S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) escrita por scararmst


Capítulo 14
Uma Questão de Sangue




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Theo tinha se acostumado às suas sessões de treino com Hunter. Não sabia dizer exatamente em que ponto tinha se tornado um hábito, mas ia para a sala de treinamento quase todos os dias, e quando o fazia, Hunter acabava aparecendo e se juntando a ele. Não achava que fosse coincidência; não era tão burro assim. Hunter com certeza vinha o vigiando de certa forma, apenas o suficiente para estar por perto e fazer companhia casual para o garoto se ele assim aceitasse.

E se a intenção de Hunter era fazer Theo se acostumar com a presença dele a ponto de achar estranho e até triste quando o mercenário não estava lá, tinha conseguido. Por recomendações médicas, Hunter tinha de ficar alguns dias longe de exercícios físicos pesados para não abrir os pontos, e ele pareceu ter entendido “pesados” como “qualquer um”, usando o seu tiro de raspão como desculpa para ficar o dia inteiro sentado no sofá da sala jogando video-game com, na maior parte das vezes, Erasmus.

E, tudo bem, Theo não queria Hunter treinando com ele agora, não se a recomendação era que ele não fizesse esforço que pudesse arriscar abrir os pontos todos, mas não podia deixar de se sentir solitário com a situação. Talvez por isso tivesse ficado aliviado quando Clint entrou na sala de treinamento, tão casualmente quanto Hunter, pegou as almofadas de treino e subiu no tatame, segurando-as para o garoto praticar do mesmo jeito que Hunter fazia.

Theo não era iludido para achar que Hunter teria conversado com Clint sobre isso; os dois só se falavam quando necessário e geralmente era para se bicar de alguma forma, então só podia querer dizer que Clint também vinha o observando. Não se aproximava por querer evitar contato com Hunter como se o homem fosse a própria praga, mas ainda assim, observando. A sensação de proteção que vinha disso também vinha acompanhada de uma boa dose de irritabilidade: não queria ser tratado como uma criança. Mas, por outro lado, preferia isso a estar sozinho, então deixou passar.

Clint tinha um estilo de movimento diferente de Hunter. Enquanto o mercenário havia claramente aperfeiçoado sua luta para se aproximar mais do boxe e de golpes pesados, Clint era mais ágil, tático e esguio, algo que Theo imaginava ser resultado dos anos no circo e depois do treinamento ninja — bom, claro que tinha lido a ficha dele, como não teria ficado curioso? Enfim, era uma mudança interessante, que acabou forçando Theo a ficar criativo e improvisar em alguns movimentos para manter a luta fluindo. No fim das contas, depois de uma boa hora de uma atividade com menos força e mais agilidade a que Theo estava acostumado, ele se sentiu bastante cansado, e decidiu parar para sentar um pouco.

— Você se move bem — Clint elogiou, pegando sua garrafa d’água e se sentando ao lado dele. — Aprendeu nos Purificadores?

— Você leu minha ficha? — Theo perguntou, sua respiração saindo forçada e exausta no meio das palavras, intercalada com goles largos de sua garrafa de água.

— Mas é claro. Que tipo de agente se junta a uma equipe onde se não conhece ninguém e não lê as fichas das pessoas?

Theo engasgou, tossindo um pouco da água que vinha engolindo e sentindo Clint dar tapas pesados nas costas dele em seguida. Verdade, que tipo de agente, não é mesmo?

— Mais ou menos. Meu pai me ensinou, e sim, ele era um dos Purificadores, então acho que a resposta seria sim… Mas ele começou a me ensinar quando eu era muito criança, anos antes da organização sequer existir, que dirá eu fazer parte dela. Agora eu acho que já faz uns oito anos que eu tenho de prática com isso.

O garoto pensou que Clint ficaria surpreso ao ouvir que tinha começado a treinar antes dos dez, mas isso foi só até lembrar que o próprio Gavião-Arqueiro tinha tido um começo muito jovem, tanto quanto ele. Era provável que Clint o entendesse nesse aspecto. Isso era algo diferente para ele. Naquele momento, percebeu que Clint era a pessoa quem conhecia mais próxima de representar quem ele seria vários anos no futuro. E embora fosse incrível pensar em se tornar um Vingador como ele, não soube, de imediato, como a ideia o fez se sentir.

— É bastante tempo — Clint respondeu, enfim. — Você viveu uma vida inteira. E tem quantos anos, dezesseis?

— Dezessete, desde duas semanas atrás.

Clint abaixou a garrafa da água, encarando Theo com surpresa.

— Duas semanas? Quer dizer… Foi seu aniversário? Por que não falou nada? Teríamos comprado um bolo pra você…

— Tudo bem. Eu pedi a Mack pra não comentar. Não queria comemorar esse ano. Eu fiquei vendo filmes com a Niko e o Eras, foi divertido. Não se preocupe com isso.

Mas Clint pareceu se preocupar, pois a expressão dele não se atenuou. Theo pensou que seria melhor não prestar atenção; talvez, se fingisse que não tinha percebido o muito óbvio desagrado dele, Clint não comentaria mais nada. Porém, descobriu muito rápido, Clint era persistente como uma britadeira.

— Isso não está me soando muito bom. Você tem dezessete anos. Devia estar aproveitando diversões com seus amigos, odiar fazer dever de casa e fazer seus responsáveis perderem os fios de cabelo da cabeça por causa das suas adolescentisses. Em vez disso eu te vejo aqui na sala de treino quase todos os dias. Já vi esse comportamento antes. Em verdade, eu já o reproduzi, e muito. Não sei o que você está tentando manter longe da sua cabeça, mas tem algumas coisas que só vão embora quando a gente fala ou faz algo sobre elas.

Falar. De novo. Theo suspirou, recostando para trás em sua cadeira e pensando que eventualmente Mack acharia uma ótima ideia levar um psicólogo para a base e forçar todo mundo em uma terapia se as coisas seguissem daquele jeito. E Clint tinha razão, Theo vinha evitando falar sobre as coisas. Tinha engasgado até não poder mais para confessar para Niko, alguém que com certeza já tinha ciência sobre o assunto, de que estava apaixonado por Damon. Sabia que isso não era saudável e que precisava começar a colocar as coisas para fora. Não tinha conseguido fazer isso antes, e não tinha tentado de novo. Nem queria, por mais que precisasse.

— Está afim de fazer uma aposta? — Clint perguntou em seguida, levantando-se.

Essa era uma mudança súbita de assunto. Theo franziu a testa, perguntando-se onde o homem estava indo com aquilo, e se levantando também.

— Que tipo de aposta?

— Você disse que queria filmar o tiro do Robin Hood pra mandar pra um amigo. Eu posso fazer aqui pra você. Se eu acertar, você conversa comigo.

Theo riu anasalado, balançando a cabeça. De novo essa coisa do tiro do Robin Hood.

— Não dá pra fazer esse tiro, é impossível.

— Então você não tem nada a perder, não é?

Ótimo, agora seu orgulho estava em jogo. Não podia recusar depois dessa.

— Ok. Vamos então.

Clint pediu um segundo para buscar seu arco, e Theo deixou a sala de treinamento, seguindo para a área de tiro. O agente não demorou a voltar, trazendo seu arco e duas flechas, uma com penas azuis e uma com penas vermelhas. Ele parecia muito confiante de que não ia errar. De repente, Theo sentiu que não devia ter feito aposta nenhuma, nem com Damon e nem com Clint, mas era tarde. Ele pegou o celular, incrédulo, e começou a filmar.

— Tem alguns segredos — Clint começou, colocando a flecha de pena azul no arco e o armando. — Pra começar, você precisa acertar o primeiro tiro em um ângulo o mais reto possível ou sua vida vai ficar bem complicada depois.

Ele soltou a flecha tão rápido que quando Theo acompanhou o que tinha acontecido, esta já estava fincada no alvo. Daquela distância, Theo não conseguiu conferir o ângulo da flecha, mas Clint devia estar confiante do que fez, pois não demorou a armar a segunda no arco.

— Agora, importante — ele continuou. — Eu uso flecha de qualidade. Ela não vai partir ao meio igual a do Robin, é resistente demais pra isso.

— E como eu vou saber que você acertou?

Clint apontou para as penas vermelhas na flecha que segurava, e a armou no arco. Theo franziu a testa, focando-se na cor das penas e assistindo Clint armar o arco. O homem respirou fundo uma única vez e atirou.

Na hora, Theo não percebeu o que aconteceu. Ele só ouviu um barulho de acerto e depois viu uma flecha cair no chão, o que o fez imaginar que Clint teria errado.

Mas Clint não errava nunca, não é? Observando melhor, Theo reparou que a flecha de penas vermelhas estava agora fincada no alvo, e a azul tinha caído no chão. Clint tinha acertado o tiro com perfeição: a segunda flecha atirada empurrou a primeira para trás até que esta atravessasse o alvo e caísse do outro lado.

— Tá bom assim pra você? — O Vingador perguntou, provocando e dando tapinhas nas costas de Theo.

Impressionante. Não podia ser sério, quer dizer… Não devia ser possível. Mas era, tinha acabado de ver. Não podia mostrar esse vídeo nunca para Damon, não queria perder dinheiro. Não queria perder nada, mas agora já tinha perdido alguma coisa.

— O que você quer saber? — Theo perguntou, recostando-se contra a bancada do corredor de tiro onde estavam. — Você leu minha ficha. Meu pai matou minha mãe, eu estava nos Purificadores, saí e vim para cá. É isto.

— Sim, isso é o que aconteceu. Mas e você? Quer dizer… Seu sentimentos.

Sentimentos. Claro. Theo suspirou e deu de ombros, passando a mão pelo rosto em seguida quase em um gesto de desistência. Sentimentos.

— Me sinto uma bosta. Tenho ódio do meu pai, e não posso fazer nada sobre isso, porque ele está morto. Sinto falta da mãe que nunca tive e nunca vou ter, porque ela também morreu. Para coroar, eu posso ser gay, uma coisa que eu abominei a vida toda. Ou bi. Eu descobri essa semana que bi é uma coisa mesmo e não uma desculpa que homem gay usa pra não falar que é gay, então como pode perceber, eu não sei o que está acontecendo nesse quesito também.

— Hum. Ok, vou te fazer umas perguntas, tudo bem?

— Vá em frente — Tinha começado a falar de qualquer forma, umas perguntinhas a mais ou a menos não fariam diferença, não é?

— Seu pai matou sua mãe por causa de ideologias anti-mutantes supremacistas, o tipo de coisa que alimentou a criação dos Purificadores, certo?

— Certo.

— Você conheceu o garoto com quem começou a questionar sua sexualidade nos Purificadores?

— Ah, sim.

— Suas habilidades de combate que você treina todos os dias, conhecimento de sniper que usou semana passada, tudo isso foi seu pai e os Purificadores?

— É.

— Isso foi o que te trouxe para cá, não é? Suas habilidades aprendidas pro grupo e o seu histórico com eles?

— De certa forma.

— E Niko, sua melhor amiga, também veio de lá?

— Veio sim.

Clint suspirou, começando a dobrar o arco para o guardar de volta.

— Theodore, tudo o que você faz na sua vida hoje é algum resto de uma parte dela que você gostaria de esquecer. Assim vai ficar mais complicado mesmo para você seguir em frente.

Oh.

Theo piscou os olhos, surpreso. Sim, sabia que não conseguia parar de pensar em tudo de ruim que havia acontecido, e em como sua vida tinha mudado, mas não percebera até aquele instante que estava tentando mudar sua vida enquanto fazia as exatas mesmas coisas de antes.

— Minha nossa… Eu não tinha percebido. Eu… O que eu faço?

— Arrume um hobby. Algo que não tenha absolutamente nada a ver com seu histórico de soldado. Quando eu fui tentar isso comecei por golfe, o que foi bem sem graça porque eu nunca errei uma tacada naquilo. Então decidi mudar completamente e fui seguir outra coisa que eu gosto. Agora, me voluntario em um abrigo de animais na Califórnia. Hobbies são importantes, são o tipo de coisa que você pode fazer sem pensar em problemas da sua vida ou em coisas relevantes. Algo que te relaxe e te distraia.

Ah, claro. Uma distração. Até então, Theo tinha pensado em encontrar um passatempo justamente por ter percebido que não tinha nada de diferente para fazer, mas não tinha de fato procurado. Tinha negligenciado o assunto, afinal, não devia ser importante com todo o resto acontecendo não é?

Bem, de certo era. Ele suspirou, abrindo um sorriso de agradecimento. Era melhor começar sua busca.

— Obrigado.

— Disponha. Agora, se me dá licença, eu preciso de um banho. Nos vemos mais tarde, ok?

Clint acenou para ele e foi deixando a área de tiro. No local, Theo encarou o vídeo em seu celular mais uma vez, pensando no que fazer com ele. Enviar? Apagar?

Acabou apenas guardando o celular no bolso mais uma vez.

[...]

Niko foi obrigada a constatar que talvez, só talvez, estivesse ficando louca. Ou burra. Ou as duas coisas. Ela esfregou os olhos, resmungando e balançando os pés, irritada. Queria chutar alguma coisa. Ou alguém. Talvez decidisse chutar alguém.

Ela respirou fundo, levantando o rosto para o computador pela milésima vez e conferindo os números digitados na planilha de inventário da S.H.I.E.L.D.. Já tinha os conferido duas vezes, mas talvez a terceira vez fosse dar sorte, não é?

Não deu. Por Ewa, o que carambas estava fazendo de errado? A conta ainda não batia. Ao menos não com o que tinha contado na geladeira, então talvez devesse contar de novo. Talvez algumas bolsas de sangue tivessem caído atrás dela, ou colocadas por engano em outra geladeira. Só precisava contar de novo e procurar melhor.

Mas o resultado não mudou. Ela revirou a geladeira de bolsas inteira, contando tudo de novo, quantas bolsas de cada tipo, onde estavam, e a contagem era sempre a mesma. Abriu todos os freezers e geladeiras do laboratório, perguntando-se se algum idiota iliterado teria as guardado no lugar errado, mas não.

A verdade, que ela começou a entender que precisava aceitar, é que tinham a saída de uma bolsa de sangue registrada nos últimos dias — uma doação para Hunter terminar de se recuperar do tiro —, mas que três estavam faltando desde a última contagem.

Duas bolsas de sangue tinham evaporado no ar. Quando contou a primeira discrepância, no inventário do mês anterior, chegou a pensar que alguém pudesse estar as roubando para vender no mercado negro, então se forçou a assistir a horas e horas de filmagens das câmeras de segurança do laboratório e não encontrou absolutamente nada. Ninguém tinha entrado no lugar. As bolsas tinham literalmente desaparecido.

— Bobbi — ela chamou, enfim. Odiava não terminar o próprio trabalho, mas a essa altura, estava sem opções. Não sabia mais o que fazer. — O inventário está errado de novo.

De novo? — A loira perguntou, afastando-se da mesa vários metros para a frente onde estava analisando uma amostra de cristal de terrígeno com o microscópio.

Desde o retorno da equipe da missão de compra, Agnes tinha se mudado para o laboratório para analisar a bomba e como ela funcionava, e Bobbi geralmente trabalhava com ela, analisando o terrígeno. O fato tinha aumentado ainda mais a quantidade de trabalho chato para Niko, trabalho esse que estava ainda mais insuportável agora que tinha decidido se rebelar. De todas as dores de cabeça prováveis que ela esperava ao fazer inventário, realmente não queria que o inventário sendo teimoso com ela fosse uma delas.

Bobbi deixou Agnes na mesa continuando seu trabalho sozinha e foi até Niko. Cansada como estava, a garota se recostou na cadeira e decidiu apenas esperar enquanto Bobbi contava tudo; talvez tivesse feito a conta errada no fim das contas e não conseguisse perceber por exaustão. Ela esperou, e esperou, e esperou enquanto Bobbi levava um tablet até a geladeira e fazia contas e mais contas por conta própria.

Finalmente, a agente voltou até Niko, largou o tablet na mesa, apoiou uma mão no tampo e a outra na cintura e suspirou.

— Você tem razão. Temos um problema.

Ah, então tinha razão. Tinha mesmo coisa desaparecendo da base, como se levadas por um fantasma. Ótimo, problema identificado. Mas isso não explicava como vinha acontecendo.

— Eu chequei as câmeras de segurança — Niko continuou. — Ninguém entrou aqui quando o laboratório estava vazio, eu olhei.

Bobbi suspirou, recolhendo o tablet da mesa e começando a fiscalizar algumas anotações.

— Vamos fazer o seguinte — ela continuou. — Adrian quer ver você e Theodore. Por que não vai buscá-lo e vai conversar com ele, e nesse meio tempo eu dou uma olhada em tudo aqui e vejo se consigo descobrir alguma coisa?

Uma folga do inventário? Não precisava pedir duas vezes. Niko se levantou de uma vez, pegando o celular na mesa e se espreguiçando.

— Boa sorte. Eu honestamente não sei mais o que fazer sobre isso.

Mas para sua sorte, não era mais problema seu. Ela acenou para Bobbi e deixou o laboratório muito satisfeita com sua nova incumbência.

Pelo horário, Theo deveria estar em um de dois lugares: sala de treino ou seu quarto. Ela passou pela sala bem rapidamente, enfiando a cabeça pelo batente da porta e constatando a ausência do amigo. Assim, sem hesitar virou o corredor, caminhando até os quartos dos agentes.

Ela acertou ao prever que Theo estaria em seu quarto. A garota bateu na porta de maneira suave, e recebeu um “pode entrar” distraído como resposta no mesmo instante. A porta se abriu, devagar, e ela entrou, vendo um sorriso se abrir no rosto de Theo ao perceber que a visitante era ela.

— Olá — ele cumprimentou, deixando Niko entrar e fechando a porta em seguida.

— Olá — ela respondeu. — Adrian quer ver a gente.

E, como Niko tinha esperado, Theo bufou, muito decepcionado com a notícia. Ele largou o lápis que estava usando para anotar algo e apertou uma tecla em seu notebook, pausando um vídeo o qual Niko não tinha ainda identificado do que se tratava. Um pouco curiosa, ela deu a volta na mesa, encarando o computador de frente e vendo se tratar de um vídeo aleatório sobre “dez hobbies criativos para você experimentar”. No caderninho ao lado de Theo, ele tinha anotado uma lista curta, e  riscado mais da metade das palavras.

Era ótimo que ele estivesse pensando em fazer algo para se distrair, e Niko não queria atrapalhar o provável fluxo saudável daquela atividade, então decidiu não dizer nada sobre o que ele estava fazendo, pensando que provocá-lo poderia fazê-lo desistir da ideia, mesmo que fosse uma brincadeirinha padrão entre eles. Se Theo quisesse falar sobre, deixaria ele falar.

No fim das contas, talvez Niko não tivesse sido tão discreta ao observar a tela e o caderninho de Theo, porque o garoto pareceu se sentir em algum tipo de necessidade de dar explicações.

— Eu já estava pensando em arrumar algo para fazer. Algo diferente, sabe, que não tivesse nada a ver com as outras coisas todas de Purificador e agente secreto. E daí Clint me deu o mesmo conselho hoje, então não sei, acaba meio que parecendo um sinal.

Niko tinha que concordar. Ficar o tempo todo pensando em luta, briga, guerra, e qualquer coisa relacionada, não fazia nada bem para a saúde mental a longo prazo. Nem a curto prazo, sinceramente.

— Clint tem razão. Eu, por exemplo, cozinho quando quero me distrair. Um dia desses mesmo estava olhando ingredientes pra fazer um pudim de malva aqui na base, é uma delícia, fiquei até com vontade agora que falei — ela respondeu, decidindo que dividir seu próprio hobby com Theo poderia ser uma forma eficaz de animá-lo em relação ao que ele mesmo estava tentando descobrir. Um leve incentivo. — O que andou considerando aí?

Theo pegou o caderninho na mesa, entregando-o para a amiga ler. Nas opções riscadas, ela conseguiu ler “confeitaria”, “desenho”, “pescaria” e “badminton”. Em aberto, estava marcenaria.

Niko olhou para Theo por um instante, imaginando-o fazendo esculturas em madeira e passando verniz num móvel recém-construído. Parecia estranhamente o tipo de coisa que combinaria com ele.

— Acho que você está indo bem — ela comentou, devolvendo o caderninho. — Quando descobrir algo interessante, tente um pouco e vê se te agrada.

— É… Acho que vou procurar um curso de escultura em madeira. Vamos ver.

O garoto fechou o caderninho e abaixou a tampa do notebook, levantando-se da cadeira desanimado.

— Vamos logo ver o que Adrian quer, quanto antes a gente for, antes eu vou estar de volta.

Niko pensou se deveria mencionar a relutância de Theo em concluir seus assuntos em aberto. Já fazia um bom tempo, ele deveria estar fazendo as pazes com a ideia de conseguir seu desfecho. Ela chegou a abrir a boca, mas não disse nada, achando melhor verem primeiro o que Adrian queria com eles. Talvez Theo ainda tivesse mais tempo para pensar, e então não haveria motivo para pressioná-lo a tomar sua decisão ainda mais.

Uma coisa de cada vez. Vinha exercitando muito sua paciência ultimamente, até porque o seu caso mesmo era muito complicado, e tudo o que ela podia fazer era esperar e torcer para tudo dar certo. Quem sabe não teria começado a dar?

[...]

Adrian esfregou as têmporas, abaixando a cabeça e encarando o tampo da mesa enquanto esperava. Havia muito barulho na base. Pessoas andando para todos os lados, conversando, gritando, lutando, jogando video-games ou reagindo em voz muito alta a partidas de futebol. Adrian sempre teve medo de se tornar o adulto rabugento que reclamava da felicidade alheia, sendo uma pessoa tão leve e de espírito tão jovem, mas estava ficando no mínimo complicado manter o bom humor em um lugar tão vívido como aquele quando o menor dos ruídos fazia seus ouvidos chiarem.

A boa notícia era que o efeito colateral vinha reduzindo; a má notícia era que o fazia muito devagar. Adrian percebeu que precisava usar os tampões repressores de Yo-Yo por menos tempo nos últimos tempos, e que conseguia ficar em ambientes silenciosos sem pequenos ruídos o incomodarem. O problema era que o ruído ambiente daquele lugar era estrondoso, e por isso, depois de um dia inteiro com os tampões, sua cabeça tinha começado a doer. Quando essa reunião acabasse, iria direto para o seu quarto, conversar com o filho e depois ir dormir. Já estava tarde, de qualquer forma. Ninguém estranharia se fosse se deitar àquela hora.

Talvez por pena ou empatia do universo, Theodore e Iniko não demoraram para entrar pela porta do pequeno escritório. Excelente. Quanto antes terminasse com aquilo, antes poderia ir para a paz e o silêncio de sua cama, então lhe agradava muito que ambos tivessem sido pontuais. Ele esperou os dois se sentarem à sua frente e pegou as duas pastas, entregando-as para os respectivos donos.

— Parabéns. Os trâmites legais acabaram e vocês estão oficialmente inocentados e removidos de qualquer acusação. Não precisaram nem dar depoimento porque não foram acusados, portanto não foram réus de nada.

Iniko abriu um sorriso muito largo. Theo não pareceu tão empolgado quanto ela, folheando a pasta com certo desinteresse no assunto.

— Agora, se se lembram do que conversamos quando cheguei aqui, esse era o último empecilho no seu caso, Theo. Tudo o que falta é você pegar essa documentação que eu preparei, assinar e levar para ser autenticada em um cartório de Glasgow.

O garoto apenas fez que sim com a cabeça, fechando a pasta em seguida e não falando mais nada. Nem um obrigado. Adrian teria ficado ofendido se já não tivesse percebido o quanto essa herança era muito mais uma dor de cabeça do que uma solução para o garoto.

— Os documentos não têm validade, então pode tomar seu tempo — Adrian decidiu completar, achando melhor deixar Theo se virar com seus próprios pensamentos. — Agora, Iniko. Como eu comentei, houve muita bagunça burocrática nas coisas do seu nome, lembra?

— Lembro — ela respondeu firme, também folheando seus papeis. Parecia muito mais interessada neles, e até ansiosa por algo, como uma boa notícia.

— A boa notícia é que eu quase terminei de investigar a situação. Seus documentos não estão prontos ainda, trouxe apenas para você ter uma noção do que eu tenho feito. Como os trâmites legais acabaram e os Purificadores foram presos e todo o resto, já foi determinado que tudo o que eles tomaram de várias pessoas volte a seus legítimos donos, o que no caso, é você. Para isso, você precisa de uma documentação muito detalhada, mostrando todas as empresas que eram suas, como foram fundidas ou destruídas, o valor delas e mais um monte de outros detalhes. Tendo essa documentação pronta, vai ser caso de submeter para análise e esperar o veredicto. Eu estou quase lá, só falta mais um pouco e você vai poder fazer isso também.

A garota alargou o sorriso, devolvendo a pasta parcialmente completa para Adrian.

— Muito obrigada. De verdade, eu… Isso é muito importante pra mim.

E ali estava parte do motivo pelo qual Adrian tinha se tornado advogado. Niko parecia tão feliz e aliviada que naquele exato momento todo o trabalho e o estresse envolvido em fazer esse bendito rastreio de posses valeu a pena.

— É meu trabalho, Iniko, não é nada de mais — ele respondeu, levantando-se e pegando a pasta com os documentos dela de volta. — Acredito que posso te entregar isso pronto muito em breve. E quanto a você, Theodore, Mack está disponível para te mandar para Glasgow em um quinjet assim que for do seu interesse.

Ter se levantado era um ótimo sinal de que a conversa tinha terminado, e levou Iniko e Theodore a se levantarem também.

— Está tudo indo muito bem se querem saber, até melhor que o esperado — Adrian comentou, enquanto os guiava muito sutilmente para fora da sala. — Diria que esse é o melhor resultado possível para a situação.

Ele apagou a luz e fechou a porta da sala, já prontinho para ir, quase correndo para seu quarto.

— Obrigada mais uma vez — Iniko repetiu. — Se eu puder fazer algo para retribuir…

— Não se preocupe com isso, vão aproveitar o resto de seu dia, vocês dois. Eu vou me deitar mais cedo por hoje. Boa noite!

E a menção a ir se deitar com o desejo de boa noite foi o necessário para eles desejarem boa noite de volta e darem as costas, tudo o que Adrian queria naquele momento. O homem quase correu para seu quarto, torcendo para ninguém o parar para algo importante no corredor e ficando muito feliz quando isso não aconteceu. Ele fechou a porta do quarto, já afrouxando a gravata e discando o número de seu filho às pressas no celular.

Trevor atendeu quando Adrian estava a meio caminho de terminar de tirar o terno e pegar o pijama debaixo da cama. O “alô” do garoto foi um pouco sonolento, o que era surpresa para Adrian considerando como ele tinha tido todos aqueles problemas para ir dormir na hora certa de noite. Se o horário de sono de seu filho finalmente estava entrando nos eixos, não era Adrian quem ia atrapalhar. Ele decidiu conversar o quão rápido quanto poderia para não despertar o filho demais.

— Ei Trevor, é o papai. Tudo bom com você? Estava indo dormir?

— Quase — ele respondeu com a mesma voz de antes. — Vovó está vindo medir minha glicose antes, mas já me deitei.

Dormindo cedo. Quem diria! Aleluia! Milagres aconteciam mesmo, graças a Deus. Adrian decidiu que colocaria uma prece a mais em suas orações noturnas, agora para agradecer à sua mãe por ter operado um milagre na rotina de dormir de seu filho.

— Ah, muito bom. Isso mesmo, obedeça sua avó.

— Ela é legal. Mas eu tô com saudade de você.

Adrian fez um esforço muito hercúleo para não suspirar. É claro que estava. Ele também estava com o coração partido de ter de ficar longe do filho daquela forma, e essas chamadas ocasionais não estavam sendo nem de perto o suficiente para preencher o vazio que sentia por estar longe dele daquele jeito. Era melhor que nada? Sim. Mas ainda era muito pouco.

— Eu sei, meu anjo. Eu também.

Ele precisou muito segurar a língua para não dizer a Trevor que estava terminando seu trabalho porque, percebeu, mesmo que estivesse terminando, não queria dizer que poderia ir embora. Talvez tivesse de ficar ali mais tempo, ganhar mais dinheiro, adotar aquele emprego como algo mais fixo e duradouro, não só pelo salário que precisava para criar o filho, mas também por ainda não entender suas habilidades por completo. Felizmente, nunca tinha prometido a Trevor que estaria de volta em algum momento em específico, então não havia expectativa para quebrar ou coração para partir. Era melhor assim.

— Assim que puder, eu vou passar outro fim de semana aí, ok? Acho que vou poder em breve.

Isso ele podia prometer. Se terminasse os documentos de Iniko, poderia pegar um fim de semana em Nova York, talvez até férias inteiras. Ao menos tentaria. Mack sempre tinha se mostrado muito compreensivo com a situação de Adrian com Trevor, e parecia gostar muito de crianças. Tinha certeza que ao menos uma folga era negociável.

— Quando você vier a gente pode ir no estádio ver um jogo dos Giants? Eu tô com saudade de ir também…

Um estádio? Adrian quase sentiu a cabeça doer por antecipação com o barulho. Mas Trevor queria ir… Com certeza poderia pensar em algo e dar um jeito, não é?

— Vou tentar arrumar a folga pra ser em dia de jogo, ok?

— Tá bom.

Houve uma breve pausa, na qual Adrian ouviu com muita clareza, mesmo através do telefone, a porta do quarto de Trevor se abrir e a sua mãe entrar nele para terminar de preparar o garoto para dormir.

— Vovó chegou — o garoto disse, sem saber, é claro, que Adrian tinha percebido. — Boa noite, papai. Depois a gente fala mais, viu?

— Falamos, sim. Te amo. Boa noite, dorme com Deus.

— Boa noite. Te amo também.

E a chamada caiu. Realmente, eram muito curtas e não preenchiam o vazio no peito de Adrian. Ajudavam, mas não preenchiam.

Cansado e ainda com a cabeça um pouco dolorosa, ele tirou por fim os tampões, sentindo como se de repente alguma força invisível parasse de apertar sua cabeça. Respirou fundo, aproveitando o alívio e o silêncio de seu quarto vazio, apagou as luzes, deitou-se e  fechou os olhos para dormir o que esperava ser uma noite longa, relaxante, confortável e sem distúrbios.

Mas não foi.

Adrian se levantou por volta das três da manhã. Levantou apenas, pois podia-se fazer um argumento muito consistente de que não tinha acordado. Ele saiu do quarto, de pijamas, descalço, arrastando os pés pelo chão da base e sabendo exatamente para onde ir, mesmo antes da luz automática dos corredores se acender.

Em passos lentos, ele seguiu até o laboratório. Se estivesse acordado, com consciência do que estava fazendo, talvez sentisse alguma culpa; afinal, já era conhecimento quase geral o estresse que Niko vinha tendo com inventário. Mas não estava acordado. E não se importava.

Adrian entrou no laboratório e se dirigiu diretamente para a geladeira onde se guardavam as bolsas de sangue.


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Notas finais do capítulo

Link pro grupo de whatsapp: https://chat.whatsapp.com/DrHNqXKPp8cBfLb7UGgbAL

Considere favoritar essa fic e Homem de Gelo também. Vai deixar meu coração bem quentinho ♥

Além dessa, tenho vagas também para uma interativa original sobre revoltas civis. Acesse aqui:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-rosa-do-tempo--interativa-19350882/

Considere também dar uma olhada nas minhas outras histórias? :D Eu tenho coisas para vários gostos ^^

Leia a duologia Hunters! Comece aqui: https://fanfiction.com.br/historia/771022/Hunters_Hunters_1/

Leia minha original de fantasia urbana, Carmim! https://fanfiction.com.br/historia/787245/Carmim/

Leia minha fanfic de Harry Potter! https://fanfiction.com.br/historia/781763/Marcas_de_Guerra_Historias_de_Bruxos_1/
Fanfic 2 atualizando atualmente: https://fanfiction.com.br/historia/799894/Amargos_Recomecos_Historias_de_Bruxos_2/



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