Por isso a gente acabou escrita por construindoversos


Capítulo 4
Capítulo 4




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Estas são as tampinhas das garrafas de cerveja preta Scarpia's que você e eu tomamos no quintal do Al naquela noite. Eu ainda vejo as estrelas brilhando e formigando e a gente esbaforindo fumaça do frio, você de jaqueta do time e eu com o casaco de lã que sempre pego emprestado na casa do Al. Já estava me esperando, lavado e dobrado, quando subi com o Al para dar o presente dele antes de os convidados chegarem.

— Eu falei que não queria presente - disse o Al. - Eu te falei que a festa já era suficiente, não era compulsório trazer...

— Não é compulsório— eu disse, porque tinha o mesmo jogo de vocabulário que o Al quando a gente era calouro. - Eu achei uma coisa. Que é perfeita. Abre.

Ele tirou a sacola de mim, nervoso.

— Vamos lá, feliz aniversário.

— O que é?

— Tudo que o seu coração deseja. Espero. Abre. Você vai me deixar louca.

Rasga, arranca, rasga, e ele meio que deu um suspiro. Foi recompensador.

— Onde você achou?

— Não é, tipo, não é igualzinha àquela que o cara usa na cena da festa do Una settimana straordinaria?

Ele sorriu para a caixinha. Era uma gravata, verde-escura com uma linha costurada de diamantes estilizados. Estava na minha gaveta das meias fazia meses, esperando.

— Tire - falei. - Use hoje. Não é igualzinha?

— Quando ele sai do Porcini XL10 - ele disse, mas estava olhando para mim.

— A cena que você mais gosta de todos os filmes do mundo. Espero que você tenha amado.

— Eu amei, Min. Amei mesmo. Onde você achou?

— Dei uma passadinha na Itália e seduzi o Carlo Ronzi, e aí quando ele caiu no sono fui no figurino dele e...

— Min.

— Liquidação. Deixa que eu ponho em você.

— Eu sei pôr uma gravata, Min.

— Não no seu aniversário. - Dei um jeito no colarinho dele. - Elas vão te comer com os olhos.

— Quem?

— As meninas. As mulheres. Na festa.

— Min, vai ser o mesmo pessoal que sempre vem.

— Não tenha certeza disso.

— Min.

— Você não está pronto? Quer dizer, eu estou. Já superei o Joe. Foi só um pega de verão, chega. E você? Los Angeles já faz quase um milhão de anos...

— Foi no ano passado. Este ano, na verdade, mas no semestre passado.

— É, e começou o último ano, a primeira coisa que vamos fazer. Está preparado? Para a festa, para o romance, para Una settimana straordinaria? Você não está, tipo, sedento por...

— Estou sedento por pesto.

— Al.

— E para que as pessoas se divirtam. Só isso. É só um aniversário.

— É o Dezesseis do Desgosto! Você está dizendo que se a menina parar na frente do Porcini-sei-lá-o-quê...

— Tudo bem, para o carro eu estou pronto.

— Quando você tiver vinte e um - falei -, eu te compro o carro. Hoje é a gravata e algo mais...

Ele suspirou, bem baixinho, para mim.

— Nem tenta, Min.

— Eu encontro o que o seu coração mais deseja. Olha só, já fiz uma vez.

— Estou falando da gravata. Parece que você está fazendo tranças numa passadeira. Solta.

— Tudo bem, tudo bem.

— Mas obrigado.

Arrumei o cabelo dele.

— Feliz aniversário - falei.

— O casaco de lã está ali quando você ficar com frio.

— Sim, porque eu vou estar jogada num canto sabe-se lá onde e você estará num mundo de paixão e aventura.

— E de pesto, Min. Não esquece do pesto.

Lá embaixo, a Jordan tinha colocado o mix da amargura, no qual havíamos trabalhado arduamente, e a Lauren estava andando com um palito de fósforo comprido acendendo velas. Silêncio no set, era isso que parecia, os dez minutos em que tudo crepita e nada acontece. E então, com um vuush da porta de tela dos pais dele, um carregamento inteiro de Monica e o irmão dela e aquele cara que joga tênis entraram com vinho que tinham surrupiado da open house da mãe dela - ainda embrulhado em papel de presente feinho - e aumentaram a música e a noite começou. Fiquei quieta na minha procura, mas continuava em busca de alguém para o Al. O problema é que as meninas eram todas erradas, de glitter na bochecha ou agitadas demais, ou não sabiam nada de cinema ou já tinham namorado. E aí já era tarde, o gelo tinha virado água na tigelona de vidro, como as calotas polares. O Al ficava dizendo que era hora do bolo e, como uma música que esquecemos que estava no mix, você entrou na casa e na minha vida.

Você parecia forte, Ed. Acho que você sempre pareceu forte, os seus ombros e o queixo, os seus braços te conduzindo pela sala, o pescoço onde agora sei que você gosta de ser beijado. Forte e limpo, confiante, até amigável, mas não muito disposto a agradar. Alto como um grito, bem descansado, robusto. De banho tomado. Lindo, Ed, era isso que eu queria dizer. Suspirei que nem o Al quando dei o presente perfeito para ele.

— Eu amo essa música - alguém falou.

Acho que você sempre faz isso nas festas, Ed, andar com os cotovelos de sala em sala, cumprimentando todo mundo com os olhos na sala à frente. Alguns ficavam olhando, teve uns caras que fizeram "toca aí" com você, e o Trevor e o Christian quase bloquearam os homens que nem guarda-costas. O Trevor estava bem bêbado e você o acompanhou por uma porta até sair de vista e eu esperei até a música chegar de novo no refrão antes de ir te procurar. Não sei por quê, Ed. Não é que eu nunca tivesse te visto. Todo mundo te conhece, você é, tipo, sei lá, o filme que todo mundo vê quando é criança, todo mundo te viu, ninguém lembra de não te ver. Mas de repente eu queria mesmo, de verdade, te ver de novo naquele instante, naquela noite. Passei por aquele cara que ganhou o prêmio de ciências, olhei na sala de jantar, na salinha com as fotos emolduradas do Al sem jeito na escadaria da igreja. Estava abafado, cada sala, muito calor e muito barulho, e eu subi as escadas correndo, bati na porta para o caso de já haver alguém na cama do Al, peguei o casaco de lã e então fui para fora tomar um ar e talvez te ver no quintal. E eu vi, você estava lá. O que me levou a fazer essa coisa, você lá parado e sorrindo, segurando duas cervejas enquanto o Trevor passava mal na floresta da mãe do Al? Não era para eu estar olhando, eu não. Não era o meu aniversário, foi isso que eu pensei. Não tinha motivo para eu ter saído assim, no quintal, assim, de repente. Você era o Ed Slaterton, qual é, falei para mim mesma, você nem tinha sido convidado. O que é que eu tenho? O que eu estava fazendo? Mas da boca para fora eu estava conversando com você e perguntando o que tinha acontecido.

— Não é comigo - você disse. - Mas o Trev está meio mal.

— Vai se foder - o Trevor balbuciou dos arbustos.

Você riu e eu ri também. Você ergueu as garrafas na luz do alpendre para ver qual era qual.

— Toma, essa aqui ninguém tocou ainda.

Eu não costumo beber cerveja. Não bebo nada, na verdade. Peguei a garrafa.

— Não era para o seu amigo?

— Ele não devia misturar - você disse. - Já tomou metade de uma Parker's.

— É mesmo?

Você olhou para mim e aí pegou a garrafa de volta porque eu não conseguia abrir. Em um segundo você abriu e pôs as duas tampinhas na minha mão como se fossem moedas, um tesouro, um segredo, e aí me devolveu a garrafa.

— A gente perdeu - você explicou.

— O que ele faz quando vocês ganham? - perguntei.

— Bebe meia garrafa de Parker's - você disse, e aí...

A Joan me contou que teve uma vez que você levou um soco numa festa depois de perder um jogo, então é por isso que você vai na festa dos outros quando perde. Ela me disse que ia ser difícil namorar o irmão dela, o astro do basquete.

— Você vai ser viúva - ela me disse, lambendo a colher e aumentando o volume do Hawk. - Uma viúva do basquete, num tédio sem fim enquanto ele bate bola mundo afora...

Eu pensei, e fui burra, que não ia me importar.

E aí você perguntou o meu nome. Respondi que era Min, apelido de Minerva, deusa romana da sabedoria, porque o meu pai estava fazendo mestrado quando eu nasci, e que, nem pergunte, não ia mesmo ter jeito, só a minha vó podia me chamar de Minnie porque ela me disse que, quando eu imitava a voz dela, eu era a melhor de todas.

Você disse que o seu nome era Ed. Como se eu não soubesse. Perguntei como vocês perderam.

— Não - você disse. - Se eu tiver que te contar como a gente perdeu, vou ferir todos os meus sentimentos.

Gostei, "todos os meus sentimentos".

— Cada um deles? - perguntei. - De verdade?

— Bom - você disse, e deu outro gole. - Talvez me restem um ou dois. Talvez eu ainda tenha um sentimento.

Eu também tinha um sentimento, um feeling. É claro que você acabou me dizendo, Ed, já que você é menino, por que perdeu o jogo. O Trevor roncava na grama. A cerveja tinha gosto ruim e eu cuidadosamente coloquei a garrafa atrás de mim no chão gelado, e lá dentro as pessoas estavam cantando. "Amargor para você, nesta data fedida, muitas calamidades" - e o Al nunca me deu uma dura por ter ficado lá fora com um garoto sobre o qual ele não tinha opinião formada em vez de entrar para vê-lo apagar as dezesseis velas negras naquele coração negro e incomível -, "muitos anos de dor." Você me contou a história toda, os seus braços magros na jaqueta feia, e refez todos os seus movimentos. O basquete ainda é incompreensível para mim, esse negócio de bater bola, gritar, correr de uniforme, e embora não tenha ouvido eu estava ligada em cada palavra. Sabe do que eu gosto, Ed? Da palavra "bandeja". Tem uma coisa sexy. Eu saboreei aquela palavra - "bandeja", "bandeja", "bandeja" -, as suas fintas e faltas, os seus arremessos livres e tocos e as cagadas que fizeram tudo ir por água abaixo. A bandeja, aquele movimento fluido que saiu como você queria, enquanto todos os convidados ficavam cantando na casa, "O Al é só amargura, o Al é só amargura, o Al é só amargura, ninguém pode negar". A canção que eu guardei para o filme, tão alta, passando pela janela, que as suas palavras viraram um borrão dos esportes quando você terminou o seu jogo e atirou a garrafa para que se partisse elegantemente contra a cerca, e aí você começou a perguntar:

— Posso te chamar para...

Achei que você ia pedir para me chamar de Minnie. Mas você queria saber se podia me telefonar. Quem era você para fazer aquilo, quem era eu para dizer sim? Eu teria dito sim, Ed, teria deixado você me chamar daquilo que eu odiava ser chamada por aquela que me ama mais do que todos. No lugar disso falei que sim, claro, você podia me chamar para a gente ver um filme no fim de semana que vem, e Ed, o negócio de ter o que o seu coração deseja é que o seu coração não sabe o que deseja até aparecer. Como uma gravata em liquidação, uma coisinha perfeita num balaio de nadas, você estava lá, sem ser convidado, e agora a festa tinha acabado e você era tudo que eu queria, o melhor presente. Eu não estava nem procurando, não por você, e agora você era o que o meu coração desejava, chutando o Trevor para que ele acordasse e saindo a trotar pela noite doce.

— Aquele era o... Ed Slaterton? - a Lauren perguntou, de sacola na mão.

— Quando? - falei.

— Antes. Não diz quando. Era ele. Quem convidou? Que piração ele aqui.

— Eu sei - falei. - Né? Ninguém?

— E ele pegou o seu telefone?

Escondi as tampinhas na mão para ninguém ver.

— Hã.

— O Ed Slaterton te convidou para sair? O Ed Slaterton te convidou para sair?

— Ele não me convidou - falei, tecnicamente. - Ele só perguntou se podia...

— Se podia o quê?

A sacola fazia barulho no vento.

— Se ele podia me convidar para sair - admiti.

— Minha Nossa Senhora - disse a Lauren, e aí, veloz: - Como diria a minha mãe.

— Lauren...

— A Min foi convidada para sair pelo Ed Slaterton - ela avisou a casa inteira.

— O quê? - a Jordan foi lá fora. O Al ficou olhando assustado pela janela da cozinha, franzindo o cenho na frente da pia como se eu fosse um guaxinim.

— A Min foi convidada para sair...

— É mesmo? - A Jordan estava procurando por ele no quintal.

— Não - falei. - Não foi assim. Ele só pediu o meu telefone.

— Claro, pode ser qualquer coisa - a Lauren bufou, jogando guardanapos molhados na sacola. - Pode ser que ele trabalhe na telefônica.

— Para.

— Talvez seja obcecado por DDDs.

— Lauren...

— Ele te convidou para sair. O Ed Slaterton.

— Ele não vai ligar - falei. Foi só da festa.

— Não se rebaixe - a Jordan disse. - Você tem todas as qualidades que o Ed Slaterton procura nas mil namoradas dele, se pensar bem. Você tem duas pernas.

— E você é uma forma de vida de base carbono - a Lauren falou.

— Parem - falei. - Ele não é... ele é só um cara.

— Olha só ela, só um cara. — A Lauren continuou a recolher o lixo. - O Ed Slaterton te convidou para sair. Que loucura. Tipo, Olhos no telhado de loucura.

— Não é tão louco quanto este, deve-se dizer, ótimo filme, que se chama Olhos no teto. Porém, ele não vai ligar.

— Não acredito - a Jordan disse.

— Não tem no que acreditar - falei para todo mundo no quintal, inclusive para mim. - Foi uma festa, e o Ed Slaterton estava aqui e acabou e agora vamos limpar tudo.

— Então vem me ajudar - o Al finalmente falou e ergueu a tigela do ponche, que estava pingando. Corri na cozinha atrás de uma toalha.

— Jogo essas fora?

— O quê?

Ele apontou para as tampinhas na minha mão.

— Sim, claro - falei, mas enfiei no bolso de trás e ele não viu. O Al me entregou tudo, a tigela, a toalha para secar, e ficou me olhando.

— O Ed Slaterton?

— Pois é - falei, tentando bocejar. Por dentro eu me tremia toda.

— Ele vai mesmo te ligar?

— Não sei.

— Mas você... quer?

— Não sei.

— Não sabe?

— Ele não vai me ligar. É o Ed Slaterton.

— Eu sei quem ele é, Min. Mas você... o que vocês...?

— Não sei.

— Sabe sim. Como não sabe?

Sou muito boa em mudar de assunto.

— Feliz aniversário, Al.

O Al só fez que não, provavelmente porque eu estava rindo, acho. Acho que eu estava rindo, a festa tinha acabado e aquelas tampinhas pegavam fogo no meu bolso. Pegue-as de volta, Ed. Aí estão. Pegue também o sorriso e a noite, pegue tudo de volta, era isso que eu queria que você fizesse.


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