Love is blue escrita por Lola


Capítulo 14
Capítulo 14 - Como se mata uma lembrança?




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Capítulo 14 – Como se mata uma lembrança?

“onde o sentido está contido?

contigo? comigo?  

onde andará o sentido?

sentado à beira do abismo?

abismado com tanto cinismo?

onde andará o sentido?

sentado no cais a ver navios?

no meio do mar à deriva?

onde o sentido se esquiva?”

Chacal.

 

Suponhamos que você fosse capaz de ver seu futuro, e entender através de um simples fechar de olhos, todas as implicações por detrás das inúmeras escolhas que já fez e ainda viria a fazer. Se você soubesse, você ficaria? Ficaria neste mesmo caminho, com as mesmas pessoas, e os mesmos sentimentos? Vamos pensar em tudo que já foi vivido, aqueles grandes momentos que sabemos terem sido os grandes divisores de água.

Doeu.

Sara sentiu a dor percorrer seu corpo, mas a conteve com seus lábios crispados e olhos serrados. Naquele momento, pensou, mudaria quase tudo, mesmo que muitas das escolhas não tenham partido dela. A maior parte de seus grandes momentos foram consequências de escolhas alheias – e lá estava ela. Mulher adulta, currículo impecável, algum dinheiro no banco, e um enorme passado para esquecer. Nenhuma solução mágica ou máquina do tempo que pudesse evitar todas as dores vividas e menos ainda salvar partes importantes de seu coração. Pouco a pouco Sara Sidle foi ficando pelo chão que caminhava, sem saber exatamente pra onde estava indo, tampando sem muito sucesso todas as faltas que sentia. Ao menos a pessoa na qual resultou, não era tão ruim.

A perita olhou para a jovem em sua frente – ela tinha ombros curvados e expressões duras. Tão familiar. Cabelos pretos e rebeldes soltos no limiar dos ombros, provavelmente com uma idade biológica nada semelhante as marcas que o tempo de sofrimento lhe deixaram no rosto. Rançoso e seco, maltratado pelo destino, seu rosto era um livro sobre escolhas erradas. Cada vinco ao redor de seus olhos acompanhados pela falta de brilho, eram evidências tão irrefutáveis e fidedignas quanto uma impressão digital perfeita. Sara não precisaria ir muito além daqueles olhos sem vida para entender tudo o que aconteceu naquela noite. Ela mesma já viu aqueles olhos – em sua mãe.

— Sara, você está bem?

— Estou.

Não havia muita convicção em sua voz. Mas Brass não insistiu. Já havia ouvido falar sobre os comportamentos estranhos de Sara diante casos como aquele. Nem mesmo ele lidava bem com aquilo.

— Você já terminou?

Sara manteve seus olhos presos na mulher de cabelos pretos. Seu nome era Anna. Uma chamada havia sido feita pela vizinha, que encontrou Anna sentada no gramado de frente sua casa, com as mãos cheias de sangue. Ela não falou muito para ninguém. A única frase realmente clara em seus lábios era: “Eu matei meu marido, agora podemos viver em paz”. Uma varredura havia sido feita em sua residência, e encontraram o marido morto na cozinha, com inúmeras facadas no peito. As evidências não mentiam – mesmo que indicando autodefesa. No andar de cima, estava a filha e filho do casal, doze e nove anos, respectivamente. Anna continuava repetindo aquela frase, reverberando cada vez mais como somente agora eles poderiam ter paz.

— Ela disse mais alguma coisa? – Sara desviou seus olhos para Brass, mas logo voltou sua atenção para a mulher ensanguentada.

— Não, tudo que ela faz é repetir o que você já sabe – ele olhou algumas anotações em seu pequeno bloquinho de papel – Mas de acordo com a vizinha isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde.

Sara olhou para a viatura um pouco mais distante, vendo duas crianças chorosas acompanhadas de um policial jovem.

— Não existe realmente um trabalho aqui.

O tom de Sara era neutro, beirando a frieza. Mas o leve tremor em seus lábios entregavam qualquer sentimento que ela estivesse lutando para controlar. Seu peito parecia uma represa prestes e romper, e a CSI tinha medo do que poderia acontecer caso isso ocorresse. Ela precisava respirar, bem longe dali.

— Antes, quando eu estava na academia – Brass olhou para os olhos de Sara, buscando algum sinal de vida – eu costumava dizer que não havia motivo que compensasse um assassinato – uma risada triste escapou de seus lábios – até que me deparei com os casos de violência doméstica – Sara sentiu um gosto amargo em sua boca, um gosto que desceu por sua garganta de acordo que as palavras de Brass iam penetrando em sua consciência – mesmo com as consequências – ele olhou para as duas crianças junto do policial mais jovem – e mesmo que talvez houvessem outros meios de acabar com o sofrimento –

— Nem todos têm outros meios – Sara completou, sentindo uma pequena rachadura em sua represa particular, e como as lágrimas ameaçavam a cair através de suas pálpebras.

Brass colocou uma mão em seu ombro, uma forma de conforto silencioso – Acabei de receber outro chamado para um tiroteio em um supermercado – mudou o assunto – estou informando Grissom e o resto do pessoal. Quando você terminar aqui, imagino que não vai adiantar eu dizer para você ir pra casa.

Sara sorriu, ele estava certo – Ok, é só me passar as coordenadas e estarei lá assim que puder.

(...)

Um tiroteio dentro de um supermercado envolvendo dois policiais, isso era tudo que Sara precisava para respirar. Um campo seguro que levasse sua mente para longe de pensamentos que ela sabia serem perigosos. Um dos policiais relatou ter visto um suspeito que as evidências ainda não eram capazes de atestar – era um desafio. E o melhor era sobre o foco de Grissom, completamente afundado no trabalho, sem chances para que ele percebesse ou reclamasse de mais um turno dobrado.

— O que aconteceu com sua agressão em Henderson? – talvez ela tenha se enganado.

— Eu encerrei. Onde você precisa de mim? – Sara manteve os olhos fixos no corpo a sua frente, observando enquanto Warrick demarcava algumas evidências.

— Tem mais dois corpos ali perto das cervejas – Grissom respondeu.

— Estou indo.         

Sara não errou. Mas ela também não havia mentido para seu chefe – em partes.

Após a saída de Brass, Sara voltou ao laboratório para analisar as poucas evidências que coletou na cena do crime. O sangue nas mãos de Anna correspondiam com o do marido, a faca encontrada na cozinha tinha suas digitais, e mais do que isso, havia uma confissão. Mesmo ali, com sua atenção voltada para um novo caso, Sara ainda podia sentir o amargo em sua boca, e o calor por trás de seus olhos. Algumas lágrimas não puderam ser evitadas durante o caminho para a nova cena. O pior viria a noite, quando fosse dormir.

Engoliu seco, sentindo sua garganta apertar. Eram esses casos que a fazia questionar sua escolha profissional – porque fazer algo que a colocava tão exposta à lembranças cortantes e incapacitantes? Pontas soltas – tudo isso por causa de malditas pontas soltas em sua vida. Mas não seria hoje o dia de amarrá-las. Olhou para as várias folhas em branco a sua frente, pegou uma caneta e começou seu relatório. Cada palavra escrita era um novo corte através de seu peito, fazendo o calor atrás de seus olhos aumentar. Mas ela havia feito uma escolha dias atrás – no dia em que as palavras de Grissom na sala de confissão abriram seus olhos. Ela não mais perderia seu tempo através de divagações sobre seus sentimentos, menos ainda sofrendo por coisas ou pessoas que não davam a mínima para ela. De alguma maneira era preciso seguir em frente, mesmo que doesse a cada passo.

“Mulher caucasiana, 42 anos de idade...”

Incrível como os cenários poderiam se repetir várias e várias vezes por aí, na vida de milhares de desconhecidos, e mesmo assim, ainda nos sentirmos sozinhos, vivendo algo que ninguém jamais entenderia.

“Nove facadas dispostas ao longo do tórax... evidência de crime passional...”

Mesmo agora, diante uma dessas várias repetições, ainda não era possível tirar de seu peito o sentimento de solidão que todos os eventos em seu passado a faziam sentir.

“Violência doméstica... a suspeita confessou o crime imediatamente...”

Algumas feridas pareciam impossíveis de serem curadas. Nem mesmo o tempo conseguia amenizar o ardume provocado por elas, ou o amargo que insistia em retornar sempre que vinham a tona.

“As evidências coletadas no local corroboram com o depoimento da suspeita...”

Por um breve momento a caneta na mão de Sara parou sobre o papel, a e palavra justiça ficou pairando por seus pensamentos, incapacitando-a de continuar sua tarefa. Não havia justiça alguma neste trabalho que ela havia acabado de realizar. Tudo se resumia ao falso sepultamento de um agressor, que poderia estar morto fisicamente, mas iria continuar com suas agressões todas as vezes que fosse lembrado por aqueles que um dia viveram e presenciaram sua real natureza. As agressões e abusos continuariam. Ela sabia muito bem disso. E neste caso, faca nenhuma seria suficiente para matá-lo. Como se mata uma lembrança? 

— Tudo bem, Sara?

A morena levantou os olhos do papel, e pode sentir um leve tremor lhe subir pelo corpo.

— Hey, Greg – Sara forçou um sorriso, enquanto passava nervosamente a mão pelo rosto e cabelos – você não deveria estar em casa? O turno já acabou faz um tempo...

— Estava de saída, quando vi você e pensei em te convidar para um café – ele não pareceu notar o desconforto da amiga, pois continuou falando alegremente – Nick e Warrick já estão me esperando, eles disseram que vão me passar algumas dicas sobre estar em campo.

Um sorriso sincero desenhou os lábios de Sara. Aquele era o dom de Greg em sua vida, ele era capaz de fazê-la sentir-se bem até nos piores momentos – Olha só, logo logo estaremos trabalhando juntos – Sara começou a juntar seus papeis sobre a mesa, levantando-se – eu ainda preciso entregar isso ao Grissom, e acabei de sair de um duplo, então...

— Você vai passar o café – Greg terminou.

— O próximo é por minha conta.

— Não vou me esquecer de cobrar – ele piscou para ela e saiu animado da sala de reunião.

A morena o acompanhou com os olhos, sentindo a alegria que veio com Greg, também ir embora com sua saída. Suspirou pesadamente, pegando seus papeis e caminhando para o escritório de Grissom.

Seu estômago deu algumas cambalhotas de acordo que caminhava pelos corredores do laboratório. Fazia quase duas semanas que o caso Debbie Marlin havia sido encerrado. Quase duas semanas em que Sara evitou arduamente pensar sobre as palavras de Grissom, e o que elas realmente significavam. Já era doloroso demais não ser capaz de estancar os sentimentos que sempre a nocauteavam quando o via. Mas ela estava acostumada com coisas dolorosas, isso iria passar.

Parou diante a porta de seu chefe, e pode vê-lo concentrado em uma pilha de relatórios e livros. Parecia muito interessado em sua leitura, nem mesmo notando sua presença observando-o. Outra reviravolta em seu estômago. Por um instante as palavras de Grissom vieram de uma vez por sua mente, e o calor atrás de seus olhos retornou. Ela não havia chorado há duas semanas, não iria chorar agora. Mas porque era tão difícil aquele sentimento, porque era tão difícil entender e seguir em frente?

Duas leves batidinhas na porta – Tem um minuto?

Ela precisava interromper aqueles pensamentos, continuar com sua vida.

— Claro – retirou seus óculos em seu habitual ritual para ouvir alguém.

Sara foi até a mesa de Grissom e lhe entregou o relatório recém feito.

— Seu caso de agressão em Henderson?

— Sim.

Sara o viu abrir a pasta de papel pardo e passar os olhos atentos por seu relatório. Deu-se conta que aquela era a primeira vez que ficavam sozinhos desde o ocorrido na sala de interrogatório semanas atrás. Percebeu um fato óbvio, mas que sua consciência escolhera ignorar – que desde o caso Debbie eles não haviam trabalhado juntos. Ela estava sempre escolhendo trabalhar com Nick ou Warrick, até mesmo Catherine, mas nunca ele.

— Você está bem? – Sara foi tirada de seus pensamentos.

Ela o encarou e seus olhos se encontraram, praticamente colidiram.

— Porque eu não estaria? – havia um óbvio tom de desafio em sua voz.

Grissom voltou novamente seus olhos para o relatório – Brass comentou sobre este caso mais cedo.

Ela não respondeu. Não havia a necessidade de palavras.

— Você está bem? – ele perguntou novamente, mas sem olhar diretamente para seus olhos.

A expressão que dançou pelo rosto de Sara beirava a pura impaciência e frustração – Agora você quer saber?

— É meu dever saber como você está após um caso como esse, Sara.

— Dever?

Ele fechou os olhos brevemente, se repreendendo pela péssima escolha de palavras.

— Sara, eu...

— Você é apenas meu chefe, Grissom – Sara deu um passo para trás – é claro que esse é o seu dever.

Sem esperar por uma resposta, ela se retirou de sua sala. Não importava se estava sendo insubordinada, se estava exagerando ou se ainda não sabia lidar com a rejeição daquele homem. Tudo que ela precisava naquele momento era sair o mais rápido possível do laboratório e encontrar algo realmente bom para distraí-la. Ela não estaria chorando naquele dia, e nem em nenhum outro – especialmente por Grissom. 

No caminho para casa passou em um pequeno mercado para reabastecer sua geladeira. Enquanto caminhava pelos corredores pode sentir seu telefone vibrar. “Grissom” dizia o seu identificador de chamadas. Colocando o telefone de volta na bolsa, continuou seu caminho. Pegou algumas de suas coisas preferidas, um pouco de sorvete e frutas, mas especialmente, um número maior de cervejas que o habitual. Talvez aquilo a ajudasse a esquecer, pelo o menos naquela manhã.

 

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,

e vejo saírem de dentro dele as palavras que

ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco

com o álcool da memória, para que se

transformem num licor de remorso; outras,

guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,

a quem me perguntar o que significam.

Mas o silêncio de onde as palavras saíram

volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor

do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras

que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só

o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Autor desconhecido.


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