Por isso a gente acabou escrita por construindoversos


Capítulo 6
Capítulo 6




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/798500/chapter/6

Devolver isto me parte o coração, mas você já está de coração partido, então acho que ficamos quites. Bom, nunca mais vou querer olhar para Lottie Carson, por motivos óbvios, então, se eu não te devolvesse isto, ele ficaria definhando numa pilha de lixo por aí em vez de te olhar assim que você abrir a caixa e fazê-lo chorar com este sorrisão, este lindo sorriso, o amplo e famoso sorriso da Lottie Carson.

— Que foi? — você disse, e viu a senhora descer a quadra.

— Lottie Carson — falei.

— Quem é?

— Do filme.

— Sim, eu a vi no fundo. A do chapéu.

— Não, aquela é a Lottie Carson — falei. — Acho que é. Ela estava no filme. A Greta.

— É mesmo?

— É.

— Tem certeza?

— Não — falei. — Claro que não tenho certeza. Mas pode ser.

Demos a volta e você apertou os olhos e franziu o cenho.

— Ela não está nem um pouco parecida com o filme.

— Aquilo faz muitos e muitos anos — falei. — Você tem que usar a imaginação. Se for ela, quer dizer que ela entrou no Carnelian para se assistir, em fuga, e só nós sabemos disso.

— Se for ela — você repetiu. — Mas como você pode confirmar?

— Não tem como a gente confirmar — falei. — Não agora. Mas, sabe, eu tive um feeling lá. Durante o beijo no final.

Você sorriu e eu sabia em que beijo estava pensando.

— Você teve um feeling.

— Não esse beijo — falei, o feeling de novo, as nossas mãos segurando o meu cabelo carinhosamente para não cair nos nossos rostos. — O beijo no filme.

— Espera aí — você disse, e voltou ao cinema. A porta se fechou e eu o vi pelo vidro manchado como um filme fora de foco, uma cópia não restaurada. Você foi rapidinho na parede e se inclinou, aí, rápido, rápido, rápido, você voltou e saiu pela porta e me pegou pelo braço e nós atravessamos a Décima fora da faixa até a frente da lavanderia. Vi a hora no relógio na parede em cima do rack de roupas em que eles ficam mexendo para encontrar a sua. Vi que o filme era curto, que eu tinha bastante tempo antes de dizer para minha mãe que ia para casa e dizer para o Al que ia ligar para dar todos os detalhes. As roupas se mexiam como se fosse um teste de incêndio, enfileiradas e organizadas dando voltas nos plásticos, aí pararam e um vestido feio foi devolvido ao cliente num abraço amarrotador. Mas você me puxou pelo rosto, e sua mão tão quente em mim, e vi o que você queria me mostrar. "Cartazetes", é assim que chamam, sei por causa do Quando apagam as luzes: pequena história ilustrada do cinema, você tinha afanado o cartazete do Carnelian. É de verdade, vintage, você vê pela tinta, enrugada e brilhante na sua mão. A Lottie Carson com a nevasca ao fundo, bonitinha que só ela no casaco de pele, a Paixão Cinematográfica da América.

— Esta menina — você disse. — Esta atriz e a senhora lá na rua. Você diz que são a mesma.

— Olha para ela — falei, e segurei a outra ponta. Perdi o fôlego ao tocar nisso. Eu estava segurando uma ponta e você, outra, e a terceira tinha o logo da Bixby Brothers Pictures e o outro canto estava rasgado, tinha ficado preso num percevejo na entrada quando você roubou para a gente olhar junto para Lottie Carson.

— Se for ela, deve morar aqui — percebi. Ela agora estava meio longe, de casaco, quase, quase no meio da quadra. — Por perto, eu quis dizer. Em algum lugar. Que seria...

— Se for ela — você disse de novo.

— Os olhos parecem os mesmos — falei. — O queixo. Olha a covinha.

Você olhou longe na quadra, depois para mim, depois para a foto.

— Bom — você disse. — Esta com certeza é ela. Mas a senhora no fim da rua pode não ser.

Parei de olhar para ela e olhei, meu Deus que lindo, para você. Eu te beijei. Ainda sinto a minha boca na sua, agora tenho um feeling do feeling que tive naquela hora, mesmo que não tenha mais.

— Mesmo que não seja — sussurrei no seu pescoço quando acabou, a cliente da lavanderia nos lançou um arrãm, com o vestido feio jogado sobre o cotovelo, e eu me soltei de você —, a gente devia segui-la.

— O quê? Seguir?

— Vamos — falei. — Podemos ver se é ela. E, bom...

— Melhor do que ficar me vendo comer — você disse, lendo a minha mente.

— Bom, em vez disso a gente podia almoçar. Ou se você tiver que ir, sei lá. Para casa ou outra coisa?

— Não — você disse.

— Não, você não quer, ou não, você não tem que ir para casa?

— Não, quer dizer, sim, tudo bem, se você quiser.

Você começou a atravessar para o lado dela da rua, mas eu te segurei pelo braço.

— Não, fica aqui. Devemos segui-la a uma distância discreta — essa eu tinha aprendido em Meia-noite no Marrocos.

— Hein?

— Vai ser fácil. Ela anda devagar.

— Ela é velha — você concordou.

— Tem que ser — falei. — Ela deve estar aí pelos... sei lá, ela era jovem quando fez Greta em fuga, que foi em... deixa eu ver — virei o cartazete e pisquei para as curiosidades.

— Se for ela — você disse.

— Se for ela — falei, e você pegou na minha mão. E mesmo que não seja, eu queria sussurrar de novo no seu pescoço, cheirando a sua barba feita e o seu suor. Vamos, foi o que eu pensei, o filme deixando trilhas de vapor na minha mente. Vamos ver aonde isso vai nos levar, esta aventura com o trum da música e a nevasca de neve teatral, a Lottie Carson vai para longe do iglu e o Will Ringer grunhindo e batendo o pé antes, é claro, ela acorda os cachorros e mush!-mush!-mush!, e a Greta escolhe o homem certo, não importa quão humilde seja o seu iglu, as lágrimas de alegria dela congelando em diamantes na covinha com aquela luz que só o Mailer sabia fazer. Vamos, vamos rápido para chegar o final feliz com o casaco de peles dos sonhos, puro pelo de urso-polar, o Will Ringer bronzeado, envolvendo-a tão alegre e radiante e agradável com o anel de surpresa no bolso quando o FIM se agita na tela enorme e triunfal, o beijo, aquele beijo. Chéri, esse foi meu mimo. Eu tive um feeling de como aquele dia ia acabar, 5 de outubro, um feeling que vinha dos fundos do cartazete, o pôster promocional da Lottie Carson, uma linha do tempo com as datad da vida e obra dela. O aniversário dela estava chegando — ela tinha quase oitenta e nove. Foi isso que eu pensei, andando descuidada pela rua. Cinco de dezembro, foi isso que eu vi enquanto andávamos juntos em 5 de outubro, vamos, vamos juntos fazer algo extraordinário, e eu comecei a fazer planos, achando que íamos chegar lá.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Por isso a gente acabou" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.