Por isso a gente acabou escrita por construindoversos


Capítulo 5
Capítulo 5




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Este é o ingresso do primeiro filme que a gente assistiu, que diz: Greta em fuga, Matinê, 5 de outubro, uma data que vai me provocar para sempre. Não sei se é o seu ou o meu, mas sei que comprei os dois e fiquei esperando e tentei não ficar andando naquele friozinho. Você estava quase atrasado, o que acabou se tornando normal. Foi um feeling. Você não ia aparecer, esse feeling, a câmera indo e voltando pela rua vazia no filme daquela data, 5 de outubro, eu sozinha, cinzenta, caminhando diante da lente. E daí, pensei. Você é só o Ed Slaterton. Apareça. Quem se importa? Apareça, apareça, onde você está? Vai se foder, estava todo mundo certo, mostre que estão errados, onde você está?

E aí, do nada, você estava na minha vida de novo, me chamando por cima do ombro com o cabelo penteado e úmido, sorrindo, talvez nervoso. Talvez sem fôlego, que nem eu.

— Oi - saiu como um guincho.

— Oi - você disse. - Desculpa se eu me atrasei. Esqueci qual era o cinema. Eu nunca vim aqui. Confundi com o Internationale.

— O Internationale? - o Internationale, Ed, não é o Carmelian. O Internationale exibe adaptações britânicas dos três mesmos livros da Jane Austen desde sempre, fora os documentários sobre poluição. - E quem estava te esperando no Internationale?

— Ninguém. Muito solitário. Prefiro aqui.

Ficamos ali parados e eu abri a porta.

— Então você nunca veio aqui?

— Uma vez numa excursão da oitava série, para ver alguma coisa da Segunda Guerra Mundial. O meu pai já me trouxe, junto com a Joan, antes de ele conhecer a Kim, acho, era preto e branco.

— Eu venho aqui tipo toda semana.

— Bom saber - você disse. - Sempre vou saber onde te encontrar.

— Mmm - falei, saboreando.

— Ok, o que é mesmo que a gente vai assistir?

— Greta em fuga. É a obra-prima do P.F. Mailer. Difícil de conseguir assistir na telona.

— Arrã - você disse, olhando para a entrada vazia. Tinha só os barbudos solitários de sempre, outro casal que devia ser da universidade e uma senhora com um chapéu lindo que eu fiquei observando. - Vou comprar os ingressos.

— Eu já comprei.

— Ah - você disse. - Bom, que alguma coisa? Pipoca?

— Com certeza. O Carnelian tem pipoca de verdade.

— Legal. Quer manteiga?

— Como você quiser.

— Não - você disse, e me tocou, só no ombro, com certeza você não lembra, mas para mim foi de desmaiar. - Como você quiser.

O que eu queria foi o que aconteceu. Sentamos na sexta fileira, onde sempre gosto de ficar. O mural esmaecido, o chão grudento. Os barbudos idênticos e separados em assentos distantes, como os cantos de um retângulo. O perfil da senhora nos fundos tirando o chapéu e ajeitando-o ao lado. E você, Ed, o seu braço como uma emoção à minha volta, nós sentados no escuro e as luzes se apagando.

Greta em fuga começa, brilhante, lindo, com a cortina se abrindo. A Lottie Carson é uma das dançarinas de palco numa chorus line, com aquela covinha que a transformou tanto na Paixão Cinematográfica da América quanto em amante do P.F. Mailer naquelas lindas festas das fotos do Quando apagam as luzes: pequena história ilustrada do cinema, com os braços dele a envolvendo. Ela está só um pouquinho mais velha do que eu agora, com um leque de renda, um chapeuzinho, uma música chamada "Chéri, você é meu mimo" toda pomposa, com orquestra e uma maçã resplandecente de papelão que desce pelos fios das vigas. O Miles de la Raz não consegue tirar os olhos dela, com o bigodinho encerado no camarote onde ele é flanqueado por dois guarda-costas carrancudos, e você segurou a minha mão com as suas duas mãos, quente e elétrico depois de soltar a pipoca.

Nos bastidores ele é um canalha, como se já não soubéssemos pelo bigode. "Greta, já falei um milhão de vezes para não dar trela para o vagabundo do trombone." "Ah, Joe, ele é só meu amigo, só isso" etc. Mais diálogos, outra música, mas...

... você me beijou. Foi repentino, acho, embora não seja repentino beijar alguém num encontro, principalmente quando se é Ed Slaterton e, se é para eu escrever a verdade, quando se é Min Green. Foi um bom começo, carinhoso e chocante, ainda consigo sentir aqui no pescoço, no caminhão do pai do Al, algo leve mas agitado. O que você vai fazer, me perguntei, e aí, enquanto o rá-tá-tá das metralhadoras fazia a curva de balas no estojo do instrumento no beco, e a Lottie Carson gritava no seu casaco de peles, eu o beijei de volta.

A Lottie Carson tem que sair da cidade, mas nós ficamos por ali. O braço inteiro do Miles de La Raz, o careca que também faz Jantar à meia-noite de óculos e resfriado, põe a Lottie no trem e ela joga o casaco de peles no rosto tagarela dele num acesso de mau humor, mas você não deve lembrar da cena porque agora vinha de língua com a boca molhada e um leve toque de creme dental de menta. O Al e eu assistimos no segundo ano, sessão dupla com Pegue o revólver, na casa dele com pizza e café gelado que me deixou com a língua travada, embora o Al tenha ficado só trêmulo e com o joelho que não parava de mexer e sem saber onde enfiar as mãos. Então já conheço a cena. E como ela se arrepende de ter jogado o casaco, porque o trem vai para o norte, para o extremo norte na montagem que eu amo, ainda melhor na telona com os cantos da imagem nublados, anunciando "Buffalo! Próxima parada: Buffalo!", e as cidades cada vez mais engraçadas, "Worchester! Badwood! Chokypond! Ducksbreath!", até que ela chega no maldito Yukon com o Will Ringer todo empacotado num trenó de cachorros pronto para transportá-la pelo resto do caminho até o lugar onde ela vai se esconder, a sua mão no meu pescoço e eu sem saber se você vai deslizá-la para tocar no meu top, o segundo dos que eu mais gosto, com aqueles botões de pérola estranhos e que tem que lavar na mão, ou se só estava de passagem para me segurar pela cintura antes de seguir para baixo, e se resolver eu impedi-lo, ou se eu quiser, se você contar para alguém, as suas mãos em mim e só passaram vinte minutos do primeiro filme do primeiro encontro. Então eu detenho o beijo, e a Lottie Carson dorme sozinha no iglu e o Will Ringer - com neve na barba que ele vai tirar por causa dela, porque ela vai pedir, porque ele a ama -, ele dorme com os cachorros. Ficamos quietos até acabar, no escuro, só de mãos dadas até o fim e aquele beijo, aquele grande beijo, e aí estamos piscando os olhos no saguão e eu perguntei o que você tinha achado.

— Hã - você disse, deu de ombros, olhou para mim, deu de ombros de novo e fez uma gangorra de mais ou menos com a mão, e eu queria agarrar o seu pulso e pôr a sua mão bem onde eu tinha feito você parar antes. O meu coração, Ed, era tum-tum-tum para que aquilo acontecesse, naquela hora, 5 de outubro, no Carnelian.

— Bom, eu gostei - falei, esperando que não estivesse vermelha de pensar naquilo. - Obrigada por assistir comigo.

— É - você disse. - Quer dizer, de nada.

— De nada?

— Você sabe o que eu quis dizer. Desculpa.

— Você queria pedir desculpas?

— Não — você disse. - Quer dizer, o que vamos fazer agora?

— Hã - falei, e você me olhou como se não soubesse as falas. O que eu ia fazer com você? Estava esperando que você tivesse uma ideia, porque a do filme tinha sido minha. - Está com fome?

Você deu um sorriso gentil.

— Eu jogo basquete - você respondeu. - Então a resposta é sempre sim.

— Ok - falei, pensando que podia tomar um chá. E ver você comer? Seria assim a tarde, todo aquele 5 de outubro? Com a Greta ainda deslumbrante no meu cérebro, eu queria fazer algo com você, não sei...

E aí eu suspirei, suspirei mesmo. Eu tinha que mostrar para você, porque não era algo que você via direito, um caminho a tomar, um lugar para ir, uma abertura da história que podia tornar 5 de outubro em um filme tão adorável quanto este que tínhamos acabado de assistir. Era mais que a senhora que passou por nós, mais que qualquer coisa que você pudesse vislumbrar à luz normal daquela tarde modorrenta. Era o sonho de uma cortina se abrindo, e eu peguei a sua mão para poder conduzi-lo a um lugar que fosse diferente de um velho agarrando um menino no cinema, um lugar melhor que chá para a moça e refeição completa para o atleta, como todas as outras tardes de todo mundo, algo mágico numa tela grande, algo mais, algo...

... extraordinário.

Suspirei e apontei o caminho. Eu te dei uma aventura, Ed, estava bem diante do seu nariz mas você não viu até eu ter que chamar a sua atenção, e foi por isso que a gente acabou.


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