Art Déco escrita por Shalashaska


Capítulo 2
A Torre




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Nem as cartas de tarot serviram para ajudar Wanda Eisenhardt a encontrar seu broche. De novo, a exata combinação:

O diabo.

A Torre.

A Morte.

E nada de seu amuleto, a única joia de sua mãe. Procurou no carro de John, na floricultura, no apartamento inteiro de Agatha, entre as dobras do casaco vermelho que tinha usado durante aquela maldita madrugada e até mesmo ficou encarando o chão perto do cassino, na busca de um brilho característico e muito caro ao seu coração. Nada. Então decidiu que não havia mais nada para si no mundo externo e preferiu ficar em casa nos seus poucos dias de folga, chorando pelo objeto perdido com o gato preto no colo.

Agatha bem tentou consolá-la, Pietro também; mas a única coisa que lhe traria paz era ter o broche em suas mãos de novo. A joia era o que lhe protegia, Wanda acreditava nisso. Levar em consideração demais conselhos sobre a vida não evitara perigos e catástrofes, pois nada adiantava ser uma mulher cauta se no fim dependia da sorte no último segundo para sair de apuros. Não sabia se odiava mais o destino, o acaso, si mesma ou Declan Dane. 

A todo instante ela revivia aquela madrugada, a briga com Albie e Carlo e como tinha usado a piteira com força para cegar um deles, tateando cada memória para encontrar o ponto onde poderia ter feito tudo diferente. Deveria ter sido mais suave com aqueles dois canalhas? Ou aceitado ter seu rosto mutilado? As cenas se repetiam de novo e de novo, e Wanda ardia por mudar a realidade com as pontas de suas próprias mãos. Então ela foi atingida por uma epifania tal como se tivesse sido eletrocutada por um relâmpago: o broche estava no carro de Bucky Barnes. O casaco vermelho estava péssimo de tirar enquanto ela estava dentro do automóvel e talvez… Talvez tivesse caído naquele momento, estacionados na frente do apartamento. 

Era estupidez. Declan Dane podia ainda estar vigiando-a através de seus vários olhos na cidade, mas Wanda não suportava mais segurar a ideia de de recuperar seu tesouro. Prometeu a si mesma apenas conversar com o mecânico e partir, levando consigo a arma na bolsa caso entrasse em apuros no caminho. Aproveitou quando Pietro partiu e Agatha caiu no sono para ir até o Brooklyn, no Wolf’s Garage.

Pegou carona com John até parte do caminho, uma vez que não era nada agradável atravessar a ponte à pé; mas não iria pedir para que fosse levada até o ponto exato porque não queria acarretar mais problemas para o marido de Emilija ou próprio Bucky caso algo saísse do planejado. Sem o restinho de proteção presa ao seu vestido por um alfinete, ela não queria dar chance a mais azar. 

É claro que o azar também não iria dar uma chance a ela.

Wanda deu de cara com as portas fechadas do galpão. Com peso sob seus ombros, ela circulou pelo local — uma esquina — para conferir se encontrava algum movimento, alguma voz. Céus, ainda era terça-feira à tarde! Impossível que não houvesse alguém lá, não com tantos carros circulando pela cidade e sempre precisando de manutenção. 

Enfim, uma porta lateral de ferro se abriu, revelando uma mulher de cabelos ruivos na altura do queixo. Suas vestes eram simples, apenas um modelo diurno preto de mangas curtas e detalhes vermelhos, mas a moça vestia-o com tamanha graça que Wanda achou que ela poderia ir no mais requintado baile e ainda estaria muito elegante. Ela piscou seus longos cílios e questionou:

— Atrás de James Barnes? 

— Sim, — Deu um passo para frente, embora um tanto intimidada pelo par de olhos vibrantes fixos nela própria. Apesar da figura adorável, a expressão da mulher era muito séria e seu sotaque denunciava que vinha de um lugar distante. Talvez fosse a esposa, pois certamente não parecia uma irmã. Aquele pensamento estranhamente a desapontou um pouco. — Ele está?

A outra desabrochou um sorriso. 

— Você é a menina que ele comentou. Bom te ver bem.

— Oh, obrigada. — Wanda franziu a testa, agradecendo ao mesmo tempo em que estava confusa. Não tinha ideia de quem ela era e muito menos a razão de James Barnes ter falado do assunto, no entanto considerava a recepção amigável. — E você é…?

— Uma conhecida dele. Venha, ele disse que talvez você viesse. — A moça ofereceu-lhe a mão, puxando-a suavemente para dentro da oficina. — Ele não está, mas você pode ficar conosco até ele chegar.

Conosco?

O ambiente era moderadamente amplo e a luz entrava bem pelas claraboias. Havia um galpão com um trio de carros esperando para sofrerem reparos e outros dois mais cobertos por uma lona cor de oliva, além do balcão de ferramentas e produtos variados que Wanda não conseguiria distinguir muito bem, apesar de sentir cheiro de graxa e combustível. Ela atravessaram o local para chegar numa saleta anexa, onde vinha um som folgado de um trompete. Wanda cogitou que talvez fosse o rádio ligado ou algum disco na vitrola, até que se deparou com mais duas pessoas: um homem loiro com um caderno e lápis na mão, outro de pele escura com o dito instrumento musical em mãos.

— Esse é Steve, o melhor amigo de Barnes. — O loiro acenou enquanto a mulher ruiva empurrava-a para dentro, fazendo as devidas apresentações. Steve, em um gesto cortês, arrastou mais uma cadeira para a mesa, já que eles pareciam apenas se juntar em torno dela para jogar conversa fora e ouvir o outro tocar trompete. — Sam, o...

— O mais charmoso, obviamente.

Wanda não pôde deixar de sorrir. Ele, de fato, carregava a mesma expressão galante e alegre que o som de trompete tinha; além de ter um bom gosto para usar um colete acima da camisa e uma boina baixa, cinza. A mulher ruiva sentou-se ao lado de Steve numa poltrona velha e cruzou as pernas, muito à vontade, coisa que surpreendeu a jovem. Sempre tinha cautela com desconhecidos, mas algo lhe dizia que não havia necessidade de ficar em alerta, muito pelo contrário: ela se sentia inclinada a recostar-se na cadeira com tanta folga quanto a outra moça. O cômodo não era grande, mas parecia dividir as funções de escritório e uma pequena sala de estar, cujos fundos abrigavam uma copa estreita. 

— E me chamo Natasha. 

Ela apertou a bolsa, ansiosa e muito consciente de que carregava uma arma ali dentro. Alternando entre o olhar de cada um deles, ela tentou tatear sinais de que poderiam prejudicá-la, algum indício ou sinal que revelaria as mais podres das intenções. O caderno de Steve estava aberto sobre a mesa, com desenhos belos de águia e um par de olhos femininos vibrantes na margem de uma das folhas; Sam tamborilava os dedos compridos sobre o trompete, ensaiando notas sem realmente tocá-las. Natasha, por sua vez, encarava-a longamente, como se esperasse a reação dela para prosseguir a conversa.

— Eu sou Wanda.

Sam achou graça da timidez dela, mas tentou fazê-la se sentir mais acolhida:

— Gosta de jazz, Wanda? — Quando ela anuiu, o sorriso dele acendeu o cômodo e os outros dois pareciam esperar tal coisa do homem. Ele ergueu uma sobrancelha e se virou para os amigos, suas maçãs do rosto altas numa expressão matreira. — Viu, ela já é parte da turma.

E passou a tocar uma melodia baixa e suave, para não atrapalhar uma possível conversa. No início, não falaram nada. Wanda não tinha assunto, pois toda a situação havia lhe pegado desprevenida. Esperava encontrar apenas James Barnes, algum ou outro mecânico trabalhando, e então quem sabe um diálogo amistoso. Na melhor das hipóteses, ele somente devolveria-lhe o objeto e os dois jamais se veriam de novo. Na pior, ela teria que brigar pelo broche e, quem sabe, apontar a arma que estava em sua bolsa para alguém. 

Não estava nos seus planos e nem em suas cartas de tarot que seria convidada a uma reunião intimista com velhos amigos, mesmo sendo ela uma completa desconhecida. 

Natasha puxou um cigarro de uma caixinha acima da mesa, sendo descaradamente recriminada pelo olhar de Steve. Ela não se importou e buscou também o isqueiro.

— Você fuma, querida?

— Ah, eu… Eu até fumo, mas não gosto muito.

A ruiva franziu a testa, tentando desvendar a resposta de Wanda. Por que fumaria, se não gostava disso? Ela tinha suas estranhas razões, mas sentia-se uma tola ao pensar mais sobre o assunto, recusando a oferta de Natasha. 

— Não se preocupe, Bucky já vem. — Steve explicou, enquanto ajeitava o suspensório por cima da camisa branca. Sua voz era suave, embora seu olhar também fosse atento. Wanda reconheceu nele o mesmo tipo de bondade discreta que enxergou em Bucky, no beco. No entanto, não se enganava em achar que ele não seria capaz de alguma medida mais drástica tal qual o amigo, o que era agradável. Bondade explosiva era honesta e Wanda respeitava isso. Foi então que notou um par de plaquetas penduradas em seu pescoço, indicando que ele também estivera na guerra.  — Ele conseguiu uma vaga temporária numa padaria a algumas quadras daqui, então alguns dias da semana ele trabalha com farinha, não com óleo. 

— Não óleo de carro, eu diria. — O outro parou de tocar o trompete para comentar. — Ele já trouxe doces fritos para cá.

Natasha riu com sua voz rouca e tragou mais uma vez, antes de completar a fala de Sam:.

— E como bons amigos, nos reunimos aqui para ver o que Barnes vai trazer. Espero que seja aquele bolinho com mirtilos, o último estava divino. É a melhor sobremesa que ele faz.

— Você quer dizer torta de maçã, certo?

— Eu disse torta de maçã, Rogers?

Foi a vez de Wanda rir. Colocou a bolsa acima da mesa em um gesto delicado, para em seguida repousar as mãos sobre o colo e observar aquela conversa adorável. Aprendera que o sobrenome de Steve era Rogers, aprendera que ele tinha uma dinâmica — no mínimo interessante — com Natasha. Fazia tempo que não saia assim de dia, para conversar coisas que não giravam em torno de apostas do cassino e perigos envolvendo o rolar de dados.

Steve se inclinou para frente, recuperando o caderno. Cruzou as pernas, colocando a canela da perna direita sobre o joelho esquerdo, para depois ajeitar o resto da postura e questionar: 

— E você, Wanda? Qual é a sua sobremesa favorita?

— Ah, — Tentou soar respeitosa. — Eu gosto de mirtilos e maçãs.

Natasha foi mais incisiva:

— Mas qual é a sua sobremesa favorita?

A jovem deu de ombros. Sua resposta pareceria um tanto esnobe ou pretensiosa, mas era um desejo atendido apenas algumas vezes ao ano — como o aniversário dela e de seu gêmeo — e verdadeiro:

— Não resisto a um chocolate.

É claro

A outra moça trocou um olhar confidente com Steve, uma expressão de quem sabia de algo deveras interessante e que o loiro poderia compreender a graça sem mesmo trocar uma única palavra com ela. Até Sam engasgou em uma nota no trompete, seus lábios um tanto curvados para cima ainda colados no bocal do instrumento. Antes que pudesse questionar sobre o que se tratava, Wanda foi alvejada por outra pergunta, desta vez de Natasha:

— Veio pelos belos olhos de Barnes ou outra coisa?

— Ah, eu… — Ela engoliu seco, de repente sem saber como responder. Não tivera tanto tempo ou humor para reparar mais nos olhos de James Barnes, embora se lembrasse que tinha gostado deles. Eram expressivos e Wanda não sentia um único resquício de malícia neles, só… Quietude. E ela bem podia se acostumar a encarar alguém e encontrar um doce silêncio, não intenções ocultas. —  Eu acho que deixei cair um broche meu no carro dele e queria conferir se realmente estava aqui. Se James poderia me devolver.

Natasha ponderou sua resposta, concedendo-lhe uma pausa para pensar e fumar. O quanto James havia narrado sobre a madrugada para seus amigos? Não pareciam intimidados ou temerosos por Wanda ser uma das garotas do cassino, uma peça dos Dane.

— Gosta de joias?

— Eu… — As pontas dos dedos foram direto para seu ombro, naquele vago gesto habitual de encostar em seu amuleto. Ela logo desviou a mão dali, lembrando-se de que não encontraria nada alfinetado à sua roupa, só vazio. — Eu tenho muito apreço por esse broche.

— Só?

Ofereceu à ruiva um sorriso confidente, com uma certa joalheria em mente:

— E também gosto de uma tiara na Wundagore’s Gems que nunca poderia pagar. 

— Jóias são perfeitas. — Natasha afirmou, categórica. — Nunca perdem o valor e sempre podem ser trocadas pelo dinheiro local sem tanta burocracia. 

Algo dizia a Wanda que ela tinha experiência com o penhor de joias, embora fosse impossível ter certeza se sua suspeita de que a moça teria saído da Europa em 1917 — devido a uma grande revolução, além da Grande Guerra — estava correta. O sotaque a denunciava, assim como a postura nobre. No entanto, faltava-lhe o esnobismo estúpido de uma classe mais alta. O que Wanda extraiu daquela conversa foi o senso de que, se tivesse oportunidade, investiria em alguma peça de valor considerável para poder fugir.

Era uma fantasia admirável, Wanda com aquela tiara de pedras vermelhas sobre os cabelos e a bordo de um navio, direto para Londres.

O grupo continuou conversando minutos a fio, com Steve vez ou outra desviando sua atenção para o caderno e o lápis que tinha em mãos e Sam insistindo em ensaiar outras músicas com o seu trompete. O diálogo se desenrolava fácil, com Natasha contando um pouco sobre si e questionando um pouco mais sobre a vida da convidada, e é claro, com ela debochando de maneira doce de alguns comentários do loiro ao seu lado — principalmente para falar sobre a solteirice daqueles homens. Wanda falou sobre seu gato, sobre seu pai relojoeiro que passou a morar em Londres e sobre o pouco que se lembrava de Sokovia. Não demorou para que precisassem de algo mais naquela mesa, então Natasha aprontou drinks refrescantes com gin, suco de limão e soda. Eles riram, beberam, falaram coisas sem sentido e até mesmo tentaram aprender a tocar um pouco de trompete, falhando miseravelmente.

E Sam não perdoou nenhum deles.

Wanda desprendeu-se da noção de tempo e espaço. Não se preocupava mais com a bolsa que havia deixado na mesa, nem com o relógio na parede contando as horas. Jamais tinha se sentido assim no cassino, justamente o local onde sua mente deveria vagar além do corpo, imersa nos jogos e risos. Até a gravidade não alcançava seus pés enquanto dançava junto com Natasha, sem se importar se estava tão graciosa quanto ela. Natasha segurou-a pela mão enquanto a outra carregava um copo de gin, depois ergueu-a num movimento moderado, para que Wanda girasse. Na segunda volta, a jovem parou para recuperar o equilíbrio e ainda rindo, se deparou com alguém encarando-a com uma expressão curiosa na soleira da porta.

Sargento James Barnes, à sua disposição. No lugar das manchas de graxa sobre as roupas, havia um pouco de farinha sobre o tecido claro e um avental branco pendurado no ombro. Seus amigos o cumprimentaram com naturalidade e Steve ajudou-o a pegar o pacote que ele trouxera consigo, enquanto Sam auxiliava Natasha a preparar mais doses do gin rickey. Isso deu oportunidade para que ele se aproximasse dela, seu rosto carregado de uma expressão intrigada e entretida, simultaneamente sem jeito. 

Isso era bom, porque Wanda não sabia lidar com ele agora que reparara que sim, seus olhos eram fascinantes sob a luz do dia. 

— Wanda, você veio. — Disse ele, e era como se falasse que estava preocupado, que esperava-a. Entretanto, ela não se deixou levar por tais impressões, por mais que seu coração tivesse pulado uma batida. Era melhor não acreditar. — E o carro do seu irmão?

— Ele acabou levando na mecânica de um conhecido. Não foi nada grave, nem pra ele, nem para o Ford. — Deu de ombros, em seguida deu uma pausa. Não havia muito o que explicar e ele não iria querer saber de suas desventuras no escritório do senhor Emerald, de qualquer jeito. Então ela mordeu os lábios, depois decidiu lhe questionar aquilo que ocupava sua mente a dias: — James, por acaso… Por acaso você viu se…

Ele mexeu nos bolsos da calça e tirou um objeto pequeno de lá: seu broche.

— Isso aqui? Notei quando cheguei em casa. Não tive certeza se deveria voltar à sua casa ou quando deveria, mas… — Ofereceu-lhe a joia e um sorriso torto, ambos valiosos. — Guardei comigo até te encontrar.

Uma sensação na base de seu estômago preencheu-lhe de formigamento. Seria aquela a verdadeira sorte? Encontrar pessoas decentes assim, por acaso e sem motivo; logo quando precisava e sem precisar pagar nada em troca. O peso do broche em suas mãos era familiar e perfeito, tanto que ela pôde sentir de volta aquela camada de proteção envolvendo-a de novo. Entre tantos desastres, as coisas pareciam se encaixar melhor agora.

— Obrigada, James. — Alfinetou o broche com cuidado na sua roupa, agora na altura do tórax. Já era a segunda vez na mesma semana que sentia-se transbordar de gratidão por ele, mas não havia muito mais do que aquelas palavras para agradecer. O fato é que não queria fazer toda a situação sobre ela própria, de modo que optou por comentar outra coisa: — Eu não sabia que você também trabalhava em uma padaria.

Mecânico e confeiteiro. James Barnes sabia então tanto consertar as coisas quanto adoçá-las.

— Bem, eu… Eu gosto. — Ele coçou a barba por fazer em seu queixo, distraído. Indicou o braço metálico com a outra mão e explicou: — É complicado com essa prótese, não posso sovar massas. Mas o resto eu faço funcionar. Melhor cheiro de açúcar do que de graxa, não?

Ela riu, anuindo.

— Pensa em abrir uma confeitaria?

— É um sonho. 

E parecia um sonho daqueles que poderiam se tornar realidade. Wanda inspirou fundo, encarando-o com ternura. Parecia apropriadamente feliz o destino de um combatente da Grande Guerra fincar-se na paz de sobremesas e na companhia de amigos que gostavam de jazz e gin; em sonhos possíveis. Talvez fosse fácil demais se deixar levar pelo coração quanto se tratava dele, um homem com mais interesses do que gastar o dinheiro que não tinha no cassino ou bebidas fortes. Parte de si cogitava que só sentia-se assim pela ilusão de ter encontrado um cavaleiro cavalgando um corcel branco; a outra parte de si julgava-se apenas curiosa, não apaixonada.

E ela se satisfez em classificar aquilo como curiosidade.

Sam apareceu ao lado de Bucky para empurrar-lhe um copo com o drink refrescante, sem deixar de importuná-lo com seu humor incandescente.

— Só vai ser difícil bolar um nome com “Wolf” para a padaria. E aí, vamos comer o que você trouxe? Natasha está impaciente e você sabe como ela fica quando está com fome.

A ruiva só lhe ofereceu um sorriso torto do outro lado do cômodo, trazendo pratos e talheres para o centro da mesa enquanto Steve abria o pacote de papel pardo. Ele murmurou um “hmm”, o que fez Bucky sorrir acanhado, apressando-se em explicar à moça a sua frente:

— São fatias de bolo invertido de abacaxi, daqueles com rodelas de enlatados em cima. Você gosta?

Wanda deu de ombros.

— Eu adoraria experimentar.

Enquanto ele explicava como tinha feito aquela receita — e como convenceu o dono da padaria a permitir que levasse parte para casa — Sam não realmente prestava atenção, sendo cúmplice de Wanda em pegar uma segunda fatia. Se Natasha só fingia interesse em escutar a receita, então estava muito convincente; já Steve comentava uma coisa e outra enquanto desenhava no caderno. Wanda tinha quase certeza de que o esboço era a ruiva sentada na poltrona com aquela sua elegância natural, mas não quis se inclinar mais na cadeira para flagrá-lo. 

— Ah, Barnes… —  Natasha tinha aquela expressão esperta na face, uma das sobrancelhas ligeiramente arqueada. Seu sorriso era quase felino e ela ainda deu uma pausa enigmática, esticando-se para pegar o copo da mesa. — Traga algo de chocolate da próxima vez, sim? Wanda gosta de chocolate.

As bochechas da jovem coraram. Já era demais existir uma próxima vez para vir à oficina de Barnes a fim de se divertir, pensar então que o pobre mecânico e confeiteiro iria fazer algo com chocolate era simplesmente extrapolar da gentileza alheia. Ela ergueu as mãos em um sinal de rendição e disse, sem graça.

— Eu não quero incomodar.

— Bom, não seria nenhum incômodo. — Ele confessou: — Chocolate é uma das minhas sobremesas favoritas também.

O sorriso de Natasha alargou-se mais e mais, bem como o ar indiscreto de Sam. Talvez Bucky também tivesse notado que existia certa inclinação daquele trio — pois Steve não escondia seu interesse pela situação — em simplesmente juntá-los, mas assim como Wanda, ele optou por se fazer de desentendido. O fato de os três então saberem sobre ela, sobre a infeliz situação naquela madrugada, e ainda comentarem sobre o estado civil de solteiro dele, fez um pouco mais de sentido. Barnes tinha contado sobre ela e bem, seus amigos tinham esperança. Havia até reparado com certo riso que Wanda apenas o chamava por James, enquanto os outros alternavam entre Bucky e Barnes. A ruiva, que estava ao lado dele, segurou o braço direito dele e esboçou outro comentário: 

Oh, ela não é perfeita?

Bucky deu um sorriso de lado, desviando o olhar sem responder. Apenas tomou um gole longo de gin rickey para evitar falar. Wanda não pôde achá-lo mais doce, pois mesmo no silêncio, era como se ele concordasse: ela era perfeita. Dessa vez, não pela roupa e seu penteado bem feito, não pela sorte e pelo seu ar teatral com uma piteira na mão. Não por ser uma peça de decoração.

♢ ♢ ♢

Suas novas amizades — e saídas ao longo da semana — não passaram despercebida por Agatha Harkness, que na realidade estava satisfeita pela moça encontrar novos afazeres que não envolvessem partir de noite e voltar tarde da madrugada, sem muito dinheiro na bolsa e com o perigo de nem voltar. A idosa ameaçava fazer leituras no tarot para checar se aquelas pessoas com que Wanda saía eram pessoas direitas, mas a jovem implorou para que não o fizesse: Se realmente eles fossem maus indivíduos, ela não queria acabar com a ilusão. O mais difícil, porém, foi convencê-la a não falar muito do assunto na frente de Pietro, que oscilava entre o instinto — ou o tolo impulso — protetor e a simples indiferença, uma vez que Wanda costumava a saber cuidar dos próprios assuntos. O fato é que ela não queria que o irmão fosse atrás de seus amigos, pois além de tal coisa ser simplesmente rude, temia envolver os colegas de Pietro nisso — consequentemente, envolvendo os Dane.

Ele estava ciente de que ela andava saindo de casa alguns dias da semana; não o suficiente para despertar atenção, mas um pouco mais do que o usual. Às vezes, Wanda pedia para o marido de Emilija deixá-la em algum ponto diferente do Brooklyn para chegar até a oficina andando, outras vezes Pietro a levava para lojas nas quais ela não tinha nenhuma intenção de entrar. O importante era atravessar a ponte de automóvel e não denunciar a pobre oficina de James Barnes. 

Era um bálsamo na vida dela.

Todas as noites, quando voltava do cassino após ter ganhado apostas e vencido trapaceiros, ela tinha pesadelos que provocavam-lhe olheiras, suor frio e dor súbita no tórax. Muitos deles envolviam o som de um disparo ensurdecedor, o que fez Wanda esconder a bolsa com a arma no fundo do armário. Tirava-a apenas quando partia para o trabalho e mesmo lá segurava-a como se o objeto pudesse atirar sozinho. Quando não sonhava com esses disparos anônimos na escuridão de sua inconsciência, cenas de pessoas tirando a própria vida invadiam seus pesadelos. Uma figura de terno jogando-se de um prédio bonito, outra de uma ponte. Um homem inalando gás de cozinha. E fome. Wanda sentia imensa fome quando acordava, como se dúzias de bocas famintas existissem dentro de seu estômago.

Havia algo próximo, ela sabia disso e aquela certeza devorava-a. O que, exatamente, ela não compreendia. As cartas de tarot, todavia, não mudavam e não mentiam; seus pesadelos prosseguiram alertando-a que sua sorte talvez não a livrasse do que estava por vir. 

O diabo.

A Torre.

A Morte.

Com o fim da primavera e no alvorecer das folhas alaranjadas do outono, Wanda sentia que o pior estava perto de ocorrer. Seria naquele ano, numa quinta-feira. Era o máximo que pudera distinguir entre tantas mortes em seus sonhos e a confusão enquanto desperta. À tarde, ela só queria esquecer daquilo e visitar seus novos amigos. À noite, ela voltava para o cassino e esperava as horas passarem enquanto ganhava um dinheiro que não seria seu; esperava por pesadelos que a acordariam em um sobressalto.

Wanda permanecia vigilante, mesmo que o senhor Emerald parecesse ter baixado a guarda. Ela não soubera o desfecho da situação da sabotagem do Bentley dele e ninguém comentara da morte de Albie e Carlo, nem mesmo Remy LeBeau. O máximo que escutara entre as outras meninas do cassino é que Dub e Dother não andavam muito satisfeitos com as políticas estabelecidas por Declan, mas isso era um assunto maior e mais perigoso que todas elas. Uma fofoca que não valia a pena se meter, tanto que Wanda não se importava em ser um simples vaso decorativo aos olhos dos irmãos Dane. A boa garota em que Declan confiava. Mantinha uma rotina discreta, as apostas baixas — ainda que constantes. 

Suas visitas ao Wolf’s Garage seguiam a mesma linha.

Wanda e Natasha se aproximaram com o decorrer dos dias. A rotina de chegar na oficina e ser recebida pela ruiva já era algo definido na cabeça da jovem e elas conversavam sobre tudo, mesmo que os rapazes ainda estivessem trabalhando em algum reparo mais dispendioso e não pudessem ir na saleta para participar. Os três mantinham aquela pequena garagem funcionando, ainda que cada um deles tivesse uma inclinação diferente: Steve à arte e a fotografia, Sam ao jazz, Bucky à culinária.

Natasha mexia com as finanças do lugar.

Às vezes, saíam juntas para fazer compras no mercado e papear, como a ocasião em que checaram tecidos novos nas melhores lojas de Lower East Side ou a quando encontraram-se com Emilija na feira por coincidência. Naquele dia, as duas passaram em frente à joalheria Wundagore’s Gems e admiraram as joias, especialmente a tal tiara que Wanda tanto amava. Em outro momento, ela foi até a casa de Natasha — uma pensão no Brooklyn — e conheceu a irmã dela, uma moça loira chamada Yelena. Elas puderam beber como três garotas comuns — quem sabe um tanto desordeiras segundo as más línguas — falando um pouco dos países de onde vieram e comparando diferenças no idioma. Wanda fez uma leitura de tarot para sua amiga ruiva por insistência dela, mas não se arrependeu ao indicar um amor próximo.

Hmm, — Disse ela com um sorriso tímido, mas os olhos sugestivos. Fazia tempo que não tirava a sorte para outra pessoa e tivera receio de estar simplesmente enferrujada, mas todas as cartas faziam sentido. Mesmo se Wanda fosse menos observadora e não soubesse o que se passava entre Natasha e certa pessoa que aparentemente gostava muito de desenhar seus olhos, a mensagem dos arcanos maiores e menores ainda seria deveras positiva. — O Rei de Copas sugere um homem amável, calmo. A Temperança me diz que existe diálogo entre as duas partes, harmonia. É claro que pode indicar a necessidade de equilíbrio, mas confie em mim. Sei que isso já existe entre vocês dois.

Natasha riu com o copo na mão.

— E ele é rico?

— Nem você se importa com tal coisa. — Ela exibiu a última carta. — O Dois de Copas já me contou que a atração é mútua.

Enquanto Yelena debochava da irmã, Natasha xingou-a e jogou ao menos duas almofadas na direção de Wanda, que ergueu um dos braços em rendição e com o outro tentou proteger seu copo cheio.

— Sua diaba! Inventando coisas! — Atirou a última almofada, depois gargalhou e enfim se acalmou. Havia um sorriso quieto em seus lábios e muitos pensamentos em sua cabeça, coisas que jamais diria. Ela tentou ser o mais discreta possível quando questionou, girando o líquido dentro do copo: — E nós ficamos juntos? Não minta.

— Segundo o quatro de paus, sim. Acontecerá algo bem positivo, uma celebração empolgante. Quem sabe até… Um casamento.

Natasha deu de ombros.

— Duvido que o Rogers tenha tempo pra uma festa grande.

— Ah, céus. — Yelena acendeu um cigarro. — E quem falou dele, sua tonta?

A jovem jamais iria esquecer o quanto a outra perdera toda sua compostura e tornara-se vermelha, vermelha e vermelha como a cor de seus cabelos; o quanto a ruiva ria e derrubava gin no tapete e quase molhara as cartas de Wanda. Natasha denunciara a si mesma, mas naquela altura, não fazia diferença: já existiam suspeitas sobre os sentimentos circulando entre ambos, só faltava afinal admitirem ou algo de fato acontecer. Outro ponto positivo era a oportunidade de debochar um pouco de Natasha, pois Wanda sofria com constantes e inócuas insinuações sobre seu não-relacionamento com Bucky.

A celebração que surgiu na semana seguinte foi a festa de aniversário de Sam Wilson, em outro bairro. Ele morava e trabalhava no Brooklyn, mas sua família tinha se fixado no Harlem quando vieram de Nova Orleans e é claro que seus amigos daquele lado da cidade iriam se envolver para organizar a noite. Seus pais, a irmã com o marido e seus sobrinhos cederam o espaço; os amigos ficaram responsáveis pela música e outros convidados levaram comidas. 

Wanda se certificou que seu dia de folga caísse no mesmo dia e economizou o suficiente para um presente apropriado.

— Oh, bruxinha. — O aniversariante abraçou-a forte, sem evitar de usar o apelido que deu pra ela quando ela e Natasha começaram a falar das cartas de tarot na frente dele. Wanda preferia esse apelido à Dama de Ouros, uma vez que não era um deboche insidioso. Só era bobo, até terno. Um pouco mais curto do aquele pomposo que aquele seu estranho grupo uma vez disse, Feiticeira Escarlate.  — Você realmente tem bom gosto, não?

Ele ainda segurava a pequena caixa de madeira com tecido acolchoado por dentro, exibindo o par de abotoaduras no formato de aves — para combinar o nome que ele tinha no grupo de jazz: Falcão. Não era um produto caro, apenas banhado em prata que Wanda tinha visto em uma propaganda da joalheria Krementz. 

— É para um homem charmoso, não é? Vai dar pra ver enquanto tocar trompete.

Exatamente.

Depois que a atenção dele foi roubada por outro convidado, ela decidiu conferir a comida na mesa ao meio da sala. Wanda não era grande apreciadora de gelatinas que as pessoas costumavam gostar, mas a culinária ali era mais convidativa do que os petiscos dos clientes ricos no cassino consumiam. A irmã de Sam, Sarah, tivera o cuidado de indicar quais comidas levavam porco ou quaisquer outros alimentos que ela não podia comer, e Wanda provou do frango frito com tempero especial. Sua intenção era experimentar um pouco das comidas salgadas para então partir para os doces. Curiosamente, foi nesse momento que um bolo tentador de chocolate foi repousado em um espaço entre os demais pratos, atraindo atenção da jovem por um minuto inteiro antes que enfim encarasse quem trouxera tamanha gulodice:

— James, você chegou! 

O instinto dela falou mais alto, mas havia um quê de tensão ao jogar os braços sobre os ombros dele e abraçá-lo. Ele riu de um jeito acanhado — assim como todas as vezes que ela o chamava por James, não por Bucky — e retribuiu o gesto, embora logo os dois se repelissem de nervoso como dois ímãs de polos iguais. O confeiteiro passou os próprios cabelos, depois enfiou as mãos nos bolsos. Tinha passado os olhos no ambiente ao redor, mas não havia encontrado as figuras que esperava ver.

— Onde estão Steve e Natasha? 

Wanda lançou-lhe um olhar sugestivo.

— Eu não sei. Nat disse que queria fumar, quem sabe… — Deu de ombros. — Tenha ido em uma das janelas no andar superior.

— Que escândalo, — Ele aceitou um copo que Sarah distribuía. — Isso é uma festa de família.

Ela sabia que ele também estava sendo jocoso, mas a sensação da festa à meia luz, música e o som de conversas haviam desligado sua cautela. Talvez o pouco de álcool que consumira também servira para corar-lhe um pouco mais a face e acender seu coração.

— Ora, alguns beijos não são nada inapropriados.

— Oh, não?

— Não. — Wanda ostentou uma expressão séria e falsa, com um pequeno riso querendo se formar na boca pintada de vermelho. — Ainda mais quando a dama não se importa com tal coisa.

Os olhos dele faíscaram e em seguida ele deu um gole na bebida, que não passava de uma variação do gin rickey que por vezes tomavam na oficina.

— Bom saber, boneca. Quando os dois desejam, então não é nada inapropriado.

Wanda sentiu-se derreter e morrer por dentro. Uma coisa era flertar com ele de um jeito aberto e simultaneamente dúbio, um ato que por vezes fazia no cassino para convencer um cliente ou outro a apostar mais alto. Era divertido, despreocupado e sem real intenção de ser correspondido. Outra coisa era fisgá-lo de verdade e ter toda sua atenção, ouvi-lo chamar de boneca como ele assim fazia aqui e ali, só para deixá-la com os joelhos bambos e o rosto ruborizado.

Desde que ela começou a frequentar a oficina, tinha passado mais tempo com James Barnes. Havia dias em que chegava mais cedo e provava das invenções gastronômicas dele, geralmente envolvendo doces. As invenções alcoólicas ficavam por conta de Natasha. Descobrira que ele e Steve eram amigos de infância, que o apelido Bucky vinha de seu nome do meio, Buchanan e que só Wanda chamava-o por James. E que ele até gostava disso. Se antes ela sentia coragem pela bebida e pelo ambiente, agora não se considerava tão corajosa assim.

Só envergonhada.

— Seria apropriado te chamar para dançar?

— Se você perdoar uma péssima dançarina…

Eles partiram de mãos dadas para um ponto mais perto dos músicos — amigos de Sam — ao som do jazz. Não dançaram exatamente bem, mas não havia quem se importasse realmente com aquilo na festa. Wanda sentiu seu corpo ficar mais quente e até suar um pouco, apesar de estarem quase na metade de Outubro. As músicas variaram e o ritmo da dança também, e se que antes apenas movimentavam o corpo de frente um para o outro sem se encostar, agora ao som de algo mais lento, Bucky puxou-a para seus braços. E, naquele instante, ela sabia que estava apaixonada, não apenas curiosa. 

A festa já estava mais vazia e no fim quando Wanda deu a mesma desculpa de Natasha, dizendo que queria fumar um pouco — e não queria fazer isso dentro para não queria impregnar a casa do cheiro de fumaça para não incomodar as crianças. E já que estouravam algumas garrafas de champanhe, salvas justamente para o desfecho do aniversário, era apropriado que ela levasse Bucky para fora, pois ele ainda tinha problemas com o som súbito de estouros por causa da Guerra. Ele acompanhou-a até o lado de fora e ela tentou falar aquilo que lhe agoniava há alguns dias:

— James, — Engoliu seco. — Eu preciso de contar algo

— Não vai me dizer que na verdade não gostou do bolo, vai?

— Não. — Ela riu, soltando a tensão nos ombros. Sam havia comentado que ele trouxera o bolo não para impressionar o aniversariante, mas sim certa bruxinha que amava chocolate. E era verdade, embora James a chamasse de boneca. — Estava perfeito. 

Ele franziu os cenhos e aproximou-se mais um pouco, intrigado.

— Então o que é?

Nós. Eu, na verdade. — Apressou-se em completar. — Tenho que te contar que sou muito azarada e...

— Não parece conveniente pro cassino.

— É… — Wanda riu com tristeza. Sob a luz do luar e dos postes, seu rosto era frágil, honesto. — O azar me encontra em todo lugar, menos lá. E isso me causa problemas depois. — Pegou as mãos dele, incluindo a metálica. — Eu tenho medo, James. Medo que esse azar encontre você.

— Boneca...

— Eu tenho tanto medo e preciso te contar. — Sua voz era um fio. — Declan Dane sofreu uma tentativa de assassinato naquele dia e ele sabe que tinha mais alguém comigo, alguém que sabotou o carro.

— Oh, inferno. — Ele expirou, depois tensionou a mandíbula. Mesmo em sua aura sempre tão amena quanto a noite, vinham pensamentos dissonantes. Depois, preocupação: — Não... Não fui eu. Aqueles dois queriam que eu fizesse, mas…

A voz dela foi firme:

— Eu não me importaria se tivesse feito isso. Talvez fosse um favor, — Completou, sem de fato se importar de ficar sem seu chefe dos Dane. — Pois o senhor Emerald agora quer descobrir quem foi. Eu venho tentando te contar isso, mas... Aqui é tudo tão bom. Tão perfeito. — Confessou, querendo chorar. — E eu não queria me despedir disso tão cedo, embora eu não possa passar esse azar pra você. Me perdoe.

Ele inclinou o rosto e nele Wanda enxergava o brilho afiado da sinceridade e gotas de ternura.

— Eu já fui pra guerra. Não tenho medo dos Dane e por isso recusei o trabalho quando na verdade eles podiam enfiar uma bala na minha cabeça. E eu quero ser egoísta. Quero um bom trabalho, quero comprar uma boa casa. — Mordeu os lábios e disse a coisa que ela mais queria ouvir, e que mais seria difícil de escutar. — Eu quero você.

Ah, agora seria muito pior recusar. Soltou as mãos dele no gesto mais delicado que podia. 

— James, entenda. É perigoso e eu não suportaria ver que algo aconteceu a você por minha culpa.

A risada baixa dele ecoou na noite.

— Eu não me apaixonei por você naquela madrugada. A situação era horrível e você estava assustada com razão. Mas você ficou, apesar das coisas estranhas, meu braço de metal e minhas manias que nem cem anos longe das trincheiras vão apagar. Você ficou e eu me apaixonei por você e não vou abrir mão disso por medo. Mas, — Completou, muito pesaroso. — Se você me disser que não me ama, eu vou aceitar. 

— Não posso dizer isso, você sabe.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Por que?

— Porque eu não posso mentir pra você. — Era doloroso confessar e a expressão dele piorava tudo. O objetivo daquela conversa para Wanda, daquela festa, era ser uma despedida. O senhor Emerald ainda procurava suspeitos, ela ainda trabalhava no cassino e havia ainda alguma catástrofe por acontecer. Por mais que seus novos amigos e aventuras ocupassem um espaço caro em seu peito, ela ainda se preocupava em não enrolá-los em coisas piores. Azar. Saber que o sentimento dela era mútuo minou todas as suas intenções de se afastar e agora ela jazia ali, jorrando confissões.  — Eu quero ser egoísta, quero realizar meus sonhos e quero você, mas quero mais do que tudo que fique seguro e por mim tudo bem se eu tiver que ficar longe. Eu sonho, James, com coisas horríveis e elas são tão reais...

— Eu tenho algo que pode ajudar com isso.

— O que é? — Riu de nervoso, sem conseguir ficar brava por ele não se incomodar com suas preocupações, seus argumentos. — Chocolate?

— Um beijo. Ou todos aqueles que precisar.

Wanda empurrou de leve seu ombro, ansiando na verdade por puxá-lo mais perto de si.

— Seu ridículo.

E ela congelou quando Bucky delicadamente passou as pontas dos dedos por seu queixo, subindo a linha de sua mandíbula até segurar seu rosto com doçura. Natasha tinha razão, aquela ruiva elegante e debochada. Os olhos dele eram belos demais e Wanda não conseguia escapar do ímpeto de encará-los nem se quisesse.

— Eu quero ser todas essas coisas. Ridículo. Egoísta. 

— Tolo e insensato?

Bucky anuiu.

— Completamente apaixonado.

— Bom, você está no caminho certo..

— O que você pode dizer? — Ele provocou, aproximando-se. — Você me quer também.

Todo e qualquer resto de consciência de Wanda dissolveu-se com aquelas palavras. Sobrou apenas os dois e a vontade inevitável de se render ao seu egoísmo que lhe custaria tanto:

— Sim. Sou mais tola que você.

Wanda sentiu-se ser envolvida pelos braços dele com firmeza, a mão direita de Bucky segurando a curva de seu pescoço e seus lábios encontrando os dele. Ela fechou os olhos, acompanhando seu movimento enquanto apoiava-se em seu peitoral. O toque dele era macio em sua boca, sua temperatura era morna e Wanda podia permanecer ali durante toda a madrugada, com as mãos distraídas na nuca dele. Teria que admitir mais tarde que sim, beijos eram melhores do que chocolate para evaporar — ainda que não para sempre — temores em seu coração.

♢ ♢ ♢

O cassino fumegava com a fumaça de cigarro e o calor de pessoas rindo, dançando. A sensação de abafamento era pior devido ao som alto da banda e as conversas ébrias, mas simultaneamente essa sensação era aliviada pelos drinks refrescantes. Wanda ria junto com os clientes, com o cigarro entre as pontas dos dedos e exibindo aquele seu sorriso reservado apenas para aquele lugar. Terminava vitoriosa em mais uma partida de poker na mesa, embora o crupiê — Remy LeBeau, com sua gravata borboleta bordô — tivesse sido pago para entregar-lhe cartas ruins entre um jogo e outro. Ele só lhe ofereceu um olhar de aviso, um olhar ao mesmo tempo jocoso. Não fazia ideia de como ela fazia aquilo, ganhar com chances tão ruins, e honestamente nem a jovem entendia.

Mas ela ganhava.

Wanda estava com os lábios na borda do copo e apagava seu cigarro quando viu a expressão de Remy mudar. Era um aviso, ela compreendeu e logo um toque elétrico em seu ombro esquerdo despertou-a de qualquer pensamento leve que estivesse em sua cabeça. 

Dama de Ouros.

Os batimentos cardíacos em seu peito desregularam-se, apesar de sua face neutra — até mesmo um tanto sorridente. Lá estava seu algoz e patrão, com o terno verde escuro mais lindo que Wanda tinha visto na vida. Qualquer alfaiate de Low East Side teria inveja do trabalho perfeito, o corte reto e caimento impecável na silhueta esguia do homem que o trajava. Ele tirou o chapéu fedora e colocou-o sobre a mesa, revelando aquela mecha grisalha em seus cabelos escuros.

— Senhor Emerald, você aqui?

Ela falava um pouco mais alto por conta do barulho, mas a voz grave e calma de Declan Dane arrancava arrepios em sua pele. Não precisava aumentar o tom para que Wanda escutasse — e escutasse muito bem. Lançou-lhe um sorriso perigosamente afável e pegou firme em seu antebraço.

— Venha comigo, querida. Com licença, senhores.  — Recuperou o fedora  da mesa com o outro braço e, enquanto a jovem sentia-se desvanecer junto a fumaça do cigarro, Remy lançou-lhe um olhar de pena, muito atento. — Como tem sido a noite?

Levou-a até o bar e os dois sentaram-se em poltronas confortáveis com uma mesa baixa entre eles. Um dos segredos do sucesso do cassino era que o senhor Emerald tinha aquela perspicácia na disposição dos móveis, ao criar um ambiente casual e acolhedor. Sabia onde colocar cada coisa. Sentar ali era quase como sentar no sofá de casa, a diferença é que a música era ao vivo, ao contrário do som do rádio e as bebidas eram servidas sempre. Bastou sentarem-se para que um funcionário do bar trouxesse dois copos. 

— Boa, principalmente na mesa de poker. Dois royal flush hoje.

— Ah, se a senhorita não é mesmo sortuda. — Disse ele com um tom vago, seus olhos brilhando. Apesar de ter se gabado da sequência de cartas imbatível no jogo, Wanda não se sentia nada vitoriosa naquele instante. Buscou um cigarro com pressa na bolsa pequena, suas mãos atrapalharam-se em pegar o isqueiro. Declan, como um bom cavalheiro, aproximou-se com o próprio isqueiro aceso. — Deixe-me acender o seu cigarro, aqui. Pronto. Lembra-se do assunto do meu Bentley?

Wanda tragou longamente. Antes de começar a fumar na vida, pensava que tal coisa trazia uma sensação de calor para a boca e para o peito. Mera ilusão. A jovem estava fria naquele momento, lembrando-se muito bem do chassi do carro e do um certo mecânico naquela maldita madrugada.

— Sim, eu...

— Comprei um Rolls Royce. Mas não um amarelo, claro que não. Depois do que houve com aquele Gatsby em West Egg, acho que a cor dá azar. Então escolhi um...

— Verde.

Declan Dane sorriu largo.

— Exatamente, querida. Me conhece tão bem. — Ele abriu a boca, depois fechou. Wanda sentia frases afiadas na cabeça dele, preparava-se para o pior. Seria aquela a ocasião em que ele falaria que descobrira tudo, que sabia quem o tal mecânico era e que Wanda tinha segurado a língua no escritório dele, dias atrás? No entanto, veio uma pergunta fora de lugar: — Você dança, senhorita Eisenhardt?

A jovem soltou um riso nervoso.

— Ora, vai me chamar para dançar?

Não, temo que não.

Declan fez um gesto no ar e logo aproximaram-se mulheres com vestidos pretos, todas também usando máscaras com adereços, plumas. Apesar de cada uma delas usar um modelo de roupa diferente da outra — mantendo apenas a cor e o tipo de tecido caro — tornavam-se um grupo relativamente uniforme de meia dúzia de mulheres. 

— Essas são as meninas do Black Cat. — Ainda sentado, ele pegou a mão enluvada de uma delas. A moça sem nome era dona dos cabelos mais lindos e claros que Wanda havia visto; eram quase brancos. Seus olhos esverdeados brilhavam por debaixo daquela máscara e falavam coisas que ninguém poderia ouvir, mas que a jovem entendia perfeitamente. Nenhuma das duas queria estar ali.  — Lindas, não? As pessoas não costumam conhecer tanto o clube quanto o cassino, o que é uma pena. Nossos clientes bem ficariam satisfeitos em pagar não apenas pela chance de perder dinheiro, mas também por um pouco de prazer. Então, — Continuou, muito pausado e claro em sua explicação. — Elas vieram aqui essa noite, mas não quero que se sintam sozinhas. Leve-as para perto da banda, querida. Dance.

— Senhor Emerald…

Ele piscou devagar, o rosto duro. Qualquer resquício de afabilidade era calculado.

— Seja uma boa garota.

Engoliu seco, deu uma última tragada e deixou o cigarro no cinzeiro na mesa. Nem passar as pontas dos dedos sobre seu broche provocara uma única onda de calor em seu peito, uma leve sensação de proteção. Levantou-se e ofereceu um sorriso falso para aquelas mulheres, que retribuíram no mesmo tom e seguiram para mais perto da música. Não era difícil compreender que Declan Dane apenas queria que ela continuasse fazendo o que ele ordenava. Talvez fosse mais um de seus caprichos, talvez fosse um teste. No fundo, uma sombra lançava medo e honestidade em seu coração: o senhor Emerald lhe providenciava uma amostra do que era trabalhar no seu outro clube, seu empreendimento tão querido. Taghairm. Aquelas eram as lindas garotas de máscara e desprovidas de nome do senhor Emerald; aquelas poderiam muito bem ser suas futuras colegas.

Wanda bebeu mais do que devia enquanto seus pés moviam-se sozinhos perto da banda, interagindo com as moças e esquecendo de seus apelidos no instante seguinte que escutava-os. E ela dançou e dançou, tentou rir e queria apenas chorar.

Era só o que poderia fazer naquela noite.


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Notas finais do capítulo

* Sim, esses bolos de abacaxi eram algo apreciado na época kasjaks
* A parte de curiosidade/paixão foi inspirada em Grande Gatsby, já a declaração do Bucky claramente tem um quê de Mr. Darcy hihi