Após o Despertar escrita por Matheus HQD


Capítulo 2
Capítulo 2: Aquele que está vivo, não espera sonhando




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A luz do amanhecer no exterior invadia a casa pelas frestas das cortinas cerradas, Mariana ainda estava na sala, sozinha, em silencio, olhando para a parede com um olhar vago e os olhos levemente inchados, quando finalmente percebeu que havia amanhecido, decidiu olhar o clima, o som da chuva que começou durante a madrugada, como se quisesse acompanhar as lagrimas da jovem, perdurou ininterruptamente por horas, mesmo depois que a garota não tinha mais lagrimas para chorar. Se levantando do sofá e empurrando levemente uma das cortinas, ela podia ver por cima do muro da casa, e dos telhados dos vizinhos, algumas nuvens acinzentadas que ainda pairavam sobre a região, como um lembrete da tristeza de muitos, ou talvez como um pressagio de que desta vez, não haveria mais um tempo bom após a tempestade.

A garota não havia dormido nem por um momento desde o dia anterior. O pensamento de que sua mãe talvez fosse uma das sobreviventes hospitalizadas após as explosões no centro da cidade, a esperança de que a qualquer momento seu telefone poderia tocar trazendo notificações felizes, o medo de o pior realmente ter acontecido, todo esse caos de emoções surgia sempre que ela fechava os olhos. Nos momentos em que não estava chorando, ela trocava mensagens com as pessoas pelo celular, no grupo de família ela avisou que estava bem, mas não sabia da mãe, um tio acompanhado de seus primos também não davam notícias, o fato de morarem em outras cidades e estados deixava todos preocupados e incapazes de se ajudar; nos grupos de amigos e da faculdade, os memes e piadas pararam a mais de 12 horas, a medida que todos foram percebendo a veracidade da situação, e a maioria comentava sobre onde estavam, o que faziam em meio à confusão das cidades, perguntavam se alguém estava ferido ou sobre aqueles que não respondiam nada nos grupos ou no privado.

A vista melancólica através da janela, o quase silencio na rua, fizeram o estomago da moça avisar que continuava vazio, ela volta a cozinha e nota seu copo de suco ainda sobre a pia ao lado dos biscoitos, o sabor parece não importar nada, enquanto ela come e bebe, apesar de não querer largar o celular para se manter informada, ela sabe que precisa fazer isso durante esse minutos para poder se alimentar direito, visto que suas mãos e boca tremiam levemente, tamanho fora o nervosismo durante toda a noite. Aparentemente ninguém sabia direito o que estava acontecendo, os jornais divulgavam uma realidade brutal e assustadora, o governo fazia curtas e vagas proclamações de que as pessoas deviam manter a calma, pois em breve tudo estaria sob controle. O último gole no suco quente descia mais facilmente pela garganta do que tudo que ela havia ouvido e lido durante a noite sobre “a população não deve se desesperar” ou que “todas as medidas necessárias já estavam sendo tomadas”, nenhuma dessas frases traziam conforto ou sequer explicava essa situação que atingiu a todos de maneira repentina. A garota passou a pensar que talvez nas coisas mais estranhas e irreais esteja a resposta para tudo isso, algo tinha que explicar tudo isso, por mais improvável que fosse, foi então que ela exclamou em voz alta.

— Gabriel!

A lembrança de seu amigo da internet, que morava no norte do país, veio de sobressalto e ela começou a se perguntar como não havia pensado em falar com ele antes. Sem perder mais nem um segundo ela mandou uma mensagem direta para ele:

“Gabriel, ta ai? Por favor não tenha sumido também!”

Alguns minutos se passaram, enquanto isso ela mandou uma mensagem para Lucas, um de seus melhores amigos, durante a madrugada eles haviam se falado um pouco se certificando de que ambos estavam, no mínimo, vivos. O rapaz havia dito anteriormente que ele e muitos colegas se trancaram em uma faculdade enquanto ouviam os mais indescritíveis e horrendos sons vindo da rua.

Agora com a cabeça no lugar ela perguntou a ele sobre como estavam as coisas, Lucas não demorou a dizer em mensagem que eles ainda estavam se mantendo reclusos lá dentro daquela sala de aula, complementou informando que não poderia falar por muito tempo porque a bateria estava acabando, Mari logo questionou então se ele sabia como estava o Gabriel, o rapaz respondeu que durante a noite anterior eles conversaram bastante, mas não agora pela manhã. A moça ficou novamente aflita, por Lucas e seus outros amigos da internet, embora nunca tivessem se encontrado pessoalmente, ela possuía um carinho enorme por todos eles. “Tome cuidado por ai” ela digitou e enviou, o rapaz respondeu que ela deveria se cuidar também, e poucos minutos após isso, ele disse que a bateria estava para acabar, felizmente foi neste instante que Gabriel que apareceu online e segundos após ver a mensagem da jovem, a respondeu.

GABRIEL: Oi Mari, eu to por aqui sim, bom saber que tu ta por ai, parte de uma galera que conheço também não ta respondendo há horas...

A garota respirou fundo para se manter calma, a lembrança súbita de sua mãe fez sua respiração ficar forte por alguns segundos; ela tentou manter a mente focada e se concentrar na conversar com seu amigo, ele sempre costumava falar sobre suas crenças no paranormal e postava as mais variadas bizarrices na internet, e observando tudo nas notícias e redes sociais agora, nada entraria na categoria normal.

“É... tá muito tenso, também fico feliz de saber que você ta... ta por ai, pelo menos, você tá bem? Soa meio idiota perguntar mas...”

GABRIEL: Vendo a situação como um todo, acho que não to tão ruim, a merda toda já foi pro ventilador, ta foda mesmo pra quem tiver na rua

“É dessa situação mesmo que queria falar, eu não to entendendo nada, tem uma galera falando de fim do mundo, tem gente com sobretudo nas ruas fazendo procissões com tochas, os hospitais tão enchendo de gnt mutilada, histérica e falando coisa nada com nada. Você tem ALGUMA ideia do que tá rolando?”

Gabriel pareceu estar digitando por alguns segundos, mas depois parou, poucos minutos se passaram, quando voltou a digitar a mensagem só dizia:

Gabriel: Olha... tenho uma teoria...

“Serio? Então por favo me fala”

“Eu sei que nem sempre acreditei em tudo que você colocava no seu blog do Ghost Creepy, mas agora eu só consigo pensar que talvez tudo de ‘esquisito’ que você falava pode ter alguma lógica”

O rapaz parece hesitante ainda, digitando e apagando a mensagem algumas vezes até finalmente enviar o seguinte.

GABRIEL: Olha... Eu tentei explicar pra uns amigos e a maioria acha q tou falando merda, a Lorena é a única que acha que posso estar certo, mas ela acredita em td q é conspiração, então não sei se conta muito...

GABRIEL: Mas eu acho que o Howard escrevia a verdade, não era só pura ficção...

“Howard?”

GABRIEL: É... o H. P. Lovecraft...

A primeira reação de Mariana foi querer enviar uma mensagem dizendo que isso era um absurdo, ela conhecia alguns dos contos do escritor, histórias de monstros alienígenas que causam pesadelos de desespero nos personagens e tem seguidores secretos. Porém, em um contraponto, ela se lembrou como Lucas e Jade foram capazes de convencê-la da existência de vida extraterrestre inteligente, mas existe um abismo de diferença entre Et de Varginha e Grandes Antigos, poderia ser possível? Ela pensou bem e respondeu por fim:

“Ok... Tem muita coisa estranha rolando, mas como uma coisa se liga na outra?”

GABRIEL: Na real eu não tenho certeza absoluta, eu to me perguntando isso desde ontem, essa parada toda não faz sentido, fantasmas e lobisomens, ok, mas ISSO?!

GABRIEL: Porra...

GABRIEL: De tudo que eu pensava que podia acontecer, essas merdas eu realmente achei que deviam ser só histórias mesmo, mas se for tudo verdade, a gente ta muito ferrado...

“Você tá falando serio msm né?”

GABRIEL: Eu estou me despedindo das pessoas importantes pra mim, pq pode ser o fim real...

Enquanto Mariana começava a digitar alguma resposta, Gabriel havia enviado um vídeo, assim que o arquivo acabou de descarregar, ela clicou no play, aumentou o volume do aparelho no máximo e ficou prestando atenção no que era exibido.

O vídeo exibia a gravação feita de um celular mostrando uma grande praia, nuvens e alguns relâmpagos acima do mar chamavam a atenção, assim como o vento que parecia soprar forte e aves que voavam da direção da praia para o centro da cidade, o som de um cachorro latindo era a primeira coisa a ser ouvida, seguida depois da voz de um homem:

“¿Estas viendo esto? Parece una tormenta en el mar. ¡Miren chicos!”

O latido do cachorro continua, por um momento o rapaz aponta a câmera do celular para ele e faz um carinho na cabeça do animal, aparentemente numa tentativa falha de acalmá-lo. Pode se notar nesse momento também que a pessoa está em uma sacada de apartamento, existem outros prédios ao lado e ele está em algum andar bem acima do nível da rua, o que permitia uma visão ampla da praia, outras pessoas estão em sacadas e janelas também observando ou filmando o fenômeno incomum do clima e a aparente tempestade vinda do oceano. A câmera volta a filmar o mar, e após alguns segundos, e mais comentários em espanhol que pareciam se dirigir a amigos ou conhecidos, algo de diferente parece chamar a atenção do homem gravando.

“Espera, ¿puedes ver eso allí? Parece que algo viene hacia la playa, creo que es una ballena, parece una ballena, creo, ¡es enorme! ¿puedes ver?”

De fato, era possível ver algo começando a emergir, porém, Mariana sabia que aquilo não poderia ser uma baleia, visto que uma onda enorme subia ao mesmo tempo que aquilo começava a surgir, e pelo tamanho aparente da onda, aquela coisa realmente teria um tamanho colossal, ainda não visto, abaixo da água. A onda gigantesca rapidamente chegava à praia, os poucos banhistas gritavam e corriam de lá, mas não precisava ser um físico para saber que a tragédia ali estava prestes a acontecer, o som da água era captado até pelo celular distante, os latidos do animal de estimação ficavam cada vez mais altos e contínuos, a câmera agora apontava para a praia enquanto o rapaz começava a praticamente gritar com seu cachorro.

“¡Cállate, cállate, cállate, cállate, cállate, cállate la maldita boca!”

A onda atingiu a praia, o som do impacto em todos os objetos no nível da rua lembrava uma cachoeira atingindo as pedras. Cadeiras, pessoas, carros e até quiosques, tudo era arrastado para dentro das ruas, o rapaz parecia desnorteado segurando o celular, rapidamente passou a câmera sobre o mar mais uma vez antes de filmar o prédio ao lado do seu, Mari tomou um susto quando viu algumas pessoas simplesmente se jogando das sacadas em que estavam, outras mantinham o olhar vidrado no mar, enquanto algumas fechavam janelas e cortinas como se quisessem se proteger. A filmagem se encerra com o homem gritando ainda mais alto com seu cachorro, e filmando o mesmo, que parecia recuar com medo de seu próprio dono.

Mariana ficou incrédula por alguns segundos, a filmagem parecia verdadeira, a câmera não era propositalmente de má qualidade como em filmes de terror de found fottage, ela assistiu ao vídeo mais uma vez e pausou no momento de relance quase no fim em que o rapaz brevemente aponta a câmera em direção ao mar no meio de seu movimento após a onda atingir, definitivamente aquilo não era uma baleia conhecida, nenhuma delas é tão gigantesca, e tão pouco, se assemelham a monstros mitológicos de filmes de ação. Não era possível dar muitos detalhes sobre aquela figura que se arrastava para fora do mar por causa do embaçamento durante o movimento, era difícil discernir se era algo quadrupede ou bípede, mas aparentava possuir uma cabeça cumprida, um par de braços com cumpridas garras, e o que Mari cogitou ser, um par de asas retorcidas, nas costas, a parte inferior do tronco e o que tivesse ali ainda estava escondido dentro da água, porém uma coisa era certeza, aquele borrão no mar trazia com ele uma náusea e uma angústia para a jovem.

Mari não conseguiu mais se segurar, os olhos voltaram a marejar, apesar das lagrimas não rolarem pelas bochechas dessa vez. Ela encarava a imagem pausada no celular enquanto deslizava as mãos pela testa, passando por seus dreadlocks até tocar a altura da nuca com seus dedos. Em seguida as mãos voltaram a segurar o celular e ela enviou uma mensagem em resposta a Gabriel.

“Pqp... Acabou GC. Já era pra todo mundo”

GABRIEL: É... Eu não sei se a gente tem chance...

A garota caminhou até o seu quarto, sentou na cama e se enrolou na coberta cobrindo o topo de sua cabeça também, o computador continuava ligado, mas foi deixado de lado assim como o celular, ela fechou os olhos e ficou ali por um longo tempo. Uma nova chuva se iniciou eventualmente, e o som da água lá fora unido aos trovões ecoavam pela casa, não era só a vida da garota que havia mudado nas últimas 24 horas, eram todas as vidas ao redor do mundo, e esse era só o início da tormenta.


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Notas finais do capítulo

“Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn. Em sua casa em R'lyeh morto Cthulhu espera sonhando.”
—H.P. Lovecraft, O Chamando de Cthulhu

Para nossa sorte, todo este enredo, assim como as obras de Lovecraft, são pura ficção, não é mesmo?



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