S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) escrita por scararmst


Capítulo 15
Contrastes




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O caminho do lado nobre de Attilan até os aquedutos era longo, mesmo se fizesse o trajeto em um de seus carros velozes de luxo, então, já que teria de ficar muito tempo dentro do veículo de qualquer forma, Aurelius optou pela limusine. Acomodado no banco de trás, bebendo um pouco de champanhe e assistindo um filme qualquer na televisão da parte de trás, ele tentava se concentrar apenas na tela à sua frente, mas quanto mais o carro avançava, mais difícil era.

A paisagem ao seu redor estava mudando. As casas foram ficando menos requintadas, menores, mais próximas umas das outras. Restaurantes, lojas, todo o comércio se distanciava aos poucos do padrão de luxo de onde Aurelius morava para uma versão muito popular, e a mudança era esperada: estava indo até a região mais pobre da cidade, onde ficavam os trabalhos mais braçais possíveis. Aurelius era um homem de princípios, alguém que repugnava a injustiça da sociedade onde devia e acreditava, verdadeiramente, que a situação precisava melhorar para os moradores que nunca passavam pela terrigênese. Mas, do conforto de sua limusine,  dirigida por seu motorista, em direção a tais bairros, ele se perguntava, o que poderia fazer de qualquer forma? Ir contra decisões reais? Terrigênese de um lado, sem terrigênese do outro, e pronto. As coisas não mudariam, e certamente não seria ele a fazê-las mudarem.

Ele engoliu em seco, vendo muros pichados aparecendo, mais concreto puro e menos pintura e acabamento nas casas ou nas próprias áreas comuns. Pessoas fecharam a cara para o carro dele quando passava. Alguém, ele tinha muita certeza, jogou uma pedra.

O homem abaixou a cabeça sobre as mãos, respirando fundo e se perguntando quanto tempo mais faltaria para chegarem. Tendo em suas mãos uma permissão especial de investigação da Família Real, poderia por exemplo descer da limusine e mandar prender quem tinha lhe atirado a  pedra, mas não era esse tipo de homem. As pessoas só estavam frustradas e, honestamente, tinham o direito de estar. Um amassadinho em sua limusine seria muito simples de consertar, ao contrário da vida de que quem morava ali precisava levar.

Sim… E a vida que Praxis havia levado. Por anos. Aurelius se pegava pensando na esposa com frequência nos últimos tempos. Toda essa investigação acontecendo, e ela tendo se oferecido para ajudar e fazer parte de tudo, tinha inserido um novo assunto no dia a dia deles que, pela primeira vez, não se parecia com uma guerra. Aurelius tinha ficado embasbacado de verdade com como tinham conseguido conversar por horas a fio, montando estratégias e fazendo questionamentos sobre como proceder em diversas possíveis situações.

A mulher não tinha se oferecido para ir com ele até o local, e ele nem teria permitido que ela fosse se assim quisesse. Poderia ser perigoso e, até onde Aurelius sabia, Praxis não possuía treinamento de combate formal como ele tinha recebido ao começar trabalhos governamentais. Poderia acabar se machucando gravemente, em particular se morasse no local algum inumano de mutação perigosa. E, uma coisa que ele sabia depois de ver a esposa empalidecer e quase desmaiar naquele baile, era que não queria que nenhum mal acontecesse com ela.

Que sentimento estranho, não é? Até pouco tempo antes, não poderia ligar menos para o que Praxis fazia ou deixava de fazer, ou para o que lhe acontecia ou deixava de acontecer. Não era seu problema. E então, de repente, se percebeu conferindo de maneira discreta se ela estava se alimentando nas refeições, ou se não tinha sentido algum tipo de mal estar de novo. Nunca tinha desejado que algo de ruim acontecesse de fato com ela, mas daí a se preocupar com a esposa era um outro nível que ele não estava esperando ver acontecer.

Algo estava mudando e, se seus novos sentimentos em relação à sua esposa não eram indicativos disso, o fato de ter passado os olhos sobre suas redes sociais, ter visto fotos de Illiana com sua nova família e não ter sentido nada além de uma felicidade amigável por vê-la bem, certamente era um sinal. Aurelius não queria pensar muito a respeito, pois tinha percebido a qual conclusão chegaria se o fizesse, mas ficava cada dia mais difícil ignorar que talvez, só talvez, sentisse algo pela sua esposa.

Podia ser amor ou podia ser um engasgo até onde sabia, não fazia ideia. Mas juntar toda essa nova situação com o desejo latente que sempre tinha tido de formar uma família o fez começar a considerar o assunto com mais e mais frequência. Vinha pensando em abordar o assunto com ela, mas não queria abordá-lo assim, do nada. Não… Queria levá-la para jantar. Comprar um presente. Precisava passar um dia normal com ela, fazer algo comum que casais faziam para que pudesse sentir de fato o que estava acontecendo entre os dois. E então… por que não um filho, ou filha? Uma criancinha para ele ensinar a andar, brincar em uma piscininha de plástico ou ler histórias antes de dormir?

O devaneio rapidamente mudou para ele, Praxis e uma garotinha de dois anos em um piquenique no jardim da mansão. Outra possibilidade, Aurelius sabia, era que seu sentimento não seria nem amor nem engasgo, mas apenas um desejo subconsciente de ter uma família completa. E o que havia de tão errado nisso? Tinha crescido com uma família bem desfuncional, seria tão errado assim desejar ter a sua? Cuidar de seu filho, dividir momentos com sua esposa… O quão entediante ele seria por ter um desejo tão banal quanto esse?

Em meio a esses devaneios, a limusine estacionou. Aurelius quase se arrependeu naquele momento de ter saído com um carro tão chamativo, mas se lembrou de que todos os seus carros eram chamativos de alguma forma, então não teria como escapar disso; a menos que tivesse ido de ônibus, coisa que ele não sabia nem fazer.

Bem, agora era tarde. O homem esperou o chofer lhe abrir a porta por puro reflexo, desceu do carro e ajeitou o moletom que estava usando com jeans e tênis, uma preparação para caso precisasse correr ou lutar. Infelizmente, mesmo sua roupa mais simples era visivelmente de marca, e quase tão chamativa naquele local quanto um de seus ternos seria. As pessoas que ele tinha visto o encarando enquanto estava dentro do carro viraram o rosto na mesma hora, voltando-se a seus afazeres, como cuidar de um bar de esquina ou varrer a calçada, mas ainda tendo a cara de pau de sussurrar uns com os outros como se o objeto da fofoca não estivesse bem ali e não soubesse exatamente que o era.

Ele pigarreou, decidindo que quanto mais rápido cuidasse disso, antes poderia partir. Era melhor para todo mundo. O homem se despediu do chofer, orientando-o a esperar por perto, e seguiu caminho em direção à fonte do aqueduto da cidade. Era onde acontecia a maior parte do trabalho braçal, de reparos a tratamento de água e monitorações. A cidade tinha um sistema de reaproveitamento de água quão eficaz quanto se era possível ter, sendo necessárias expedições esporádicas para se obter água fresca no solo firme quilômetros abaixo deles. As viagens e a extração da água custavam caro, então quanto mais água pudessem reaproveitar e tratar lá em cima, melhor.

A entrada era guardada por catracas de leitura digital e um recepcionista parado na guarita ao lado. O homem o olhou com a boca um pouco franzida, uma clara expressão de desprezo, e parecia muito desconfiado com a presença de Aurelius. A contragosto, o inumano abriu o sorriso mais simpático e cordial que pôde dar, sabendo que a gentileza era sua única chance de conseguir algo, uma vez que ele parecia arrogante o bastante só pela roupa que usava.

— Boa tarde — ele cumprimentou o recepcionista, ainda com um sorriso no rosto. — Sou Aurelius Chrysanthos…

— Eu sei quem você é — o homem cortou. — O que está fazendo aqui?

Aurelius se surpreendeu. Não achava que chegasse a ponto de ser conhecido do outro lado da cidade, e de repente isso o fez se perguntar até onde — e como — a reputação dele e dos inumanos de casta alta chegava. Ele limpou a garganta, o sorriso sumindo de seu rosto automaticamente, e tirou um cartão digital do bolso.

— Tenho autorização da Família Real para conduzir uma investigação que me trouxe até aqui. Preciso entrar no local e falar com alguns de seus funcionários.

Ele entregou o cartão, que o homem pegou com ainda mais má vontade ao ouvi-lo falar em “investigação” e “Família Real”. Aurelius esperou um instante enquanto o recepcionista passava o cartão em seu computador e, depois de alguns segundos, devolveu-o para ele. O homem apertou um botão e uma das catracas acendeu uma luzinha verde, liberando passagem para ele. Não disse nada, apenas ficou encarando Aurelius por um tempo até o homem entender a mensagem e entrar para dentro do aqueduto de vez.

O inumano atravessou um pequeno hall de concreto e logo se viu no topo de uma passarela com cercas de barras de ferro. Olhando para baixo, ele viu um grande canal de água limpa passando mais para frente, e vários canais menores se interligando a ele pela sede de tratamento, onde a água era tratada e despejada no canal principal. Espalhados pelo local, a olho nu, ele viu o que deveria ser uma centena de trabalhadores, transportando químicos para as máquinas, aferindo a qualidade da água e fazendo o que mais fosse parte do trabalho deles, tarefas as quais Aurelius não chegava a entender.

Ele não sabia exatamente quem estava procurando, o que de certo era um impedimento, mas tinha duas vantagens: primeiro, quem ele estava procurando não sabia que Aurelius não sabia quem ele era. Qualquer um que parecesse minimamente culpado ao saber da visita de um investigador poderia ser o suspeito. E em segundo lugar… Todo mundo, não importando a classe social, tinha um celular em Attilan, mesmo que fosse um dos modelos mais velhos possíveis. Ele piscou os olhos, suas írises azuis assumindo a tonalidade dourada. O inumano já esperava a sobrecarga de informações que recebeu, o que como de costume era incômodo para si, mas dessa vez estava mais que determinado a passar impune pelo desconforto. Ele se aproximou das barras de ferro, agarrando a cerca e respirando fundo. Precisava se focar em mensagens textuais e procurar palavras-chave, como contrabando e terrígeno.

A onda de informações era muito forte, e isso afetava a concentração do inumano mais do que ele havia antecipado. Aurelius resmungou, atravessando a plataforma e descendo as escadas para o nível principal, sentindo as informações dos trabalhadores mais próximos dele começarem a ficar mais claras. Teria de andar pelo local, focar-se em quem estivesse perto dele. Aos poucos, Aurelius foi conseguindo ter mais detalhes das trocas de mensagens dos trabalhadores, mas a grande maioria era sobre coisas banais, como o jantar do dia, as notas do filho na escola ou conversas com amigos sobre assuntos variados.

Ele chegou a detectar uma ou outra mensagem sobre algo suspeito, como pequenos furtos, mas não estava ali para punir esse tipo de delito. Sua busca era muito específica, e não queria se meter em mais problemas naquele lugar do que o necessário. Estava claro que não era bem-vindo e, honestamente, entendia muito bem o motivo. Quanto antes deixasse o lugar, melhor, tanto para ele quanto para os moradores da região.

Aurelius caminhou por uma das margens do canal principal, sentindo as mensagens dos trabalhadores na mesma altura do canal que se tornava mais clara à medida que ele avançava. Até agora, nada de diferente, nada que chamasse atenção, e muitas pessoas o encarando.

De repente, ele reconheceu a palavra “cristais” em uma conversa. Ele parou, olhando para sua direita e focando o máximo que podia nas mensagens daquele celular em específico, tentando cancelar o ruído em volta vindo de todos os outros telefones. Outra palavra, “terrígeno”, e então um preço.

Era isto. Tinha encontrado. Aurelius franziu a testa, forçando o celular o qual tinha detectado começar a vibrar, e um dos homens trabalhando no transporte de químicos largou o saco no chão, tirando o aparelho do bolso. Ele não demorou para perceber que não havia mensagem nem ligação nenhuma, e que a vibração era completamente involuntária.

O homem olhou para o lado. Por um segundo, seu olhar cruzou com o de Aurelius. Não demorou nada para os dois entenderem quem o outro era e o que estava acontecendo. Então, o suspeito correu.

Aurelius agradeceu mentalmente o instinto que o fez se vestir de forma tão pouco usual, porém útil, e saiu correndo também, empurrando quem podia pelo caminho e tentando não perder o homem de vista.

Infelizmente, vestir-se com roupas urbanas não tornava Aurelius um garoto de rua nato e, quando o suspeito saltou sobre uma estante para pegar impulso, agarrando-se nas grades da plataforma para pular para ela e cortar caminho de uma volta enorme, Aurelius soube que não havia chance de poder reproduzir o movimento. Mas havia outras coisas que ele podia fazer.

O homem franziu a testa, fechando a porta automática da portaria e a trancando eletronicamente. Desesperado, seu perseguidor começou a tentar abrí-la de qualquer forma e, embora Aurelius não pudesse ficar focado na porta se não quisesse arriscar perder o rastro do telefone, serviu ao menos para lhe comprar um tempo precioso. Enquanto os sistemas da porta eram reiniciados para voltar a se abrir, ele voltou a se focar no aparelho celular, certificando-se de não perder aquele rastro por nada e, enfim, conseguindo alcançar a escada da plataforma e dar toda a volta necessária para subir até ela.

Mais ou menos nesse momento a porta eletrônica se abriu, mas a essa altura o suspeito tinha perdido boa parte da vantagem conquistada por seu truque de dublê de filmes. Ele saiu correndo pela porta quando ela se abriu, e segundos depois Aurelius saiu atrás, ativando a catraca imediatamente com suas habilidades para passar de uma vez em direção à saída.

Havia bem menos pessoas na rua do que dentro do aqueduto, o que foi de um alívio mental enorme para Aurelius. Aquela não era uma região tão populada de Attilan, tendo mais indústrias que casas ou comércios, e por conta disso não tinha quase ninguém caminhando pelas ruas àquela hora, estando os funcionários das indústrias ocupados em seus trabalhos. Na rua só havia uma pessoa que conseguia ver em sua frente: o homem a quem perseguia.

Ele apressou seus passos. Ali, sem interferência, seu foco no celular ficou muito mais forte e eficaz, e enquanto perseguia o homem pela rua, conseguiu ter acesso a mais e mais informações. Alguns números de celular, algumas conversas… E-mails. Mensagens. Fotos. E então…

Aurelius parou de correr. Ele viu o homem olhar para trás, talvez pensando que tinha conseguido escapar por ter cansado seu perseguidor, mas esse definitivamente não era o caso. Aurelius pegou o próprio celular, anotando coisas nele as quais não queria esquecer. Não precisava mais perseguir aquele homem. Tinha conseguido seu nome. Seus dados. Sua vida inteira. E mais que suficiente evidência para ordenar uma busca e apreensão em seu celular.

Celular, é claro. Como última medida, Aurelius iniciou no aparelho do homem um procedimento para enviar para seu e-mail a informação que julgou pertinente; afinal, mesmo que pudesse recuperar os dados caso o suspeito formatasse seu celular, daria trabalho. Não queria mais trabalho. Assim era tudo mais fácil.

Ele abriu um sorriso vitorioso e começou a fazer o caminho de volta para a limusine, esperando por ele no meio da cidade. Antes mesmo de chegar no veículo, recebeu em seu e-mail pessoal os arquivos das informações roubadas do celular do suspeito.

Agora bastava fazer um relatório de alta qualidade e enviar para a Família Real, e seu trabalho estava concluído.

 

[...]

 

Naquele dia, Praxis voltou cedo para casa.

Não vinha sentindo mais o mesmo desejo quase dolorosamente poderoso de se manter o mais distante de casa possível. Não sabia dizer ao certo o que vinha acontecendo, o que tinha mudado ou porque as coisas eram assim agora, mas era como se sentia. Não estava odiando ficar em casa, e nem mesmo estava odiando a companhia de Aurelius.

O que não queria dizer que gostasse; seria inferir demais, não é? Mas algo estava diferente na forma como ele falava com ela. As conversas vinham assumindo outro tom, havia menos sarcasmo e ataques subentendidos em suas palavras e mais honestidade. Mesmo sem ter certeza de como, Praxis tinha sua teoria, e acreditava que tinha algo a ver com aquele maldito baile ao qual tinham comparecido.

Sentia-se péssima naquele dia. Enjoada, zonza, tudo o que sabia que aconteceria consigo eventualmente, considerando sua situação. Não queria ir para aquele baile por nada, e sabia que Aurelius também não. Havia uma série de coisas que ele poderia ter feito sobre isso. Poderia ter deixado ela ir sozinha e ter ficado em casa, poderia ter ignorado seus problemas durante a festa, poderia tê-la mandado embora sozinha e poderia até ter tentado — tentado, veja bem, pois ele jamais obteria sucesso nisso — obrigá-la a ficar na festa a despeito de seu mal estar.

Mas não. Ele tinha ido quando ela a disse para ir, cuidado dela quando se sentiu mal e ido embora com ela, mesmo a custo de uma briga com seu pai, quando ela não podia mais ficar. Praxis não conseguia se lembrar de nenhuma outra ocasião em seu casamento na qual tivesse se sentido que Aurelius se importava com ela, um mínimo que fosse e, agora que isso tinha acontecido, não sabia como devia agir.

É claro, não mudava nada sobre o que queria fazer. Não era como se Aurelius fosse o motivo para seus planos existissem, seu mundo não girava ao redor do homem dessa forma. Mas seria mentira dizer que a nova dinâmica entre eles não a fazia questionar, em um ou outro momento, se não devia fazer as coisas de forma um pouco diferente.

Ela suspirou ao entrar no escritório de Aurelius, depois de ouvi-lo murmurar um “entre” quando ela bateu. No começo, tinha sido muito fácil se infiltrar para dentro da investigação dele sob o pretexto de conseguir informação que era útil para ela, mas o baile não tinha sido o único evento a mudar as coisas entre eles. Estarem dividindo informações, trabalhando juntos em algo, isso também tinha seu papel. E a cada dia ficava mais difícil não se sentir uma terrível traidora com o que planejava fazer com tudo aquilo.

Mas já estava decidido. Precisava fazer o que precisava fazer, e pronto. Não podia deixar sentimentos entrarem no caminho disso, quaisquer que fossem.

Ela abriu um sorriso nada verdadeiro, mas sabia que seria bom o suficiente para enganar Aurelius. Os dois não se conheciam o bastante para ele saber o que seria um sorriso verdadeiro da parte dela.

— Recebi sua mensagem — ela comentou, fechando a porta atrás de si e entrando no local. — Você conseguiu mesmo?

— Sim — ele respondeu, com um sorriso que, Praxis apostaria, era genuíno, embora ela também não fosse capaz de dizer com certeza. — Quer ver?

Sim. Sim, ela precisava ver aquilo, era tudo o que a mulher precisava saber. Ela caminhou até o marido, dando a volta na escrivaninha dele e torcendo para que sua ansiedade não se mostrasse palpável demais. A mulher se sentou casualmente no canto da escrivaninha, cruzando as pernas de forma a mostrar um pouco mais delas para o marido sentado na cadeira. Ela viu os olhos dele passearem por um instante sobre as pernas dela, exatamente como tinha planejado, e então virou o monitor para ela.

— Marcellus Aeliusamudri — ele anunciou, mostrando fotos, dados e o endereço do homem. — Ele e toda a família trabalham nos aquedutos. Os Samudri tinham mutações marítimas medíocres, o suficiente para serem aprovadas, mas não para renderem castas muito altas na sociedade. E então, Decimus Drusamudri, tio-avô de Marcellus, passou por sua terrigênese e ganhou poderes hidrocinéticos tão perigosos que ele causou inundações terríveis e literalmente desidratou dez pessoas até a morte. E não podia controlar. Como pode imaginar, o homem foi…

— ...exterminado — Praxis cortou, sabendo exatamente como aquele tipo de história terminaria. — E desde então nenhum outro Samudri pôde passar pela terrigênese.

— Exato. E não é apenas isso — Aurelius mudou a guia do banco que estava pesquisando, mostrando outra ficha, agora de um garoto adolescente. — O Samudri mais novo, Erasmus Drusamudri, sobrinho de Marcellus, foi reportado como desertor há alguns anos. O garoto simplesmente fugiu da cidade. Com as explosões de terrígeno acontecendo no mundo, existe a chance dele ter passado pela terrigênese, e ele tinha um risco muito alto de apresentar mutação perigosa, de acordo com a análise genética dele.

— Espera… — ela comentou, olhando da tela para Aurelius, e de volta para a tela. — Você acha que os Samudri podem ter começado o tráfico como uma forma de fazer terrígeno chegar até o garoto fora de Attilan?

Aurelius deu de ombros, mas sua expressão deixou claro que sim, ele tinha considerado isso.

— É uma possibilidade. É claro, seria muito mais simples roubar um único cristal e entregar para ele, mas também parece haver um ódio não tão escondido contra a Família Real e o Conselho Genético. Poderia ser mais uma forma de sim, conseguir os cristais para o sobrinho do lado de fora, mas de também causar caos o suficiente para causar problemas para a Família Real. Eles conseguem tanto a terrigênese do herdeiro quanto uma vingança pessoal.

Impressionante. Ela relaxou o corpo, escorando-se mais na mesa e observando a tela com uma expressão pensativa no rosto. Aurelius tinha mesmo feito um ótimo trabalho de investigação e dedução. Ele deveria entregar um relatório muito em breve para a Família Real, isso se já não o tivesse entregado. E não tinha como garantir que o tal Marcellus não tentaria fugir da cidade depois disso; ela mesma tentaria no lugar dele.

Tudo bem. Uma coisa de cada vez.

— O jantar está pronto — ela disse, descendo da mesa e fazendo um carinho muito sutil no ombro do marido. — Eu vou te esperar por lá.

— Tudo bem, estou quase acabando. 

Em outra situação, Praxis teria sabotado o computador, mas sabotar um computador para tentar esconder algo de Aurelius estava no topo das decisões mais burras que uma pessoa poderia tomar. Era impossível esconder algo dele àquele ponto, e tudo que ela ia ganhar se tentasse interferir no relatório era o desprezo dele quando descobrisse o que aconteceu, e isso ela não queria ter agora.

Decidiu que a única coisa que podia fazer era ser rápida. Ela fingiu que nada demais estava acontecendo, deixou o marido ali e foi até a sala de jantar.

Ordenou aos empregados que o esperassem para servir, sabendo que Aurelius não diria estar quase acabando a menos que de fato estivesse — ele não era de eufemismos sem sentido. Como prometido, ele não demorou para chegar, e logo os dois estavam jantando. Ela conduziu uma conversa sobre trivialidades, evitando assuntos relacionados à investigação, com medo de algum nervosismo seu se revelar, ou de acabar dando sinais que não deveria sobre coisas as quais não queria falar.

No fim das contas, ele não percebeu. Eles se levantaram depois da janta, caminhando em direção ao quarto, e ao meio do caminho ela sentiu as mãos de Aurelius segurarem seus quadris por trás e a boca dele encontrar seu pescoço.

Praxis sentiu um arrepio percorrer sua coluna. Desejo nunca tinha sido um problema entre os dois e, com a relação cordial tendo melhorado tanto, tinha se tornado algo ainda mais proeminente. Mas estava começando a ficar arriscado. Já não podia permitir Aurelius vê-la sem roupas ou ele perceberia a diferença, e agora sabia também não ser seguro deixar que ele a tocasse. Aurelius sempre tinha sido muito minucioso na cama: ele não demoraria nada a perceber como o corpo dela estava mudando.

— Hoje não — ela murmurou, afastando-se do marido devagar. — Estou cansada, vou tomar um banho e me deitar. Outro dia.

— Uma pena, eu estava cheio de ideias — ele respondeu com um sorriso genuíno e, ela ousaria dizer, empolgado, no rosto. Aurelius passou a mão pelo rosto da esposa, colocando uma mecha de seu cabelo atrás da orelha, e a puxou para perto com gentileza, deixando um beijo intenso sobre seus lábios. — Fica pra próxima, então.

Praxis sentiu algo estranho se remexer em seu peito ao ouvir isso, sabendo muito bem que não haveria próxima. E o pensamento doeu.

Ela forçou um sorriso, torcendo para que o homem não percebesse seus olhos cheios de lágrimas no escuro do corredor, e ele acenou brevemente, seguindo para o quarto deles.

A mulher se escorou contra a parede, cobrindo a boca com uma mão e enxugando os olhos freneticamente, tentando a todo custo se impedir de chorar. Não podia garantir que ele não perceberia se chorasse. Precisava se manter firme. Isso que estava sentindo não podia ser tristeza ou arrependimento, era apenas ilusão, fruto de uma época atípica no relacionamento dos dois que, até onde sabia, podia muito bem ser passageira. O que não seria passageiro era seu futuro, caso não fizesse logo o que precisava ser feito.

Ela enxugou os olhos de vez e seguiu até o banheiro. Fez questão de tomar um banho bem demorado, o suficiente para com certeza Aurelius estar adormecido quando saísse de lá. Quando enfim saiu, ela vestiu um sobretudo, botas e óculos de Sol, apesar de já ser noite, tentando usar suas roupas para se cobrir o máximo possível para não ser reconhecida na rua.

Ao contrário de Aurelius, ela sabia pegar um ônibus, e foi o que fez, conhecendo seu bairro o suficiente para ter certeza de que qualquer um dos carros da família lhe atrairia atenção desnecessária. A viagem de ônibus até o bairro onde Marcellus Drusamudri morava foi muito maior do que seria de carro, mas paciência era um virtude sob a qual Praxis tinha se criado. Nada que se desejava caía em suas mãos quando queria, como queria. Por vezes, era necessário esperar um pouco mais por isso.

Ela não reclamou durante a viagem. Ver a mudança lenta da paisagem, as casas ficando menores e mais simples, o comércio, tudo se aproximando cada vez mais do que ela identificava como sua infância, foi no mínimo nostálgico para si. Parte de si sentiu certa paz pegando aquele ônibus quase vazio graças ao horário tardio, quase como um lembrete vazio da vida a qual costumava viver. A vida que estava tentando ter de volta: simples, mas livre.

O trajeto todo levou uma hora e meia. Era melhor torcer para Aurelius dormir como uma pedra durante a noite e não acordar a momento algum, porque levaria mais uma hora e meia para voltar. Era bastante tempo. Ainda assim, ela estava disposta a correr o risco. A mulher desceu no ponto mais próximo ao endereço anotado em um papel que levava consigo. Obviamente, tinha deixado seu celular em casa. Era provável Aurelius dar pela falta do aparelho antes de dar pela falta dela, e mais uma vez, não era um risco que queria correr.

Ela encontrou finalmente a casa de número 183, um sobrado apertado entre dois outros, sem acabamento na parede frontal e com o concreto úmido em algumas partes. Um cheiro forte de água salgada escapava da casa, algo que ela não tinha esperado, mas que não chegava a ser estranho no contexto daquela família.

A mulher tocou a campainha, torcendo para o barulho ser alto o suficiente para acordar qualquer um. Ela tocou de novo, e de novo, e ia continuar tocando nem que ficasse ali até de manhã, embora o ideal fosse ser atendida o mais rápido possível. Ela chegou a perder a conta depois de tocar pelo que imaginou ser a sétima vez, quando finalmente ouviu um barulho de chave consideravelmente irritado, e a porta se abriu de uma vez só.

Era precisamente Marcellus do outro lado, descabelado e de pijamas. Não parecia tão apressado para fugir quanto ela imaginou que ele estaria, o que significava que ou ele tinha aceitado uma forte derrota ou era burro. Qualquer que fosse o caso, não era importante para ela. Estava ali para uma coisa, e uma coisa apenas, e o que o homem fazia da sua vida particular não lhe dizia respeito.

— Estava procurando você — ela disse, com as mãos nos bolsos do sobretudo.

— A essa hora da madrugada? Você é louca?

Ela tirou um maço gordo de dinheiro do bolso e viu a expressão de Marcellus mudar no mesmo instante. Ótimo, agora tinha a atenção dele.

— Eu preciso comprar algo. Ouvi dizer que você pode vender.

O homem torceu a boca, parecendo nervoso e desagradado. Estava considerando, ela conseguia ver. Enfim, ele abriu mais a porta, dando espaço para Praxis entrar, o que ela fez às pressas.

A casa dele era tão simples quanto Praxis se lembrava da sua ser. Sala de jantar apertada, cozinha menor ainda atrás. Uma escada espremida no fundo levava ao segundo andar, onde certamente os quartos estariam. Imaginou que se sentiria desconfortável entrando em uma casa tão pequena depois de tanto tempo, mas em verdade, tudo que sentiu foi nostalgia. Se tinha alguma dúvida de que precisava mesmo ir embora de Attilan, a dúvida tinha acabado agora. Podia não ter desejo algum de voltar a ser pobre como era antes e, em verdade, não o era, mas trocaria aquela mansão gigante por uma casa de tamanho comum sem pensar duas vezes. Desde que pudesse finalmente ter paz.

Marcellus, que tinha subido as escadas no fundo da sala, apareceu descendo em seguida, trazendo algo enrolado em um lenço azul. Ele se aproximou de Praxis, desenrolando o lenço em mãos e mostrando um único cristal de terrígeno dentro, novinho em folha. Perfeito. Tudo o que ela precisava.

Os dois não falaram nada, não foi necessário. Ela entregou o dinheiro e pegou o cristal, olhando-o mais de perto para analisar a veracidade da mercadoria enquanto Marcellus contava as notas de dinheiro. O cristal era mesmo verídico e, satisfeita, ela o enrolou no lenço e o guardou de volta dentro do sobretudo.

Parte dela se perguntou se devia alertar Marcellus sobre o perigo que estava correndo, mas não queria estragar mais ainda as coisas para seu marido do que já tinha conseguido estragar. Marcellus devia chegar sozinho à conclusão de que estava correndo risco. Não era possível que precisaria de alguém que o dissesse.

Ele tinha, porém, sido ganancioso ou descuidado o bastante para vender um cristal no mesmo dia em que tinha sido descoberto, e não parecia estar preocupado com a possibilidade de ela ser uma espiã. Bem, paciência. Como tinha concluído os negócios, não era problema seu.

— Obrigada — agradeceu apenas, indo até a saída da casa.

Ela deu uma última olhada na fachada da casa depois de sair, antes de seguir seu caminho para o ponto de ônibus. O caminho de volta para a casa foi um caminho de ansiedade e angústia, com Praxis se perguntando, em quase desespero, se Aurelius teria percebido sua saída, se seria descoberta ao voltar, se conseguiria sair novamente… Não sabia. Não fazia ideia.

A mulher chegou em casa quando já estava mais perto de ser dia do que noite. Ela caminhou para dentro sem os sapatos, tentando não fazer barulho, e seguiu em silêncio de volta para seu quarto, abrindo a porta com muito cuidado.

Aurelius estava adormecido. Apesar de não estar na exata mesma posição de quando se deitou, parecia tão tranquilo dormindo que era quase impensável imaginar que ele teria acordado em algum ponto. Praxis começou a guardar o sobretudo e vestir seu pijama, tendo o cuidado de esconder o cristal de terrígeno onde devia antes de ir enfim se deitar.

Sim, havia considerado pegar a mala que tinha deixado pronta e ir embora, já, imediatamente. Mas não conseguiu. Imaginou Aurelius acordando na manhã seguinte, não a encontrando ao seu lado e depois não a encontrando em lugar algum. E, um bom tempo depois, descobrindo que ela tinha partido e o deixado sem sequer dizer adeus.

Por algum motivo, teve certeza, isso partiria o coração dele. Não podia fazer isso agora. Não agora. Só mais um pouco…

Ela voltou para a cama e se deitou ao lado do marido, perguntando-se, honestamente, onde toda essa situação a levaria.


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Notas finais do capítulo

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Considere favoritar essa fic e Homem de Gelo também. Vai deixar meu coração bem quentinho ♥

Além dessa, tenho vagas também para uma interativa original sobre revoltas civis. Acesse aqui:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-rosa-do-tempo--interativa-19350882/

Considere também dar uma olhada nas minhas outras histórias? :D Eu tenho coisas para vários gostos ^^

Leia a duologia Hunters! Comece aqui: https://fanfiction.com.br/historia/771022/Hunters_Hunters_1/

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