Por isso a gente acabou escrita por construindoversos


Capítulo 7
Capítulo 7




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/798500/chapter/7

Se você abrir, vai ver que está vazia, e vai parar um instante para se perguntar se estava vazia quando me deu — eu consigo até ver —, outro gesto vazio que você pôs na minha mão que nem um suborno que não dá certo. Mas a verdade, e estou te dizendo a verdade, é que estava cheia, vinte e quatro fósforos  alinhadinhos e acomodados ali dentro. Está vazia agora porque eles se foram.

Eu não fumo, embora isso pareça fantástico nos filmes. Mas acendo fósforos naquelas noites vazias e pensativas quando subo no telhado da garagem para ficar com o céu enquanto os meus pais dormem inocentes e carros solitários passam em ruas distantes, quando os travesseiros não esfriam e os lençóis cobrem o meu corpo não importa quanto eu me mexa ou fique parada. Fico ali com as pernas penduradas e acendo fósforos e os vejo chamejarem até apagar.

Esta caixa durou apenas três noites, não consecutivas, antes de todos os fósforos acabarem e a caixa ficar com o nada que você vê agora. A primeira foi a noite do dia em que você me deu, quando a minha mãe finalmente bateu na porta me mandando ir para a cama e eu desliguei o telefone com o Al. Eu estava muito elétrica e feliz para dormir, e o dia inteiro ficou passando na salinha de projeção do meu cérebro. Tem uma foto no Quando apagam as luzes: pequena história ilustrada do cinema do Alec Matto fumando sentado na cadeira de uma sala com uma fatia de luz intensa por cima da cabeça dele projetada numa tela que a gente não vê. "Alec Matto revisando copiões de Aonde foi Julia? (1947) em sala de projeção particular." A Joan teve que me dizer o que são copiões, é quando o diretor tira um tempo à noite, fumando, para ver tudo o que foi gravado no dia, talvez uma cena só, um homem abrindo a porta várias vezes, uma mulher apontando pela janela, apontando pela janela, apontando pela janela. São os copiões, e levei sete ou oito fósforos no telhado em cima da garagem para repassar o nosso copião esbaforido, o aguardar nervoso com os ingressos na mão, a Lottie Carson indo para o norte com todos aqueles trens, beijar você, beijar você, a conversa estranha no Bazar A-Post que me deixou toda angustiada depois que falei com o Al sobre isso, mesmo que ele dissesse que não tinha opinião formada. Os fósforos eram meio que "bem me quer, mal me quer", mas aí vi na caixa que só havia vinte e quatro, o que acabaria em mal, então deixei só aqueles pouquinhos brilharem e esfumaçarem um tanto, cada um deles uma emoção, um choquezinho delicioso para cada parte que eu lembrava, até eu queimar o dedo e voltar para dentro ainda pensando em tudo que havíamos feito juntos.

— Ok, e agora?

Depois de duas quadras, a Lottie Carson tinha dobrado uma esquina e entrado no Sonho de Maiakóvski, um restaurante russo com muitas camadas de cortina na janela. Não conseguíamos ver nada, pelo menos não do outro lado da rua.

— Nunca tinha notado esse lugar — falei. — Ela deve ter ido almoçar.

— É meio tarde para almoçar.

— Talvez ela também jogue basquete, por isso está sempre comendo.

Você bufou.

— Ela deve jogar na Western. São umas velhinhas mesmo.

— Bom, vamos atrás dela.

— Lá?

— Que foi? É um restaurante.

— Parece caro.

— Não vamos pedir muita coisa.

— Min, a gente nem sabe se é ela.

— Vamos ficar ouvindo se o garçom a chama de Lottie.

— Min...

— Ou de madame Carson, ou algo assim. Olha, não parece um lugar onde uma estrela de cinema iria, que ela iria sempre?

Você sorriu para mim.

— Não sei.

— Claro que é.

— Então é.

— É sim.

— Tudo bem — você disse, e atravessou a rua, me puxando pelo braço. — É sim, é sim.

— Espera, vamos esperar.

— O quê?

— Vai parecer suspeito entrar direto. Vamos esperar, sei lá, três minutos.

— Claro, assim ninguém vai notar.

— Você tem relógio? Esquece, a gente conta até duzentos.

— O quê?

— Os segundos. Um. Dois.

— Min, duzentos segundos não são três minutos.

— Claro que são.

— Duzentos segundos nunca dariam três minutos. São cento e oitenta.

— Ah, agora lembrei que você é o rei da matemática.

— Para.

— Que foi?

— Não fica me zoando por causa da matemática.

— Não estou te zoando. Estou só lembrando. Você ganhou o prêmio no ano passado, não foi?

— Min.

— Que foi?

— Só fui finalista, não ganhei. Outros vinte e cinto ganharam.

— Bom, mas a questão é...

— A questão é que dá vergonha, e o Trevos, e todo mundo, fica me sacaneando.

— Eu não. Quem faria isso? É só matemática, Ed. Não é, sei lá, tipo, tricô. Não que tricô...

— É tão gay quanto.

— O quê? Não... matemática não é gay.

— É sim, um pouco.

— O Einstein era gay?

— Ele tinha cabelo de gay.

Olhei para o seu cabelo, depois para você. Você sorriu para um chiclete na calçada.

— A gente — falei. — A gente vive em diferentes, hã...

— É — você falou. — Você vive lá onde três minutos são duzentos segundos.

— Ah, é. Três. Quatro.

— Para, até já passou — você me puxou todo alegre para atravessar fora da faixa, segurando as minhas mãos como se estivéssemos dançando. Duzentos segundos, pensei, cento e oitenta, quem se importa?

— Espero que seja ela.

— Pois é — você disse. — Eu também. Mas mesmo que não seja...

Mas, assim que a gente entrou, a gente percebeu que tinha que sair. Não foi por causa do veludo nas paredes. Não foi por causa dos abajures, do tecido vermelho que ficava rosa com a iluminação ou das continhas de vidro penduradas nas cortinas que rodopiavam como prismas à brisa da porta aberta. Não foi por causa dos smokings dos homens saracoteando nem dos guardanapos vermelhos dobrados para parecerem bandeiras com uma voltinha na ponta de mastro, empilhados numa mesa de canto para reposição, bandeiras sobre bandeiras sobre bandeiras sobre bandeiras como se uma guerra tivesse acabado e a rendição fosse total. Não foi por causa dos pratos com a cursiva vermelha dizendo "Sonho de Maiakóvski" e um centauro segurando um tridente sobre a cabeça barbada e um casco erguido para nos conquistar e nos pisotear até virarmos pó e nada. E não foi só por nós. E não foi só porque a gente era colegial, eu caloura e você formando, as roupas totalmente erradas para um restaurante que nem esse, cores fortes demais e amarrotadas demais e cheias de zíperes demais e manchadas demais e comuns e desajeitadas e gastas e modinha e exageradas e casuais e incertas e fanfarronas e suadas e esporte e erradas demais. E não foi só a Lottie Carson não ter voltado o olhar para nós, e não foi só que ela estava olhando para o garçom, e não foi só que o garçom estava segurando uma garrafa, envolta por um guardanapo vermelho, inclinada bem acima da sua cabeça, e não foi só porque a garrafa, resfriada com um resplendor no pescoço, estava cheia de champanhe. Não foi só por isso. Foi o cardápio, é claro, é claro, posicionado num pequeno pódio na porta, e como era tudo fodidamente caro para nós que éramos fodidamente sem dinheiro. Então fomos embora, entramos e logo saímos, mas não antes de você pegar uma caixa de fósforos da taça de brandy gigante perto da porta e colocar na minha mão, mais um presente, mais um segredo, mais uma hora de se curvar para me beijar.

— Não sei por que estou fazendo isso — você disse, e eu te beijei na nuca, com a mão cheia de fósforos.

A noite depois de eu perder a virgindade, depois que você me deixou em casa e depois de várias horas vazias da tarde deitada na cama, cansada e inquieta, até que eu me sentei e fui lá fora ver o sol cair no horizonte — aí foram mais sete ou oito fósforos. E então a terceira noite foi aquela depois que a gente terminou, que valia um milhão de fósforos mas acabou sendo só o que sobrou. Naquela noite parecia que, ao acendê-los e jogar pelo telhado, os fósforos iam botar fogo em tudo, as centelhas das pontas das chamas queimando o mundo e todas as pessoas que existem nele de coração partido. Fumaça que eu queria por tudo, na fumaça eu queria você, embora num filme isso não fosse funcionar, efeitos demais, pomposo demais para como eu me sentia: tão diminuída e tão mal. Corte esse incêndio do filme, não importa quanto eu assista nos copiões. Mas eu quero assim mesmo, Ed, quero o que não tem como acontecer, e foi por isso que a gente acabou.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Por isso a gente acabou" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.