S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) escrita por scararmst


Capítulo 3
Maresia


Notas iniciais do capítulo

Olá gente! Chegando com o capítulo dessa semana.
Espero que se divirtam!
Beijos :*



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As ruas de Nova York não pareciam ter mudado em nada. Alexis tinha vivido na cidade por toda sua vida, então esse era o tipo de coisa a qual certamente ele saberia. Estava tudo caótico e movimentado como costumava ser, o mesmo ar com cheiro de cidade grande, fumaça dos carros para todos os lados e mais buzinas que o aconselhado para a saúde sonora dos habitantes. Tudo parecia o mesmo… Mas tinha mudado, sim. Ao menos, para ele.

Naquela barulhenta tarde de quinta-feira, o garoto caminhava de sua escola para a academia de artes marciais de seu mestre, em Chinatown. E nesse caminho tortuoso e constrangedor, ele se viu obrigado a abaixar a cabeça e fingir não reparar em todos os olhares que atraía ao passar pela rua. Alexis era um mutante, e embora tivesse tido a sorte genética de não nascer com cara de tartaruga, coberto de pelos ou semelhante a um demônio azul, nos dias atuais ele era muito fácil de se apontar, sendo uma das únicas pessoas a andar na rua com uma máscara respiratória no rosto.

As primeiras semanas depois dos ataques iniciais tinham sido terríveis. A maioria dos mutantes tinha imaginado que a apreensão do líder dos Purificadores e das bombas seria o suficiente para conter a ameaça, mas imagine só, o fabricante, fosse ele quem fosse, ainda estava as distribuindo por aí. E depois de mais dois atentados surpresa fora do controle ou da previsão dos mutantes, eles foram obrigados a aceitar o risco que sair de casa agora implicava. Sua mãe não o tinha deixado sair para absolutamente nada por dois meses inteiros, até autorizar escola e a academia do Han — depois de muito choro de Alexis — graças à argumentação do garoto de poder manter nuvens tóxicas longe de si com uma boa rajada de vento. Ainda assim, a máscara era mandatória, e Alexis não seria burro ou metido a ponto de achar que não precisava dela.

Era mesmo uma tragédia e tanto para alguém quem buscava esquecer o ocorrido seis meses atrás. Toda a situação com os Carrascos tinha sido uma tragédia de proporções catastróficas, e depois do ataque ao acampamento, tudo o que o garoto queria era esquecer os eventos e voltar a ter uma vida normal. Nada disso era possível quando o terrígeno ainda era uma ameaça constante, trazendo à tona suas lembranças de como tudo tinha começado, o tempo todo. E, claro, também tinha Héctor.

Alexis sequer se lembrava de ter dado seu número de telefone para o garoto, mas em algum momento devia tê-lo feito, pois algumas semanas após o atentado, começou a receber mensagens dele. No começo, Alexis não sabia de quem as tais mensagens eram; não passava de um número desconhecido o perguntando se estava bem. Porém, não demorou muito para que ele se irritasse o bastante para parar de ignorar as mensagens e perguntar quem era o remetente. E voilá, Héctor não parecia tão interessado quanto Alexis em deixar tudo para trás.

Tinha visto o garoto aceitar o chamado da Irmandade e, mesmo os motivos dele não sendo da sua conta, seria mentira dizer que não tinha considerado nem por um segundo o que tanto faziam nesse time de rebeldes mutantes deles. E talvez Alexis cheirasse a curiosidade, pois entre as trocas — confusas e um pouco rudes — de mensagens entre os dois, Héctor fez questão de frisar que a oferta ainda estava de pé.

Certo. Juntaria-se à Irmandade de Mutantes quando o inferno congelasse.

Ele parou à porta do dojô, tirando a máscara e a enfiando no bolso. De pele dourada, cabelos pretos e olhos escuros e estreitos, Alexis não tinha tanto da herança cherokee de sua família no sangue, mas de vez em quando ainda era reconhecido como tal por alguém. Seu mestre tinha sido o primeiro em muito tempo a reconhecer os traços do aluno, e hoje, o conhecendo como conhecia, não ficava surpreso. Han era muito atencioso e perspicaz, provável parte do que o fazia um mentor tão bom.

Bom em habilidade e bom de coração também. Enquanto tudo o que Alexis queria era esquecer os acontecimentos do último ano de sua vida, Han fazia questão de trazer tudo para o mais perto possível. Na porta do dojô, estava o maldito cartaz pendurado pelo mestre com os dizeres: “Oferecemos ajuda para inumanos necessitando de instrução e controle”.

É claro que oferecia. Havia sido esse um dos motivos pelos quais Alexis tinha se juntado ao dojô em primeiro lugar, para aprender mais sobre as próprias habilidades. Han tinha um pendor para trabalhar com super-humanos de qualquer tipo, e tinha sido muita ingenuidade de Alexis pensar que isso não se estenderia à crise atual.

E agora, ali estava o garoto. Fugindo de seu passado para uma porta que o convidava para dentro.

Alexis suspirou, abrindo-a devagar. Naquele horário, o dojô costumava estar mais vazio, razão pela qual Alexis escolhera a faixa de horas para fazer seus treinos. Hoje, ele encontrou apenas duas pessoas no local: Han e Erasmus, sentados no tatame um de frente para o outro. O nome era uma das pouquíssimas coisas que Alexis sabia sobre o visitante. Tinha chegado no dojô há algumas boas semanas, saído direto de um filme de terror sobre tubarões. 

A terrigênese não tinha sido nada gentil com Erasmus. Pele acinzentada com textura de lixa, dentes demais (e afiados demais), olhos com a pupila assustadoramente grande, guelras… Alexis tinha conhecido uma boa quantidade de mutantes esquisitos nas confusões dos Purificadores, mas meu Deus, Erasmus dava um jeito de marcar quase todas as caixinhas na lista de bizarrices desenvolvidas por mutação. Logo ficou claro como ele não possuía nenhum superpoder, e tinha sido azarado o suficiente para só portar a cara esquisita sem nenhum benefício acompanhando a mudança.

E Alexis achando que ele era azarado…

— Tá aí ainda, Sharkboy? — Perguntou, deixando os sapatos na entrada e subindo no tatame. 

De todas as pessoas que vinham entrando aos bandos naquele dojô, Erasmus era facilmente o menos detestável. Talvez fosse até gostável, imagine só, ou ao menos não era das piores companhias. Alexis ficava chocado com a capacidade do menino em manter a alegria e o otimismo na situação na qual se encontrava, e chegava a ser até um entretenimento pessoal para Alexis assistir às reações de Erasmus.

— Estou — o garoto respondeu, espreguiçando-se com um sorriso largo no rosto. Muito, muito largo. E com todos aqueles dentinhos bizarros de tubarão à mostra.

— Você devia levar em consideração o que eu falei — Han cortou, levantando-se do tatame com as mãos para trás das costas. — Eu só posso te ajudar até certo ponto. Sua mudança é muito complexa, Erasmus. O seu corpo inteiro mudou e não sabemos o que aconteceu por dentro. Você precisa de ajuda especializada.

E lá ia de novo o papo da “ajuda especializada”. Já fazia umas duas semanas desde que Han começou a aconselhar o garoto a procurar a S.H.I.E.L.D.. Eles tinham espalhado por aí um número de telefone para receber inumanos encontrados, prometendo ajuda e todo o resto. Lembrava Alexis do mesmo papo dos X-Men com o Instituto, mas um pouco menos infantilizado. Desde então, Alexis vinha se perguntando quanto tempo demoraria para Erasmus aceitar o conselho. Han sempre convencia as pessoas, mais cedo ou mais tarde, e no caso de Erasmus, estava começando a parecer que seria mais cedo, mesmo.

— Eu sei, mestre Han… — Erasmus murmurou, levantando-se também. — Mas eu não quero responder metade das perguntas que eles vão me fazer. E daí, quando eu não quiser responder, eles vão descobrir o que quiserem de qualquer forma.

— Tá falando da sua casa? — Alexis perguntou, enfiando-se no assunto.

Não que fosse da conta dele. Não era, e nem sabia de onde vinha qualquer mínimo interesse nisso. Mas tinha de confessar uma coisa: quanto mais Erasmus falava sobre a tal Attilan, mais curioso Alexis ficava. Uma cidade flutuando em cima do Himalaia onde todo mundo era inumano? Fala sério… Cidades não flutuavam. Flutuavam?

A casa de Erasmus era um dos, se não fosse o único assunto, capaz de entristecer o garoto na mesma hora. O sorriso e o olhar otimista desapareceram do rosto de peixe dele, e por mais que o sorriso fosse bizarro, de alguma forma Erasmus ficava mais bizarro ainda quando não estava feliz. Alexis não era do tipo empático, não costumava se deixar afetar pelas tristezas e mazelas dos outros, mas Erasmus sério era como um tubarão sério, e um tubarão sério era assustador.

Han pegou um cartão na mesa de escritório do dojô, deixando-o na mão de Erasmus.

— Ligue pra eles. Você precisa de um tipo de ajuda que eu não posso lhe dar. Você é sempre bem-vindo aqui, mas eu estou preocupado, Erasmus.

A porta do dojô se abriu e uma garota entrou, uma das poucas alunas humanas que tinham sobrado no lugar. Han deixou os dois para ir atendê-la, e o ar se encheu de um clima um pouco constrangedor. Alexis detestava esse tipo de clima. Ele observou Erasmus encarando o cartão, pensativo, e se perguntou de repente se conseguiria convencê-lo a ir. Um inumano a menos no dojô, não é? Um passo mais perto de fazer as coisas voltarem ao normal.

— Você tem praticado golpes? — Alexis perguntou, pegando as faixas de combate da mesa mais próxima e começando a enrolá-las nas mãos. — Ou só está fazendo meditação mesmo?

Erasmus sorriu de novo, para desespero do mutante, e guardou o cartão no bolso.

— Sei uma coisa ou outra. Está precisando de um parceiro de treino?

— Poderia usar um.

Não precisou pedir duas vezes. Era uma coisa sobre Erasmus, ele era solícito demais. Aquele excesso de felicidade e boa vontade chegava a ser irritante de vez em quando. Ninguém conseguia ser tão otimista assim o tempo todo, e Alexis tinha certeza, isso era uma fachada para esconder alguma coisa. Alguma coisa sobre a casa dele, uma vez que ele já tinha falado muito do lugar, com uma boa dose de paixão e saudade, mas nunca dos motivos que o fizeram sair de lá. Tinha algum segredo envolvido. À princípio, Alexis não queria saber o quê,  mas, quem sabe, não seria esse o caminho para convencer o garoto a ir embora?

Erasmus se colocou em posição de boxeador, e Alexis se perguntou onde ele teria aprendido boxe. Talvez em casa. Talvez fosse um bom ponto de partida  para o assunto.

— Sabe boxe? — Perguntou, colocando-se na postura inicial do Bāguàzhǎng.

— Meu pai me ensinou um pouco. Disse que gente da nossa casta tinha que sempre saber se defender.

Casta. Sim, tinha ouvido algo sobre a palavra antes. Talvez devesse começar a desfiar o novelo por ali. Talvez fosse chegar em algum lugar. Erasmus começou a dar alguns golpes e Alexis foi se desviando, tentando um ou outro golpe ele também.

— Casta. Você comentou isso uma vez — Alexis mencionou, inclinando para a esquerda para escapar de um soco, girando para trás de Erasmus e o dando um golpe leve nas costas. — Vigie suas costas, não deixe eu chegar atrás de você.

Erasmus girou, ainda um pouco atordoado, mas ficando de frente para Alexis no movimento. O sorriso no rosto dele era um pouco nostálgico e um pouco divertido agora. Ainda bizarro.

— É… Attilan é um lugar complicado. Você é mais importante se sua mutação for mais legal.

— Virar tubarão não é legal pra eles? — Alexis perguntou, direcionando um golpe com o pé na direção do peito de Erasmus. O inumano saltou para o lado, dando um soco na direção do rosto do mutante, mas Alexis desviou abaixando a cabeça e girando para o lado.

Erasmus deu de ombros. Alexis era péssimo para ler emoções a menos que elas estivessem muito esfregadas em sua cara, então não sabia dizer se o assunto estava incomodando o outro ou não. Ele continuava respondendo, ao menos, então talvez estivesse tudo bem… Por agora.

— O problema não é o tubarão. Algum tatara-tatara-tataravô meu passou pela terrigênese, ganhou hidrocinese e explodiu os aquedutos da cidade. Inundou tudo, morreram várias pessoas… Muita gente ficou ferida, perdeu a casa… Levou tempo para Attilan se reconstruir. E aí, como o gene da mutação dele ficou dormente na minha família, todos nós fomos considerados de risco. Não podemos passar pela terrigênese.

Talvez Alexis tivesse sim um pingo de empatia no sangue, pois aquela parecia uma história muito trágica, e algum tipo de desconforto se contorceu no estômago do mutante. Ele balançou a cabeça rapidamente, testando outro golpe com a mão, agora na direção do peito de Erasmus. Acertou. Havia algo naquela história que ele podia usar. Se existia uma chance da terrigênese de Erasmus ser de risco, então ele deveria receber ajuda especializada, não é?

— Isso quer dizer que você pode acabar fazendo o encanamento do dojô explodir, ou algo assim? — Alexis perguntou, desviando de dois socos em sequência.

— Ah, sem chance — o garoto brincou, rindo baixinho. — Faz gerações que isso sumiu na minha família, não acontece mais.

— Mas os cientistas da sua cidade lá não disseram que vocês são de risco?

Erasmus deu um riso diferente agora. Desconforto? Descrença? Alexis não sabia dizer.

— Bem… Sim, mas…

— Então, sei lá. Aconteceu de acidente com você, não é? — Alexis desfez a postura, parando de lutar. Queria focar na conversa agora, precisava escolher as palavras com muito cuidado. — E você tinha feito análise antes pra saber se podia passar pelo tal do processo?

— Não… Ninguém na minha família passa mais, nós fomos vetados.

— E aí você tem certeza, certeza absoluta, que não vai acontecer nada de errado? Erasmus, isso é muito preocupante! Você precisa ter certeza! Imagine só, se você sei lá, descobre que resseca se ficar muito tempo fora d’água!

Uma expressão de susto e preocupação passou pelo rosto de Erasmus, e Alexis soube naquele momento que tinha conseguido. O mutante suspirou, passando um braço amigável pelas costas do inumano.

— Você acha mesmo que eu posso… ressecar?

E, como a cereja do bolo, Alexis tinha uma cartada final.

— Olha, eu não sei o quanto vocês inumanos são iguais ou diferentes de nós, mutantes. Mas eu conheci um mutante uma vez com mutação de cobra, e ele estava ficando surdo. E isso é coisa de cobra, sabe, então… O que garante que não pode rolar umas coisa de peixe com você? Isso pode ser perigoso.

Erasmus olhou confuso e um pouco chocado para Alexis. Ele se desviou do braço do mutante, dando uns dois passos para trás, e o mutante podia jurar ter visto os dedos do garoto tremerem por um instante.

Oh. Teria pegado muito pesado?

Nah, claro que não. Era Erasmus quem estava reagindo de maneira exagerada. Tudo bem que ele parecia assustado, e com os olhos lacrimejantes, e até um pouco trêmulo, mas ia passar, não é? E depois, não deixava de ser verdade. Era bom mesmo ele procurar ajuda, porque algo podia dar errado de verdade. Era um conselho honesto, independente da intenção.

— Erasmus… — Alexis chamou, estendendo a mão para tocar o ombro do inumano.

Ele se desvencilhou, recuando mais alguns passos.

— Eu… Eu acho que vou embora.

— Tem certeza? Olha, Han está ali…

— Tenho. Tenho certeza sim. Eu… Está na minha hora, viu? Obrigado. Até mais.

Erasmus deu as costas, quase correndo, e saiu do dojô com um aceno apressado para Han. Alexis teve a forte impressão de que o garoto não voltaria tão cedo, e estava tudo bem. Era melhor assim. Só queria sua vida de volta ao normal, só isso.

Então por que se sentia como a pior pessoa do mundo?

[...]

Erasmus não tinha lugar para morar em Nova York. Desde sua fuga de Attilan, tinha se tornado algo muito próximo de um nômade, dormindo pelos cantos, pegando asilo no dojô de Han e comendo com o resto de dinheiro que tinha no bolso. Erasmus tinha total consciência de não poder continuar assim por muito tempo, mas até poucas horas atrás vinha considerando pedir a Han um emprego como assistente em troca de comida e um lugar para dormir. Agora…

Já era noite. Erasmus estava sentado sobre algumas rochas de uma das praias de Manhattan, admirando a paisagem como podia, uma vez que desde sua terrigênese não enxergava mais cores, além de ter ficado um pouco míope. O mar parecia muito furioso àquela hora da noite, mas isso nunca incomodava o inumano; ele gostava do cheiro de maresia, do som das ondas e de ver a água batendo nas pedras e voltando para trás. Fazia alguns bons dias desde que encontrara um canto escondido naquela praia para dormir em uma barraca, mas mesmo isso, sabia, não podia continuar fazendo para sempre.

Agora... Não podia deixar de pensar… E se Alexis tivesse razão? E se algo esquisito estivesse acontecendo em seu corpo sem ele saber? E se acabasse adoecendo por algum motivo esquisito, uma doença de peixe ou qualquer outra coisa parecida?

Aquela foi mais uma das noites nas quais Erasmus se arrependeu de ter deixado Attilan. Tudo tinha parecido uma ótima ideia no começo. “Vá para fora”, seu pai disse. “Há terrígeno lá. Consiga sua mutação. Restaure a honra pra nossa família.”

Bela honra. Tinha mesmo conseguido a mutação, mas para quê? Os sonhos de retornar como um senhor dos mares, reconquistando o respeito de sua família, e mostrando a todos que os Samudri não eram piada, tinham se reduzido à… piada, mesmo. A única conquista de sua terrigênese tinha sido uma aparência feia e prováveis problemas de saúde. Não ia reconquistar nenhuma honra com isso, e agora também não podia voltar para casa, tendo se tornado um criminoso depois de fugir de Attilan para conseguir uma terrigênese clandestina.

Ele abaixou a cabeça, apoiando-a sobre as mãos e tentando se impedir de chorar. Chorar não resolveria nada, precisava de um plano. De ideias, de uma solução. De uma ajuda. Qualquer uma.

Erasmus enfiou a mão no bolso, tirando dele o cartão agora um pouco úmido e amassado da S.H.I.E.L.D.. Nele havia um número de celular para ligar, acompanhado de um nome: Sub-diretor Alphonso Mackenzie.

Não era de hoje que vinha considerando fazer a chamada. Não queria ter de falar de sua casa para S.H.I.E.L.D. por não saber se poderiam tentar interferir nas coisas e causar ainda mais problemas, mas a cada dia a ideia de chamá-los e desviar de qualquer pergunta sobre seu passado parecia mais atraente. Tudo bem, era a S.H.I.E.L.D., e eles sempre descobriam tudo, mas talvez até lá, ele já tivesse descoberto o que precisava e pudesse ir embora sem dizer nada a ninguém.

Erasmus enfiou a mão no outro bolso, tirando uma nota de dois dólares amassada e alguns centavos. E era isso, não tinha mais nada. Certo, suas escolhas estavam terminando. Se ia fazer isso mesmo, era melhor fazer logo, antes de mudar de ideia. O garoto pegou o celular e se perguntou como poderia fazer com que a mensagem fosse o mais sucinta possível. No fim, acabou optando por “Passei pela terrigênese há algumas semanas. Preciso de ajuda.”

Terminou com o endereço da praia onde se encontrava e esperou. A resposta foi quase instantânea, e igualmente sucinta:

Boa noite. Podemos enviar um avião para essa localização dentro de meia hora. Por favor, aguarde no local.”

E pronto, isso foi tudo o que levou para conseguir seu resgate. Erasmus desceu da pedra, juntando sua barraca e alguns poucos pertences em uma mochila de acampamento. Tinha saído de Attilan quase que com uma mão na frente e outra atrás, com pouco dinheiro — desvalorizado em relação ao dólar —, uma barraca e alguns objetos de uso pessoal. Não possuía quase nada para carregar.

O garoto colocou a mochila nas costas, se sentindo um pouco idiota por estar a carregando quando ainda faltava um tempo considerável para sua carona aparecer. Ele agarrou as correias da mochila, andando nervoso de um lado para o outro sobre a areia molhada e vendo a água do mar avançar e recuar, devagar. Quando tinha saído de Attilan, não demorou muito para descobrir o surf e se apaixonar pelo esporte. Depois da terrigênese, nunca mais tinha entrado na água, embora ainda carregasse a prancha consigo por aí. Sua vida tinha mudado muito desde então. Agora, ele temia o que poderia acontecer se entrasse no mar, se assemelhando tanto a uma criatura marinha. O que teria mudado? O que mais seria diferente em si?

Erasmus esperou por pouco mais de meia hora sentado na pedra até ver as luzes do avião se aproximando no céu. O quinjet sobrevoou o mar por alguns instantes até começar a pousar devagar sobre a areia. A rampa se abriu aos poucos, e o garoto caminhou desconfiado até a abertura para esperar.

Uma mulher saiu de lá. Ela o olhou por alguns segundos antes de abrir um sorriso muito maternal. Erasmus se sentiu um pouco desconfiado, ainda se perguntando, mesmo já de frente para o avião, se teria feito uma boa escolha.

— Olá — a mulher disse, com um sotaque forte de espanhol. — Eu sou a agente Elena Rodríguez, mas pode me chamar de Yo-yo.

— Sou Erasmus — ele disse, acenando um pouco sem jeito, ainda sem subir no avião.

A agente olhou em volta por um tempo, como se procurasse algo ou esperasse mais alguém.

— Onde estão seus pais, Erasmus?

Claro. Ele era menor de idade, é óbvio que ela perguntaria sobre seus responsáveis. E o que deveria dizer? Ele travou os dentes, o que no caso dele machucava um pouco, e olhou de rabo de olho para o mar. Talvez ainda desse tempo de fugir… Mas talvez pudesse inventar uma mentira boa o suficiente.

— Não tenho — respondeu, rápido e sem dar detalhes. Com sorte, a mulher teria pena o bastante para não perguntar por nada.

— Entendo… — ela murmurou, caminhando para o lado e o chamando com um dos braços. — Vem. Vamos te levar para a base e ver o que podemos fazer por você.

Entendia? Não tinha certeza. Erasmus não podia adivinhar o quanto ela tinha comprado a mentira, mas parecia ter por ora. E, sendo assim, ele poderia ao menos pensar em uma história mais elaborada durante a viagem para quando as perguntas ficassem mais sérias. Qual papel ele iria interpretar? Criança expulsa de casa? Não… Eles poderiam querer ir atrás de seus pais de qualquer forma. Devia dizer que era órfão, era melhor. Que cresceu na rua ajudado por um ou outro morador de rua qualquer, e pronto. Mas como explicaria as roupas bonitas e o celular muito moderno que levava no bolso?

Suspirou. Precisaria trabalhar nos detalhes, mas órfão talvez fosse sua melhor aposta.

Ele entrou no avião atrás da mulher e se sentou em um dos bancos de passageiro. Havia uma outra mulher de cabelo preto, curto, uma tal de Piper, no banco de co-piloto, e logo o avião saiu do chão.

Pensando melhor, uma viagem de meia hora não era tanto tempo assim para inventar uma vida inteira de mentira, e Erasmus nem sabia se conseguiria fazê-lo no momento. Estava cansado, preocupado, e só queria poder relaxar um pouquinho. Trinta minutinhos que fossem…

— Quando aconteceu sua terrigênese, Erasmus? — Yo-yo perguntou, enquanto pilotava o avião. Aparentemente, o descanso teria de esperar.

— Faz um mês, mais ou menos. Eu estava andando numa rua perto do Central Park e de repente, boom. Estouraram uma bomba em um dos restaurantes. Pegou umas duas quadras.

A mulher assentiu e não pediu por mais detalhes. Ela já devia ter ouvido falar desse ataque. Talvez até tivesse estado lá depois para investigar.

— Você ficou no casulo por muito tempo?

— Uma semana — o garoto respondeu, sentindo uma onda de arrependimento perpassar seu corpo. Ele passou a mão devagar sobre o pulso esquerdo, sentindo a textura de lixa da pele cinzenta. — Depois disso, um amigo me achou e me ajudou por um tempo. Mas… Ficamos preocupados que tivesse algo a mais sobre a minha mutação que eu não conhecesse. Alguma coisa perigosa para os outros, ou para mim.

— Entendo — a mulher disse. — Leva cerca de meia hora pra chegar na base. Lá, a agente Morse vai fazer uma análise preliminar pra você. Vou pedir pra te arrumarem um bunker do lado dos outros trainees, ok?

Erasmus concordou sem querer saber detalhe nenhum sobre bunkers e trainees; o importante era receber a ajuda de que tanto precisava. Ele se recostou na cadeira em silêncio pelo resto da viagem, esperando com paciência o avião terminar seu trajeto. Sua mente estava distante, em lembranças de sua casa, no abraço de sua mãe e nas tardes de domingo se divertindo com seu pai. Tudo parecia tão longe… Quando Erasmus saiu de seus pensamentos, foi para ver que já tinham pousado em algum lugar, a rampa do avião estava aberta e Yo-yo o convidava a sair. Piper, a outra agente, permaneceu acomodada no banco de co-piloto, fazendo algum diagnóstico no avião.

Estavam em uma base secreta, isso ficou muito claro. O hangar estava estranhamente vazio, tendo apenas os três, e o garoto se perguntou quanta gente trabalhava naquela organização. A dúvida devia ter ficado estampada em seu rosto, pois Yo-yo acabou respondendo por ele.

— Somos uma equipe pequena — ela informou, guiando-o para o elevador. — Gostamos de deixar as coisas um pouco mais intimistas. E queremos poder dedicar atenção especial a quem nos pede ajuda.

Ele se perguntou se isso seria totalmente verdade ou alguma desculpa inventada por eles para justificar a falta de pessoas. Decidiu que não era da sua conta e não se importava. As portas do elevador se abriram e a dupla saiu em um corredor com várias portas de bunker à esquerda. Yo-yo o guiou até uma das portas mais ao final do corredor, abrindo-a para revelar o cômodo vazio. Erasmus deixou a mochila sobre a única mesa do bunker, memorizando qual era o quarto, e continuou seguindo Yo-yo de volta para o elevador.

No próximo andar onde saíram, ele se viu passando por uma sala de controle, onde um homem loiro estava sentado encarando os monitores e girando devagar na cadeira de rodinhas. Riu baixinho, e viu Yo-yo seguir seu olhar.

— Aquele é o Davis, uma criança de quarenta anos. Vem, nossa parada é aqui.

Mais algumas portas depois, ela abriu a que desembocava num laboratório. Havia duas pessoas lá dentro: um homem negro muito alto e uma mulher loira também muito alta.

— Erasmus, esses são o diretor Mackenzie e a agente Morse. Ela vai fazer a análise preliminar em você.

Ele concordou, ainda um pouco atordoado com a guinada que sua vida tinha dado nos últimos minutos. Tinha mesmo ligado para a S.H.I.E.L.D. e ido para a base deles. E agora, o que ia acontecer? Muitos exames? Serviria de rato de laboratório? Ia ser treinado para ser super-herói? A essa altura, Erasmus nem sabia o que seria melhor. Ele viu o diretor se aproximar de Yo-yo, sussurrar alguma coisa para ela e os dois deixaram o laboratório, restando apenas ele e Morse.

— Erasmus, certo? — Ela perguntou, sentando-se em uma cadeira e indicando a outra para o garoto se sentar na frente dela. 

— Sim.

— Sobrenome?

Erasmus engoliu em seco. Podia dar um falso, não é? Claro que podia.

— Kaʻaukai. Sou do Havaí.

Ao menos, ele tinha passado muito tempo lá. O bastante para poder inventar alguma coisa se fosse necessário.

— Certo. Pode me chamar de Bobbi. Tudo bem com você?

Ela pegou um tablet e uma caneta em cima da mesa, começando a mexer em alguma coisa no objeto. Por algum motivo, ele se sentiu em uma consulta médica. Não sabia se isso era bom ou ruim; não tinha nada contra médicos, mas era verdade que não tinha ido em tantas consultas na vida.

— Até agora sim, tirando o óbvio…

— É uma mutação de tubarão. Tenho uma boa ideia de por onde podemos começar.

A mulher pegou um óculos com um monóculo em uma das lentes, segurando a mão de Erasmus e a puxando para perto. Ela passou um dedo de leve sobre as costas da mão do garoto, mexendo hora ou outra na lente do monóculo.

— É, a textura é bem desagradável — ele comentou, defensivo.

— É interessante — a mulher retrucou. — São escamas placoides.

— São o quê?

— Escamas placoides — Bobbi repetiu, tirando os óculos e começando a escrever no tablet. — Um tipo de escama encontrada em peixes cartilaginosos. São bem pequeninas, feitas de esmalte e dentina. Elas reduzem muito a turbulência com a água, fazem esses peixes alcançarem velocidades incríveis. Você nadou depois da sua terrigênese?

Não, o medo da água não tinha deixado, por mais que amasse o surf. Tudo tinha mudado depois da terrigênese, e desde então… Não era só o mar. Tinha parado de viver. Não sabia se por vergonha ou medo, ou talvez os dois. Mas tinha parado.

— Não.

— Interessante. Seria um bom teste para se fazer, eventualmente. Quais outras alterações você percebeu?

Algumas. Uma boa quantidade delas.

— Eu não enxergo cores mais. E… tenho muitos dentes. Eu arranquei alguns, estavam me machucando. E os cheiros… Eu senti o cheiro de tudo. Acabei indo pra praia por isso, o cheiro de urina na cidade estava me matando de enjôo.

— Entendi. Posso ver esses dentes?

Erasmus abriu a boca, um pouco encabulado. Bobbi tirou um espelhinho de dentista de uma gaveta de utensílios e começou a analisar, murmurando consigo mesma de momento em momento. Enfim, ela colocou o espelhinho de lado e anotou mais algumas coisas em seu tablet.

— Você tem algumas fileiras de dentes afiados, o formato que os tubarões que se alimentam de presas grandes têm. Deve ser uma mordida bem perigosa — ela brincou com um sorriso leve. Erasmus queria ter conseguido achar graça. Não conseguiu. — Tubarões trocam de dente ao longo da vida. Eles cresceram de volta quando você arrancou?

Erasmus confirmou com a cabeça. Ah, sim, tinham crescido. Um inferno

— Não dá pra me livrar de uma fileira ou duas?

— Eu não sei o que dá ou não dá pra fazer. Ou ainda, o que vale a pena ser feito. Vamos precisar fazer mais testes e estudos, ok?

Não dava para dizer que não estava esperando por aquele veredito. Ele concordou, e Bobbi tirou um pacotinho fechado com uma seringa dentro.

— Preciso coletar uma amostra de sangue e você está liberado para ir conhecer a base.

Não era lá o procedimento preferido de Erasmus, mas ele logo percebeu como poderia ser pior. Bobbi olhou para o braço do garoto por alguns segundos e se levantou da cadeira, indo até um armário próximo. Quando ela voltou, trazia uma gaveta resfriadora com buraquinhos para colocar amostras de sangue, e uma outra seringa com uma agulha muito, muito mais grossa.

— Isso é sério? — Erasmus perguntou, recolhendo o braço em instinto.

— Sinto muito, mas uma agulha comum não vai passar na sua pele.

Se existia uma fila de azar, devia ter passado umas cinco vezes nela. Só podia ser piada… O garoto estendeu o braço, receoso, e virou o rosto. Ser furado pela agulha doeu mais que ele antecipava, e ele precisou tapar a boca com a mão para não cometer o vexame de gritar. Felizmente, Bobbi era muito rápida e habilidosa, e depressa ela tinha colocado dois vidrinhos de amostra na gaveta.

— Pronto — ela disse, colocando um adesivo em cima do furo. — Liberado.

Estava ali há menos de uma hora e já tinha sido furado uma vez. Ele tentou não pensar em quantas vezes mais o procedimento poderia acontecer. Além do mais, era para ajudá-lo. Ele precisava disso, e sabia.

— Obrigado, agente Morse.

— Venha me relatar se descobrir qualquer outra coisa ou se sentir algo. Qualquer coisa, ok?

Erasmus concordou, deixando o laboratório. Queria explorar a base, mas por algum motivo não queria sair andando por aí sozinho, e por conta disso acabou se sentando na sala de controle, onde o crianção do Davis agora estava jogando uma bola de tênis contra a parede.

Talvez fosse uma boa pessoa para começar uma amizade. Mas, por falar em amigos, tinha algo para fazer antes. Ele pegou o celular, discando o número de Han e esperando alguns minutos.

— Alô?

— Han! Sou eu, o Erasmus. Eu… Segui o seu conselho. Estou com a S.H.I.E.L.D..

O alívio na voz de Han ao responder só podia querer dizer que tinha mesmo tomado a decisão correta. O garoto se sentou na cadeira mais próxima, brincando distraído com as contas em seu colar de praia. Han ainda tinha alguns conselhos para lhe dar, e Erasmus ouviria cada um deles.


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Notas finais do capítulo

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Considere favoritar essa fic e Homem de Gelo também. Vai deixar meu coração bem quentinho ♥

Além dessa, tenho vagas também para uma interativa original sobre revoltas civis. Acesse aqui:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-rosa-do-tempo--interativa-19350882/

Considere também dar uma olhada nas minhas outras histórias? :D Eu tenho coisas para vários gostos ^^

Leia a duologia Hunters! Comece aqui: https://fanfiction.com.br/historia/771022/Hunters_Hunters_1/

Leia minha original de fantasia urbana, Carmim! https://fanfiction.com.br/historia/787245/Carmim/

Leia minha fanfic de Harry Potter! https://fanfiction.com.br/historia/781763/Marcas_de_Guerra_Historias_de_Bruxos_1/



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