S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) escrita por scararmst


Capítulo 4
Agridoce


Notas iniciais do capítulo

Bom dia genteeee :D
Fresquinho saindo do forno. Divirtam-se!



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Os dedos de Theo estavam doloridos àquela altura, e considerando como ele tinha enrolado as faixas de treino nas mãos de forma apropriada, isso só poderia querer dizer que o garoto estava socando aquele saco de pancadas há tempo demais. Ainda assim, ele não tinha a menor vontade de parar. Não tinha começado aquela sessão com o puro desejo de aumentar suas habilidades, mas sim a fim de controlar os pensamentos em sua cabeça. Até agora, não estava dando muito certo.

Havia coisas demais em sua cabeça, muitos sentimentos para processar. Já fazia seis meses. Theo tinha ouvido falar que o tempo era remédio para qualquer coisa, mas começava a duvidar disso, ou ao menos a duvidar da dose necessária ser saudável ou prática. Seis meses era tempo demais. A raiva devia ter diminuído, a confusão, ou o luto, o que viesse primeiro. Mas ainda se sentia uma bagunça absoluta.

Não tinha memórias de sua mãe. Era apenas um bebê quando seu pai a tinha assassinado covardemente, com apenas  um ano de idade. Não poderia ter feito nada, é claro que não, mas  o fato não o impedia de sentir uma mistura de culpa e asco lhe subir a garganta.

Como teria sido sua mãe? Não sabia que habilidades ela tinha, ou qual era seu gene mutante. Ao chegar na S.H.I.E.L.D., chegou a pedir uma análise genética, só para se certificar se tinha herdado o gene-X da mãe, e descobriu que não. Meses atrás, esse seria um grande alívio em sua vida. Hoje, a descoberta o tinha causado ainda mais raiva. Queria alguma coisa, qualquer coisa para se lembrar dela. Alguma coisa para imaginar como ela teria sido, como os dois poderiam ter vivido juntos numa casinha pequena no interior de Glasgow, mas não havia nada. O destino tinha sido cruel o suficiente para dar a ele o que tinha desejado por toda sua vida: um DNA perfeitamente humano.

Ele não sabia dizer como era possível sentir tanta saudade e tristeza por alguém a quem sequer tinha conhecido, mas importava a razão? O sentimento estava ali, empilhando-se em cima de tantos outros e aumentando o que mais ocupava o coração de Theo agora: raiva.

Tinha admirado seu pai. Sempre o temeu, em algum nível; o homem era muito rígido e cobrava muito dele. “Pare de chorar, isso é coisa de menina”, “O que está fazendo na cozinha? Está virando gay?”, “Segure essa arma direito, até parece que está com medo de atirar.” E era dali para pior. Ainda não conseguia chorar. Suas mãos ainda tremiam um pouco sempre que pegava o celular para perguntar a Damon como ele estava, e embora hoje soubesse ser efeito de uma criação preconceituosa e absurda por parte de seu pai, a racionalização não era o suficiente para sufocar os sentimentos e reações cravados em seu subconsciente. Fazia seis meses desde a morte do pai, desde que tinha deixado o… O… amante para trás, desde que sua vida tinha virado de ponta cabeça, e até agora não tinha conseguido chorar.

Talvez estivesse estragado para sempre. Talvez não fosse possível se recuperar daquele tipo de criação conturbada e seria para sempre um produto de todas as coisas erradas que seu pai arraigou nele. O mero pensamento fazia o sangue de Theo ferver ainda mais, e uma onda de fúria se alojou em seu peito. De que adiantava ficar com tanta raiva de um homem morto? Ter raiva não mudaria quem ele era. Não mudaria o que tinha sido tirado de si, ou os erros cometidos em nome do pai. Tudo era permanente agora, era parte de seu passado e estaria consigo pelo resto da vida. Talvez a fúria também.

Ele deu um último soco violento no saco de pancadas e se afastou, dando alguns passos para trás no tatame. Tendo a pele muito branca, ficava vermelho com facilidade depois de muito esforço, e meio olhar para um dos espelhos da sala de treino o mostrou o quanto se assemelhava a um tomate. É claro, sua raiva também contribuía, deixando também os olhos verdes com um laivo vermelho perigoso correndo pelas íris. Os cabelos castanho-claros pareciam quase pretos agora, encharcados de suor e caindo um pouco sobre a testa. Theo passou a mão pelos fios, jogando-os para trás, e pegou a garrafa de água em cima de um banco próximo para beber.

Precisava de um banho, mas antes, precisava socar mais. Ainda se sentia furioso. Eventualmente a raiva diminuiria; ele tendia a ficar anestesiado de cansaço depois de treinar demais, o suficiente para parar de pensar por algum tempo. Só que por enquanto, ainda estava pensando. Precisava bater mais.

Ele abaixou os olhos para as próprias mãos, trêmulas pelo esforço, e sentiu os dedos arderem mesmo por baixo das faixas. Talvez estivesse ferindo as mãos. Talvez não se importasse com isso no momento. Theo pegou o celular em cima do banco para conferir as horas e ver quanto tempo mais poderia desferir socos, e no mesmo instante os dedos começaram a tremer de leve.

Quanto tempo fazia desde sua última mensagem para Damon? Um mês? Um mês e meio? Não eram conversas longas. Estavam tirando tempo um do outro, o que parecia uma boa ideia na época e agora parecia excelente, mas tendo deixado o amigo em um Instituto onde todo mundo teria um motivo para odiá-lo, sentia quase uma necessidade de ao mínimo perguntar como o outro estava. Não que adiantasse muito. Theo mandava “Como vão as coisas por aí?” e a resposta sempre era alguma variante de “Tudo bem”, mas não estava tudo bem. Theo conhecia Damon. Quando o outro estava bem, ele começava a falar e não parava mais.

Qual era o propósito de perguntar, então? Não devia estar fazendo diferença alguma, não é? Theo suspirou, deixando o celular sobre o banco e voltando para o saco de pancadas. Talvez devesse bater do outro lado, pensou, reparando que o mesmo ponto onde vinha batendo estava começando a ficar um pouco fundo. Ele deu a volta no saco, erguendo os punhos, e foi quando ouviu os passos de alguém entrando na sala de treino.

Era Lance Hunter, com uma bolsa de academia pendurada nos ombros, usando uma regata e uma calça de treino. O inglês encarou Theo de cima a baixo antes de andar devagar sala adentro, colocando a bolsa no canto.

— O que esse pobre saco de pancadas fez pra você? — Hunter perguntou, indo até o armário de apetrechos de treino.

— Estou bem.

A resposta de Theo saiu de seus lábios tão rápida e tão natural que demorou a ele alguns segundos para perceber que Hunter não tinha feito aquela pergunta. Vinha dizendo a si mesmo que estava bem, que só precisava de tempo, que o que sentia era normal e ia passar, e agora sua boca estava o traindo e reproduzindo o mantra automaticamente em voz alta quando não havia necessidade nenhuma em fazê-lo. Excelente.

— Claro que está — o mercenário retrucou com sarcasmo pesado na voz. — Todo mundo fica com raiva às vezes. Uma dica? Bater em algo que pode revidar pode ser um pouco mais libertador.

Hunter subiu no tatame e tirou o saco de pancadas da corrente onde estava pendurado. Theo viu que o homem agora usava luvas leves de treino. Será que queria treinar com Hunter agora? Estava nervoso demais, não queria errar tudo e passar vergonha na frente de um mercenário ex-militar. Mas, bem, Hunter de certo tinha pressentido a situação, não é? Tinha apontado  a raiva do garoto como algo perceptível de uma maneira bastante direta.

— Tudo bem — Theo respondeu, estalando o pescoço de um lado para o outro. — Pode funcionar.

Hunter ergueu as mãos na frente do rosto e Theo repetiu o gesto; o garoto foi o primeiro a dar um golpe, do qual Hunter desviou se abaixando, em seguida circulando um pouco para a esquerda. Theo espelhou o movimento para a direita, mantendo os braços em alerta.

Ok, talvez Hunter tivesse razão. Responder a alguém que se movia em combate com certeza  queimaria mais adrenalina.

— E então, quem foi que te irritou a esse ponto? — Hunter questionou, tentando um soco para a direita. Theo desviou, saltando para o lado e voltando a atacar.

— Você não quer saber. Minha cabeça está igual uma caixa de Pandora. Se eu abrir, vai sair uma merda atrás da outra.

— Não é essa aquela história em que sai tudo da caixa menos a esperança?

Haha. Que engraçadinho. Theo revirou os olhos ao ver o sorriso de canto no rosto de Hunter. Tudo bem, tinha sido uma coisa bem espertinha de se dizer, e não deixava de ser verdade. Não tinha conversado com ninguém sobre tudo o que tinha acontecido fazia tempo. Não achava que qualquer um conseguiria entender, e a pessoa que conseguiria de fato estava ausente há três meses.

Por algum motivo, naquele momento, Theo se deu conta do quão sozinho se sentia.

— A essa altura imaginei que já teria lido minha ficha.

Hunter  avançou com outro soco, e dessa vez  Theo não conseguiu desviar. Ele ergueu os braços para proteger o rosto do impacto e saltou para trás, afastando-se do mercenário.

— Fichas são chatas. Eu tenho cara de quem gosta de ler?

Theo riu. Cada uma dessas risadas, raras ultimamente, vinha sendo aproveitada pelo garoto como um elixir raro, um presente que se esvairia a qualquer segundo. Hunter era uma companhia muito divertida, com um tipo de humor babaca e ousado que conseguia fazer Theo se divertir. Não era qualquer um a deter um poder desses.

— Deveria dar uma olhada depois, se quer saber o tipo de buraco de onde eu saí. É tão confuso que acho que nem eu entendo ainda.

O garoto tentou mais um soco, do qual Hunter se desviou para o lado, respondendo de imediato com outro golpe. No susto, Theo levantou a mão, segurando a mão fechada de Hunter a meio caminho e sentindo algum osso de seu punho estalar.

— Você é rápido, garoto — Hunter elogiou, afastando-se dele e desfazendo a posição de treino. — Parabéns.

Estando metido em um exército inteiro de homens maiores e mais fortes que ele e lutando contra pessoas superpoderosas, velocidade tinha sido mesmo o foco de Theo por um bom tempo. Ao menos, estava compensando.

Theo se espreguiçou. A raiva tinha passado? Não. Mas parecia estar manejável, e isso teria de bastar. Hunter tinha razão; estava treinando há tempo demais. Acabaria distendendo um músculo ou se desidratando.

— Acho que vou tomar um banho — Theo comentou, deixando o tatame e pegando suas coisas no banco. — Podemos repetir isso outro dia. Você é bom.

— Você também, eu só sou mais experiente. Você tem potencial pra ir longe.

Ah, potencial. Com certeza. Theo decidiu não remoer de onde esse potencial vinha, e respondeu a fala com um riso baixo. Terminou de juntar suas coisas e foi para os chuveiros da base.

Banhos costumavam ser o tipo de lugar onde se parava para remoer pensamentos, considerar uma série de assuntos. As pessoas costumavam falar sobre longos períodos reflexivos no chuveiro, mas Theo tinha transformado o banho em um momento no qual não precisava pensar em absolutamente nada. Dolorido da cabeça aos pés e muito exausto, ele entrou debaixo da água quente, suspirando e apenas se concentrando na sensação da água relaxando e tirando a dor de seu corpo. Sem pensar em mais nada. Não queria pensar em nada.

Acabou demorando um pouco, e terminou o banho em piloto automático. Ele deixou o banheiro a passos lentos, letárgico pelo exercício físico, e ainda tentando manter a cabeça livre de qualquer pensamento indesejado. O paradoxo era que pensar no que não queria ativava os benditos pensamentos, e todo o esforço se tornava essencialmente inútil.

Theo desistiu. Lutar contra a própria cabeça era entrar em guerra consigo mesmo. Não ajudaria. Aquele, reconheceu, era o momento no qual sua raiva começava a dar lugar à tristeza e inconformidade, e não havia nada que pudesse fazer sobre isso.

Decidiu ir para a cozinha. Não sabia porquê, mas tinha descoberto recentemente que beber algumas garrafas de Irn-Bru poderia ajudá-lo a ficar menos baqueado. Theo tinha ficado surpreso de verdade ao descobrir o refrigerante escocês na geladeira; fazia anos que não ingeria alguma coisa de seu país. Constatou que tinha sido deixado por um antigo agente escocês da tecnologia e, bem, se ele não ia voltar para tomar…

Theo abriu a geladeira, pegando o que era uma das últimas garrafas na geladeira. Erasmus e Yo-Yo estavam por lá, ela comendo um omelete e ele jogando no video-game da sala. Theo se perguntou se deveria se juntar ao garoto. A vontade veio e se foi muito rápido, e ele acabou se contentando em sentar no banco do bar, sozinho, com sua garrafa de refrigerante.

O garoto tirou o celular, o deixando em cima da mesa e o encarando por um instante. Um mês e meio. Talvez só devesse perguntar se estava tudo bem. Só para ter certeza. Talvez dessa vez Damon fosse se abrir um pouco mais. Ele pegou o celular e começou a digitar uma mensagem. Perguntou-se se devia compor algo mais elaborado que “Como vão as coisas?”, mas assim como o histórico de mensagens entre os dois mostrava, de um jeito quase cômico de tão trágico, era só isso que sabia perguntar.

 

E aí? Como vão as coisas?”

 

Sempre surpreendia Theo o quão rápido Damon respondia suas mensagens. Não era uma questão de estar coincidentemente com o celular na mão; às vezes, Theo tinha a impressão de que o garoto ficava esperando ao lado do aparelho, torcendo para receber alguma coisa. Talvez estivesse se deixando levar pela imaginação, mas se não estivesse, não conseguia evitar a culpa por demorar tanto em falar com ele.

 

Indo. Tudo bem.”

 

Não estava nada bem. Theo rangeu os dentes, pegando o celular nas mãos e se perguntando quais seriam suas próximas palavras. “O que tem feito?” ou “Está se divertindo com os mutantes?” pareciam perguntas idiotas. O que andava fazendo? Treinando os poderes, é claro. E com certeza Damon não estava se divertindo nada com a raça a qual tinha tentado matar no ano anterior.

Ele deixou o celular de lado, desistindo de mandar qualquer outra mensagem e bebendo mais um gole de seu refrigerante. Talvez ajudaria se não se sentisse tão sozinho. Mas o que poderia fazer a respeito? Estava sozinho. Todo mundo tinha o deixado.

— Theodore?

O garoto se virou para a mesa da cozinha, vendo Yo-Yo olhar para ele.

— Pois não?

— Estão requisitando sua presença no hangar.

No hangar? Theo se levantou devagar, colocando o celular no bolso e pegando o refrigerante.

— Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu — Yo-Yo respondeu com um sorriso carinhoso no rosto. — Sua amiga acabou de voltar.

[...]

Niko passou três meses em viagem na Nigéria. Agora, chegando à base no quinjet pilotado por Piper, sentia uma sensação esquisita na boca do estômago, uma mistura de ansiedade, nervosismo e saudade. Não sabia nomear. Nunca tinha questionado se deveria voltar para a base da S.H.I.E.L.D. ou não;  é claro que devia, levando em conta como tinham lhe prometido ajuda para resolver seus problemas jurídicos. Mas essa certeza não tornava a situação mais confortável ou bem-vinda, principalmente depois de ter de deixar a Nigéria para trás.

Tudo bem. Nada era de graça. Mackenzie tinha prometido ajuda legal em troca de sua permanência, ainda que temporária, na equipe dele, ajudando a S.H.I.E.L.D. com seus projetos e pesquisas. Era o melhor cenário possível, não é? Eles tinham um laboratório impressionante e anos de arquivos guardados sobre as pesquisas dos cientistas que tinham estado ali antes dela. Para ser sincera, Niko mal via a hora de colocar a mão em todos os registros que Jemma Simmons tinha deixado na base, então, exatamente por conta de toda essa empolgação, não conseguia entender porque o sentimento negativo era tão forte. Não era como se pudesse voltar para casa, de qualquer forma. Não ainda. Ainda não tinha sua casa, suas coisas. Isso levaria mais tempo.

Alguns segundos antes da sequência de pouso começar, Niko enfim ouviu o telefone apitando. Ela o pegou um pouco às pressas, vendo se tratar de uma mensagem com uma sequência de emojis de celebração. Fazia poucos minutos que tinha mandado uma mensagem para Cassian, informando de seu retorno aos Estados Unidos. Ela queria se sentir tão feliz quanto ele com a sua volta, mas ao menos por ora, estava afogada com o resto da confusão que tinha sido viajar para o país natal da família de sua mãe. Sua família.

Quando você vem pra Nova York? Já faz seis meses, estou com saudade.”

 

Niko suspirou em meio a uma risada curta. Também estava com saudades dele, mas tinha muita certeza de que teria de cumprir, no mínimo, uma semana de aclimatização na base antes de poder sair para lidar com qualquer assunto pessoal lá fora.

 

Eu preciso resolver umas coisas antes, mas em breve. Prometo.”

 

Está cheia de mistério. Vai me dizer que arrumou outra ocupação esquisita?”

 

Niko deu de ombros. Ela e Cassian já tinham mentido demais um para o outro. Não queria fazer isso de novo, mas a mentira agora não era sua. Todo agente da S.H.I.E.L.D. era obrigado a manter sua ocupação secreta, a menos que acabasse se tornando uma figura pública, como a Viúva Negra. E mesmo ela, quando estava trabalhando para a S.H.I.E.L.D., o fazia sem alarde. Mas… Só para ele não seria problema, não é? O irmão de Mack sabia, ela tinha lido nas fichas...

 

Com certeza. Agora eu sou uma agente secreta.”

 

É claro que é!”

 

A mensagem veio seguida de muitos emojis de riso, um sinal claro de não estar sendo levada a sério. Niko pensou se deveria insistir um pouco, mas qualquer que fosse sua decisão nesse aspecto, teria de esperar. O avião tremeu um pouco ao concluir o pouso no chão, e a rampa do hangar começou a se abrir.

 

Meu avião está pousando. Nos falamos depois.”

 

Ele mandou alguns emojis de beijo e coraçõezinhos, recebendo dela um gif de abraço apertado em resposta, e Niko guardou o telefone no bolso.

— Precisa de ajuda? — Piper perguntou, aproximando-se da garota. 

Niko carregava apenas uma mala, muito grande e pesada, mas uma só, então decidiu recusar com um aceno da cabeça. Ela jogou a alça sobre o ombro e desceu da rampa, alongando o pescoço pelo caminho. Estava um pouco dolorida pela viagem. Não recusaria uma cama ou sofá bem confortável.

Enquanto caminhava para fora do veículo, ela correu os olhos pelo hangar, e não se surpreendeu ao se deparar com Theo, quase pulando no lugar de ansiedade. Tinha sentido falta dele, e sabia que ele dela também. Era curioso, pensou, como ele parecia mais propenso a se abrir sobre sentimentos quando estava falando com ela. Ou talvez Niko simplesmente percebesse algumas coisas com mais facilidade. Fosse o que fosse, ela tinha percebido há semanas que Theo estava entediado demais na base sem ela por perto. Entediado e triste. Portanto, sentia-se feliz por estar de volta.

— Aí está você! Achei que seu avião tinha se perdido no Triângulo das Bermudas!

— É bom te ver tam…

O resto da frase foi cortado por um abraço súbito e apertado de Theo, uma das coisas mais surpreendentes que já tinha acontecido na relação dos dois até agora. Theo nunca foi do tipo de deixar seu corpo mostrar as emoções daquele jeito. Ela não sabia dizer se era um progresso ou um acidente, mas não se importou. A garota correspondeu o abraçou, apertando o amigo e suspirando de leve com a pequena familiaridade que a presença dele significava. Ou ao menos quanta familiaridade poderia ter. Depois de relutar tanto internamente para deixar a Nigéria para trás, encontrar algum conforto em sua nova casa não era nada ruim.

— Olha só pra você — Theo brincou, afastando o abraço o suficiente para olhar a amiga de cima a baixo. — Corte de cabelo novo?

Sim, estava um bocado diferente de quando tinha visto Theo da última vez. Durante sua iniciação, um dos processos incluía raspar os cabelos, uma analogia para renovação, para cortar as coisas ruins e deixarem as novas crescerem, algo que ela bem estava precisando em sua vida agora. Niko usava um lenço cor-de-rosa na cabeça, num tom entre o rosa-choque e o rosa-bebê, que constrastava de forma muito bonita com a pele negra e os olhos pretos de Niko. Entrar em contato com sua cultura também tinha trazido de volta boa parte de sua vaidade, e naquele dia ela estava ostentando argolas douradas nas orelhas, alguns tantos colares de contas e uma pulseira de búzios no braço direito.

— Entre outras coisas. Era parte da minha iniciação.

— Aaaaaah…

Desde que Niko havia mencionado que sua viagem para a Nigéria era para se iniciar no Iorubá, ele não tinha comentado muita coisa nem feito muitas perguntas. A essa altura, ela o conhecia o suficiente para supor que o garoto não entendia nada do assunto e não queria acabar falando alguma coisa que fosse ofensiva. Ela gostaria que ele perguntasse às vezes, mas ainda existiam alguns assuntos os quais não sabiam o quão pessoais eram, os territórios onde poderiam pisar. Era muito estranho considerar alguém um amigo tão querido, como considerava Theo, e ainda não saber o quão íntimos estavam um do outro.

Um dia chegariam lá, tinha certeza. Só era necessário tempo.

— Aconteceu alguma coisa legal enquanto eu estive fora? — Ela perguntou, tentando colocar o assunto em um território familiar e comum aos dois: a situação atual da S.H.I.E.L.D..

Como a resposta de Theo foi bufar e se espreguiçar um pouco, ela soube ter feito a pergunta certa. O garoto fazia isso quando estava com preguiça de algum tópico, e se ele estava com preguiça, tinha acontecido muita coisa.

— Ok, vamos lá. Vou tentar resumir. Nick Fury mandou a equipe investigar o contrabando de bombas, como imaginávamos que ia acontecer mais cedo ou mais tarde.

— Tem a ver com a gente? — Ela perguntou, apertando o botão do elevador quando os dois entraram na cabine.

Theo e Niko tinham conspirado em mensagens sobre o quanto a presença dos dois afetaria a decisão de conceder a eles a responsabilidade da investigação do terrígeno. Não que eles tivessem alguma informação estarrecedora para entregar a Mack; já tinham contado a ele tudo o que sabiam, mas sempre havia o risco do fator surpresa. Entrar em uma base e reconhecer um código, apreender um contrabandista e reconhecê-lo como ex-Purificador… Os dois eram um recurso, e estavam bem cientes disso. E, ao que parecia, seriam utilizados agora.

— Ele não comentou — Theo prosseguiu. — Ou é por nossa causa, ou é o histórico dessa equipe com terrígeno. Ou as duas coisas. Não perguntei.

É claro que não. Theo não era lá muito curioso, afinal, acostumado a obedecer as ordens sem questionar. Era bom mesmo ela ter voltado. Niko era mais curiosa, e nunca mais trabalharia sem saber direitinho para quem e por quê.

— E nós vamos começar a investigar, então?

— Sim. Mack está terminando de ajeitar a equipe. Com você chegando, estamos quase lá.

Quase? Niko franziu a testa enquanto os dois saíram do elevador e começaram a caminhar em direção ao bunker dela. “Quase lá” queria dizer que algum processo tinha começado. Se tinha começado, haveria mudanças. Adições.

— Quem chegou?

— Aqueles amigos que ele tinha mencionado, o mercenário Lance Hunter e a bióloga, Harpia. E então, acredite você ou não, o Fury decidiu plantar o Gavião-Arqueiro aqui na base pra ficar de olho. Todo mundo ficou tenso e eu acabei descobrindo que é porque ela já foi casada... com os dois.

Oh, uau. Niko não sabia se devia ficar mais surpresa por descobrir que tinha um Vingador na base com eles, ou por saber que Bobbi tinha dois ex-maridos e estavam os dois na base com ela  ao mesmo tempo. Potencial para problemas? Talvez. E levando em conta como Mack tinha comentado que Bobbi seria a colega de laboratório dela, não sabia se queria esse drama todo ao seu redor.

Agora não tinha jeito, era tarde. Estava acontecendo. Teria de aprender a conviver.

— Você disse que o Fury plantou o Gavião-Arqueiro aqui? Problemas de confiança?

— Fury não confia nem na própria sombra — Theo brincou, parando com Niko em frente ao bunker dela.

Verídico. Niko abriu a porta, deixando a mala sobre a mesa, e cogitou deitar um pouco, mas uma vez  que tinha ouvido sobre novas chegadas na base, seria mentira dizer que não estava curiosa. Talvez pudessem dar uma volta por aí para ver o que ia encontrar.

— Algo mais? — Ela questionou, fechando a porta e seguindo Theo para o corredor. Percebeu que ele ia até a cozinha.

— Sim. Nós temos um inumano.

— Oh…!

— Pois é, alguém quis ficar aqui, acredita? Veio por conta própria, pediu ajuda pra lidar com os próprios poderes. Tem a nossa idade e uma mutação de peixe. Acho que você vai se divertir um pouco. Bem, além dele, Mack disse que tem mais dois agentes e um inumano pra chegar depois que processarem uma papelada, então devemos ouvir falar deles em breve.

Quando alcançaram a sala-cozinha, Niko viu muito rápido de quem Theo estava falando sobre a mutação de peixe. O garoto sentado no sofá jogando video-game quase chegava a ser uma visão desconfortável, de tão curiosa sua aparência; um meio de caminho entre humano e tubarão.

Niko piscou os olhos e balançou a cabeça algumas vezes, caminhando com o amigo para dentro da sala, em direção ao sofá onde o menino estava muito focado em uma partida de algum jogo de tiro.

— Erasmus? Essa aqui é minha amiga, Iniko, de quem falei com você.

Erasmus, esse era o nome dele, então. O garoto pausou o jogo, levantando o rosto para ela e abrindo um sorriso incômodo, para dizer o mínimo. Ele tinha muitos dentes em formatos triangulares, e o efeito final parecia umas três serras enfileiradas. Tudo isso junto com a pele cinzenta e os olhos de pupilas grandes demais.

— Olá! Theo não parava de falar, eu estava doido pra te conhecer — disse ele, com um tom tão pacífico e doce na voz que seria impossível para Niko não abaixar a guarda de imediato.

Ele estendeu a mão e Niko a apertou, sentindo uma textura estranha e lixosa contra a palma de sua mão.

— Provavelmente estava exagerando — ela brincou. — Mas obrigada.

— É você quem vai ajudar a ver as coisas do meu DNA? Eu agradeço a ajuda, tenho ficado bem preocupado com algumas coisas…

E como Erasmus era um tagarela nato e começou a falar sem parar, Niko se sentou ao lado dele, começando a ouvir as queixas e observações do garoto. Ele devia ter chegado na base há pouco tempo,  porque Theo não tinha mencionado nada, e mesmo assim, já parecia muito bem acomodado no lugar.

Era uma presença leve, agradável. Niko não sabia definir. Ali estava o inumano, queixando-se de coisas completamente assustadoras como a possibilidade de não saber se perderia a capacidade de respirar em terra firme algum dia, e, no entanto, fazia isso com um ar despreocupado, dando mais atenção aos tiros na tela do que às próprias questões.

Incrível. Ele conseguia se encher de problemas, ter consciência deles e ainda manter um espírito calmo e otimista acima disso tudo. Ela trocou um olhar com Theo por cima dos ombros de Eras, e naquele breve olhar, um entendimento inteiro aconteceu entre os dois. Sim, Erasmus era uma presença muito refrescante. Fazia até os problemas dela parecerem menores. Ao menos, pensou, não corria o risco de acordar e descobrir que tinha quase comido a própria língua de noite por ter dentes afiados demais.

— Você disse que é do Havaí? — Niko perguntou, horas mais tarde. 

Tinham parado um pouco com o video-game, e estavam comendo salgadinhos enquanto continuavam a se conhecer melhor.

— Ah, é. Cresci lá. Mas sou órfão.

— Olha só pra nós três — Theo brincou, bebendo mais uma garrafa do refrigerante escocês dele. — Três órfãos entram em um bar…

O garoto anunciou a última frase como se fosse o começo de uma piada ruim. Erasmus sorriu, mas com certeza por educação, Niko notou. Cada um lidava com os problemas de um jeito, cada um tinha sua maneira de lidar com o luto. Era de se esperar que Theo fosse fazer piadinhas infames.

Ela… Precisava de um ar.

— Passei horas dentro do avião, estou precisando de um pouco de ar puro — a garota comentou, levantando-se. — Nos falamos depois?

— Ah, claro! Eu tenho que dar um pulo no laboratório de qualquer forma, Bobbi tem mais alguns testes pra fazer. Até mais gente!

Erasmus pegou um pacote de salgadinhos da mesa e saiu da cozinha, quase saltitando pelo caminho. Quando Niko se levantou para ir até o elevador, ela viu Theo a olhando com um olhar inquisidor, perguntando com os olhos se ela queria ir sozinha ou se o queria com ela.

Niko decidiu que não queria ficar completamente sozinha. Ela o chamou com um gesto da cabeça e, em silêncio, os dois caminharam até o elevador.

A dupla saiu no térreo, deixando o Farol pela porta de entrada e dando de cara com o fim da montanha e o Lago Ontário à frente deles. Ela fechou os olhos, respirando fundo e sentindo o ar frio entrar pelo seu nariz, agindo quase como um choque de realidade a acordando para onde estava agora.

Era isto. Hora de seguir em frente.

— Até que é quentinho dentro da base, em comparação — Theo disse, parando ao lado dela em sua regata, sem parecer se incomodar com o ar frio.

— Aqui fora está congelando. Você não sente frio, não?

— Eu sou escocês — ele brincou com um sorriso no rosto.

Niko sorriu também, colocando as mãos nos bolsos e encarando a paisagem por um instante. A luz do Sol, que começava a se pôr, incidia na superfície do lago em um tom muito bonito de alaranjado.

— Na Nigéria é bem mais quente — ela comentou, apertando os braços um pouco mais para perto de seu corpo, procurando aquecê-los. — Quando eu cheguei lá… Foi como levar um soco na boca do estômago. Eu sabia que sentia falta. Fazia tanto tempo… Tantos anos… Você aprende a lidar com a ausência, pensa que superou a falta, e então chega lá e tudo volta de uma vez só. Eu não sabia na maior parte do tempo se queria rir ou chorar.

Theo abaixou a cabeça, e Niko percebeu que ele estava pensando no que dizer. Levaram alguns minutos, nos quais só o som do vento suave ocupou o espaço entre os dois, até ele falar o que estava pensando.

— Como foi sua iniciação?

Como tinha sido? Niko abriu um sorriso e sentiu os olhos lacrimejarem. Como uma pergunta tão simples podia ser tão difícil de ser respondida?

— Eu esperei esse momento a vida inteira. Vi várias outras garotas passando pela iniciação delas quando atingiram a idade correta, ouvi as histórias que minha avó e meus pais contavam… Eu sonhei e esperei por anos, e sempre que pensava nisso, sempre que imaginava esse dia, minha família estava lá. E então o dia chegou e eu estava sozinha.

A voz dela falhou nas últimas palavras, e Niko compreendeu que estava prestes a chorar, de novo. Ela balançou a cabeça, tentando impedir as lágrimas, mas não conseguiu. Era um daqueles momentos nos quais ia simplesmente ter que deixar sair.

— Você perguntou como foi — ela continuou. — Foi maravilhoso. E foi dolorido. Como uma coisa que eu sempre quis tanto pôde me fazer tão feliz e tão triste ao mesmo tempo?

Não sabia se Theo entendia o sentimento que tentava descrever. Nem mesmo ela achava que tinha conseguido descrever. Mas a resposta dele foi puxá-la para o segundo abraço do dia, esse mais carinhoso e reconfortante, e ela encostou o rosto no ombro dele, desistindo de se impedir de chorar.


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Notas finais do capítulo

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Considere favoritar essa fic e Homem de Gelo também. Vai deixar meu coração bem quentinho ♥

Além dessa, tenho vagas também para uma interativa original sobre revoltas civis. Acesse aqui:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-rosa-do-tempo--interativa-19350882/

Considere também dar uma olhada nas minhas outras histórias? :D Eu tenho coisas para vários gostos ^^

Leia a duologia Hunters! Comece aqui: https://fanfiction.com.br/historia/771022/Hunters_Hunters_1/

Leia minha original de fantasia urbana, Carmim! https://fanfiction.com.br/historia/787245/Carmim/

Leia minha fanfic de Harry Potter! https://fanfiction.com.br/historia/781763/Marcas_de_Guerra_Historias_de_Bruxos_1/



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