uma garota tola. 

— Me escute. — pediu Shun abrindo os braços, em claro sinal de paz. — Nós viemos de muito longe, mas viemos em paz e não queremos nenhuma batalha desnecessária.

Shun buscava traduzir da melhor forma possível suas falas em gestos, mas que pouco pareciam significar algo para a garota. Seus braços abertos, sua voz sempre doce e seus olhos suplicantes e amorosos não encontraram nada do outro lado. Os irmãos e os demais atrás deles ouviram a voz ferina da garota os acusar de alguma coisa que não compreenderam.

— Ela não parece convencida. — observou Seiya.

Embora corajosos, pensou a garota, eles eram fugitivos, e à ela não parecia claro o que faziam em sua floresta; muito combalidos, ela avaliou que nenhum deles realmente lhe causava qualquer insegurança, pois três deles estavam completamente fora de combate. Brilhou ao seu redor, sutilmente, a névoa de gelo que por vezes cobre aquilo que enregela-se rapidamente.

Ikki então saltou na frente do irmão, pois viu, com o canto dos olhos, como da escuridão da floresta para onde os lobos haviam retornado manifestaram-se feixes de luzes púrpura que atacaram Shun pelas sombras. O corpo da garota foi retalhado por aquela técnica sombria e ela caiu sangrando diante do irmão, que lhe chamava desesperado pelo nome. Ikki sofria com as costas dilaceradas.

— Por que fez isso? — perguntou Shun, ajoelhado, tentando ajudar Ikki.

Viram todos como, da escuridão, os olhos vermelhos dos lobos novamente voltaram a aparecer na clareira, lentamente convergindo neles para tomá-los com suas garras afiadas, suas presas terríveis e seus olhos assassinos. Os cabelos claros de Shun, no entanto, começaram a vibrar com seu cosmo eólico novamente impedindo os lobos de avançarem em sua caça; mas todos viram como a garota manifestou ao redor de si com mais força a névoa branca de sua energia, que pareceu ressoar com os animais, pintando-lhes uma runa brilhante na testa. E os olhos dos bichos, que já eram ameaçadores, arderam em chamas e eles atravessaram a corrente nebulosa para devorar os jovens.

Assustaram-se todos com aquele poder incrível da Guerreira Deusa, bem como a voracidade com que os lobos corriam até eles. Shun ficou de pé e explodiu seu Cosmo de Andrômeda aumentando a velocidade e a potência de seus ventos, de modo que os lobos foram arremessados pelos céus caindo ao seu redor, para muito assombro da menina.

— Não vou deixar que devorem meus amigos! — falou Shun.

A Guerreira Deusa estava séria ao ver como Shun estava de pé diante dos quatro jovens combalidos atrás dele; a outra garota sangrava, enquanto era cuidada agora por June, mas mesmo Seiya ou Geist, ainda que tivessem olhos duros de batalha, ela bem sabia que nada poderiam fazer contra ela. Apenas aquele garoto, o mais doce entre todos eles, estava determinado a protegê-los e poderia realmente fazer algo.

Ela rosnou como um de seus amigos lobos por debaixo da máscara que adornava seu rosto rasgado e agachou-se para acariciar um deles, que gania de dor aos seus pés. Shun observava como sua postura era sempre desconfiada e experimentou falar novamente, mesmo que ela não o compreendesse, ainda que seus braços não soubessem os gestos certos para se comunicar. Ele tinha certeza que por mais forte que fossem os seus ventos e seu Cosmo, se ele usasse todo seu poder naquela clareira, não dobraria os ossos apenas daquela garota e seus lobos, mas de todos seus amigos e sua irmã.

— Não quero lutar com você. Não quero ferir os lobos que são tão preciosos para você. Tudo que eu quero é levar meus amigos em segurança de volta para a cidade. Não tem porquê lutarmos aqui.

A garota ainda acariciava o lobo ferido aos seus pés.

A Guerreira Deusa, no fundo de seu coração selvagem, na verdade não os atacava por qualquer lealdade à Valhalla ou até mesmo Asgard, onde era conhecida como a menina-fera das florestas a quem todos deviam temer. Não havia lealdade em seu coração que não fosse àquela alcateia que a tomou quando era criança. Ela os devoraria ali mesmo para que sua família não morresse de fome como morriam atrás dos muros da cidade; pois a fome não era doença que apenas os homens e mulheres de Asgard sofriam, mas toda a vida da região padecia dia após dia também na natureza.

Morreram nas florestas pequenos e grandes animais, afastando presas de seus predadores, desbalanceando a cadeia do que mantinha Asgard para sempre viva.

Novamente as palavras e gestos de Shun caíram no vazio e a garota levantou-se e correu na direção do grupo; o garoto colocou as mãos adiante de si, criando um vórtice de vento direcionado para a Guerreira Deusa, mas ela era veloz como o bote de um lobo e conseguiu desviar dos tufões direcionados para alcançar Shun e desferir um poderoso soco no garoto, jogando-o contra o tronco de uma árvore ao fundo. Sem poder espalhar sua Tempestade Nebulosa com o perigo de vitimar seus próprios amigos, o poder de Shun era muito menor do que poderia ser.

Ikki levantou-se e tentou engajar com a garota e, embora seus golpes entrassem, a Robe Divina que ela usava a protegia de seu punho, enquanto as garras afiadas da loba rasgavam a roupa da Cavaleira de Fênix, jogando-a contra a terra úmida. Com a garota à sua mercê e prestes a dar o golpe final em Ikki, June a segurou pelo braço e recebeu uma cotovelada, sendo jogada para um outro lado da clareira. Geist colocou-se diante dela e as garras retráteis da Robe Divina surgiram em seus punhos; ela avançou para retalhar a Capitã do Galeão de Atena, mas antes que as garras fincassem no estômago de Geist, Seiya entrou na sua frente e recebeu o golpe em seu próprio corpo, segurando com força o punho da loba assassina, que afastou-se com assombro no rosto.

Com o punho fincado em seu estômago, Seiya tomou-a pelas costas e ascendeu seu Cosmo, mas, logo que a segurou, caiu desmaiado sem poder dar cabo de sua técnica máxima. A Guerreira Deusa então saltou para longe deles, ofegante, ao ver-se quase tomada pela loucura do garoto. June debruçou-se sobre o corpo ensanguentado de Seiya, tentando conter o sangue que lhe vertia do estômago.

Ao longe, a menina-selvagem viu como Seiya sangrava tomado de dor, enquanto June debruçava-se sobre ele rasgando a roupa que lhe cobria do frio para estancar o ferimento; Shun se levantou ao longe e também veio ao auxílio do amigo, assim como Geist e até mesmo Ikki. Um grupo sofrido de guerreiros que não se davam por vencidos e que se colocavam em perigo uns pelos outros.

A neve que caía leve do céu já cobria o chão com uma nova camada de gelo que tingia-se com o sangue escuro daqueles garotos; ela olhou para eles, abismada e surpresa, e então seus olhos caíram na alcateia de lobos que esperava seu comando na escuridão das árvores. Lembrou-se de si própria estirada ao corpo de seus pais.

Ela hesitou ao ver aquela comovente cena e quem notou seu assombro fora Shun, mas também Ikki, que armou sua guarda para aproveitar-se da aparente confusão da menina, mas Shun segurou seu punho.

— Cuidem do Seiya. — pediu o garoto.

E afastou-se do grupo, avançando lentamente com os braços abertos para a Guerreira Deusa. Os lobos ao redor rosnavam, furiosos e esfomeados, enquanto Shun se aproximava dela, que também colocou-se em guarda, suas garras ambarinas retráteis e prontas para retalhar o menino se fosse necessário. Ele então fez algo que outra vez assombrou a garota. Shun ajoelhou-se diante dela.

— A mim. Não a eles. — falou Shun e gesticulou com seus braços por pelo menos três vezes.

Entregou-se o garoto à mercê da menina. Se sacrificaria pelos amigos, pois ainda que Ikki se dispusesse a lutar com todas as suas forças, ela não teria qualquer chance contra aquela garota usando sua Robe Divina. E mesmo que Ikki pudesse estraçalhar sua mente devorada por aquela floresta, os lobos se vingariam devorando Seiya, Geist e June, que nada podiam fazer. E ele próprio não poderia usar sua Tempestade Nebulosa ou mataria a todos. Não via solução e ali o medo de perder todos seus amigos lhe arrasou o peito de tal maneira que Shun escolheu morrer por todos eles, se fosse uma opção.

Ajoelhou-se, fechou os olhos e esperou ser devorado pelos lobos.

Mas a Guerreira Deusa estava absolutamente confusa com aquele garoto ajoelhado à sua frente, pois jamais em sua vida observou qualquer coisa que não tenha sido o mais profundo egoísmo dos homens e mulheres que a haviam abandonado naquela floresta à mercê das feras, ou então dos aldeões de Asgard que lhe negavam a comida na beira da estrada, ou então dos boêmios que contavam mentiras e histórias fabricadas de seus crimes nas fronteiras.

E se o idioma era barreira intransponível entre ambos, aquele gesto de Shun parecia claro para todos, até mesmo aos lobos, que já se aprontavam para devorá-lo ali mesmo. E ainda que reconhecesse o enorme valor e coragem do menino, tão diferente de seus semelhantes, a Guerreira Deusa escolheu respeitar seu sacrifício, pois a fome devorava seus irmãos lupinos.

Ela estendeu os braços e claramente comunicou aos seus lobos que avançassem no garoto.

— Shun, não!

— Fique onde está, Ikki! — devolveu ele, e a Guerreira Deusa viu o desespero que havia no rosto da menina paralisada.

Paralisada, pois o Cosmo de Shun que antes paralisara os lobos à sua frente agora mantinha Ikki e seu grupo de amigos paralisados em sua corrente nebulosa sem que pudessem fazer qualquer coisa.

Os lobos avançaram lentamente e Shun fechou os olhos, deixando seu Cosmo tomar conta de seu peito, enquanto lhe queimava feito fogo rosa o corpo inteiro. Havia fome nos olhos das bestas e eles avançavam um pouco vacilantes, rosnando, babando, mas aos poucos também desistindo. Os lobos, feito cães, aos poucos desanuviaram a feição bestial que tinham, acalmaram-se diante daquela figura que parecia quase divina ajoelhada no chão, pacificando os animais ao redor.

Todos os lobos simplesmente olharam para o lado e retornaram para o fundo da floresta, desaparecendo todos. A Guerreira Deusa não acreditava em seus olhos, e olhando para todos os lados sem compreender como o garoto havia comandado todos os lobos para se afastarem dali, não percebeu que Shun levantou-se e atacou-a com a mais profunda ternura de um abraço.

Ela sequer sabia o que fazer com os braços e, pior, com o sentimento terrível que lhe invadiu o peito naquele instante, pois não lembrava-se da última vez que havia sentido o corpo quente de outro ser humano. Shun quebrou o abraço com um sorriso no rosto e repetiu entre falas e gestos.

— Só queremos paz.

Ela não respondeu, embora tenha compreendido ao seu modo o que o garoto queria dizer; e ele colocou a mão em seu próprio peito e apresentou-se pela primeira vez.

— Shun.

E colocou a mão na proteção do peitoral da Robe Divina da menina-selvagem. E sua voz vacilante lhe respondeu.

— Fenrir.

— Fenrir. — repetiu Shun à sua frente. — Obrigado.

Os olhos de Shun, no entanto, observaram de mais perto que sua mão resvalou em uma gema preciosa que brilhava no peito da menina: era a Safira. Uma pedra que Ikki havia lhes dito antes de serem acossados pelos lobos de que precisariam para trazer paz àquele lugar. O garoto apontou em seu próprio peito a pedra preciosa que a garota tinha em sua Robe Divina e ela olhou da pedra para Shun.

Shun afastou as vestes que lhe cobriam o pescoço do frio e então tirou um pingente de estrela que Ikki havia lhe dado quando ainda era muito criança e ofereceu à ela. Vacilante, Fenrir olhou com seus olhos selvagens os olhos doces de Shun e, por um momento, hesitou, mas então aceitou o presente do garoto. Um lobo cinza apareceu entre eles da floresta e, próximo como estava, Shun viu que o lindo animal tinha inscrito na testa uma bonita falha na coloração de seus pelos que assemelhava-se à uma lua crescente. 

A fera olhou para Fenrir, que olhou-a de volta, e ela viu o animal lamber-lhe a mão carinhosamente; Shun não saberia dizer e jamais adivinharia, mas compreendeu que era como se aqueles irmãos se comunicassem. Ela fechou os olhos e tirou a Safira de dentro de sua Robe Divina e colocou na mão de Shun. E assim deu-lhe as costas e sumiu dentro da floresta que era sua casa.

Mas a cada passo que dava ao lado daquele seu irmão de quatro patas, a Robe Divina que a protegia divida-se no ar, abandonando seu corpo peça por peça, montando-se na neve na linda figura de um lobo selvagem e escuro. A alcateia inteira uivou ao céu branco escondida nas árvores e Shun nunca mais veio a ver aquela figura trágica dos contos de Asgard.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

SOBRE O CAPÍTULO: a luta de Fenrir no desenho é legal, mas tem um desfecho muito ruim, com uma morte estúpida. Eu quis alterá-la não somente para dar um final mais digno à personagem, bem como também dar ao Shun uma oportunidade de "vencer" uma batalha pacificamente como ele sempre quis. A cena inicial é uma ampliação de uma bonita cena do Anime. =)

PRÓXIMO CAPÍTULO: A BATALHA MORTAL DE FREIA

Hagen parte para as Cavernas do Sul ao descobrir que os Cavaleiros de Atena estão atrás da Caverna de Surtr, e Freia surge no coração da terra para tentar impedir o amigo de cometer um grande erro.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda de Seiya" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.