Chamariz escrita por Bibelo


Capítulo 2
Potestade Funesta


Notas iniciais do capítulo

Boa madrugada, meus amores

Cheguei com o segundo capítulo. Espero que a temática e a escrita estejam do agrado, não são temas que se vê em fanfics, então preciso de um feedback.

Vamos ver como eles entram na Alta Arcania?

Boa leitura!



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Nico ajeitava os comunicadores enquanto aguardava o retorno de William. Havia lhe mostrado o esconderijo um pouco antes dele desaparecer ao sul do canal, levando consigo o lampião e toda a animação que aparentemente Nico estava sentindo. 

Sentou-se na cadeira ao terminar de configurar os comunicadores, ajustando-os para que os ocultasse dos Solaries durante o uso. Passou a mão pelos cabelos, apoiando a testa na mesa de aço, exausto e confuso. 

Não sabia se a escolha que havia feito tinha sido a melhor. Havia mais desvantagens do que vantagens em segui-lo para fora de Arcania, e nenhuma delas era favorável à Nico;  afinal, não estava naquela cidade deserta à toa. 

Nico fugia dos refúgios há muitos anos, isolado nos confins de uma cidade infestada pela morte, sabendo estar mais seguro nos canais próximo aos Solaries do que da Sociedade elitizada.

A vida fora do subterrâneo, longe dos refúgios nos canais, era incerta. Muitos deles foram destruídos ao longo dos anos, descobertos pelas patrulhas aéreas, delatados pela luz artificial de suas casas, pelo vapor na superfície e nos timbres temerosos. Todos que tentavam abandonar a escuridão eram mortos pelo sol que tanto almejavam. 

Nico ouviu histórias dos revolucionários enquanto ainda habitava os refúgio, de como abrigavam-se ao ar livre, desprovidos do medo que os Solaries impunham na sociedade quebrantada. Eram alegres, boêmios, sedentos pela liberdade que juravam pertencer a toda e qualquer vida na terra. 

Lutavam na vanguarda, soldados treinados e habilidosos, velozes com suas pernas e mentes ágeis; diversos inventores auxiliavam na revolução, homens dispostos a criar e produzir armas capazes de desestabilizar Solaries, facilitando sua destruição. 

Para Nico eram histórias aumentadas, engrandecidas pelas vozes de esperança que erguiam-se na neblina dissipada. Sempre acreditou na fantasia da revolução como algo abstrato, distante de sua realidade, nunca pensou que um dia daria de cara com alguém usando a tatuagem da revolução, disposto a ajudá-lo em troca de um simples favor. Era surreal o quão certas algumas das histórias sobre eles eram. 

William Solace acreditava na vida, na liberdade, e pelo pouco que pode interagir com ele, libertino em sua essência; capaz de manipular seus ideais se se deixar levar pelo tom claro e divertido do homem.

Recordou-se de sua forma radiante na Avenida, da cacofonia que o envolvia nas luzes natalinas, do sentimento desconcertante ao trocarem olhares. Nico sentia-se afundar naqueles olhos, e culpava única e exclusivamente seu isolamento social por conta disso. 

Suspirou infausto, virando o rosto para o amontoado de bronze deitado em sua cama, ressoando tranquila sob o calor do óleo recém trocado. Sorriu pequeno, focando o olhar no pequeno rastro de vapor que subia das grades em suas costas, dispersando sua atenção da mente turbulenta. 

Precisava muito de algumas horas de sono. A adrenalina daquela noite drenou toda sua energia pelos próximos dias, e só precisava de algum descanso. Sabia que iriam partir para Alta Arcania assim que William retornasse, mas não conseguiu evitar um bocejo ou outro de escapar.

Deixou-se fechar os olhos por breves instantes, imerso na inércia de sua mente, no peso em seu corpo cansado. Tão logo adormeceu, foi acordado pelo som de batidas em sua porta. Ergueu-se em alerta, buscando seu bastão no mesmo instante. 

Sra. O’leary aprumou-se de onde estava, rosnando baixo. 

— Nicolò? — a voz de Will eclodiu suave contra a parede grossa de metal, baixa, mas distinta o bastante para reconhecê-lo. 

Relaxou o aperto no bastão, seguindo para a porta. Abriu a passagem para William que entrou prontamente, Jogando uma mochila grande e larga ao chão. Se virou para Nico mais empolgado do que antes. 

Nico revirou os olhos, fechando a passagem. 

— De onde tira tanta energia? — resmungou cansado, esfregando o rosto com a palma esquerda. Will sorriu. 

— Sou um homem da natureza, sempre tenho energia de sobra. — confirmou num gesto de mãos, curvando-se brevemente. 

— Tem certeza que não tem um reservatório no lugar de um coração? — ponderou Nico sentando-se novamente na cadeira. Will sentou o sofá no canto, surrado e ocupado por roupas amontoadas. 

Will deu de ombros, divertido. Sra. O’leary se aproximou dele, olhos faiscantes de curiosidade e desconfiança. Nico a seguiu com o olhar, pronto para desligá-la se o atacasse. Will se inclinou para frente, mostrando as mãos vazias, num sinal de paz para o autômato. Sra. O’leary cheirou sua mão antes de esfregar sua cabeça robótica em sua palma, soltando vapor em excesso, alegre. 

Ouviu a risada de Will larga e divertida, pegando o animal pesado no colo, acariciando a carcaça metálica. 

Awn, você não estava sozinho, que bom. — confessou Will, aliviado. Nico arqueou a sobrancelha. 

— Não é uma companhia humana, sabe. 

— Mas não está sozinho. Pessoas sozinhas tendem à insanidade. — comentou baixo, numa confissão fechada e seca. 

Nico pigarreou, indiscreto. Mostrou à Will ambos comunicadores que havia produzido, revestidos de cobre com uma área central transparente, feita de vidro. Com a outra mão, ergueu seu decodificador.

— Tenho dois comunicadores para caso a gente se separe, e um decodificador. Não sei se funcionam bem. Foram poucos testes, mas não podemos invadir Alta Arcania sem eles. — comentou com severidade, entregando um dos comunicadores a Will que examinou a peça pequena, curioso. 

— Como assim “caso a gente se separe”? Vamos juntos?

— Vou. — confirmou firme: — Não posso deixá-lo sozinho, e não vai saber o que preciso. 

— Poderia me explicar. Tenho duas pernas robóticas, acho que tenho alguns critérios. — relembrou divertido, mostrando ambas pernas. 

Nico sorriu: — Eu sei, mas é uma peça específica, feita sob medida naquela loja. — admitiu suspirando por fim: — Mas eu posso acabar te atrasando, por isso os comunicadores. 

Will assentiu: — Tudo bem, acho que serão úteis. — devolveu o cachorro para o chão, apoiando os cotovelos nos joelhos: — São três da manhã, duas horas para o sol nascer em Alta Arcania e três para nós. Não temos muito tempo.

Com um menear, Nico se levantou da cadeira. 

— Então melhor irmos. 

 

⚙ ⚙ ⚙

 

Nico os guiou pelas ruelas da cidade, mantendo-os longe dos radares dos Solaries. Usaram os becos como escudos, os telhados baixos como esconderijos enquanto escalavam até Alta Arcania, evitando as Avenidas o máximo que conseguiam. 

Will o ajudou em alguns pontos, momentos onde sua perna oscilava e não possuía forças para impulsionar-se para telhados mais altos. Mas não precisou pedir por ajuda em nenhum desses momentos. Assim que precisava, Will lhe estendia a mão, puxando-o para cima como se o peso extra em seu corpo fosse insignificante.

Por mais que os guiasse, William se mantia à sua frente, como um escudo humano; sua atitude faceira inteiramente mascarada pela seriedade daquela missão suicida, do som alto dos Solaries cada vez mais próximos. 

Escalaram o último dos prédios da Baixa Arcania, escapando da nuvem de vapor, sendo agraciados pela claridade do céu estrelado. Nico prendeu a respiração por longos instantes. Fazia mais de um ano desde a última vez que esteve ali, e sempre lhe roubava o fôlego a visão dos bairros altos. 

Se virou para Will, indicando para que descessem para a rua. Daquele ponto, andar nos telhados os entregaria aos Solaries antes mesmo de chegarem à loja. 

Will desceu primeiro, ágil nos pontos certos das paredes lisas, revestidas de encanamentos e engrenagens fundidas. Ao tocar o solo gesticulou para Nico que imitou seus passos, mas devagar e preciso, apoiando-se em sua perna humana o máximo que podia. Sentiu as mãos de Will em sua panturrilha, indicando onde posicionar os pés perto do chão. 

Assim que se acomodou no solo, ajeitou a mochila, retirando o decodificador. Caminhou em direção à loja, suave em seus passos, silencioso nos movimentos. Os sentinelas marchavam pela Avenida, concentrando-se ao redor da fonte central há muito inativa. Apoiou as costas na parede. 

— A loja fica do outro lado da Avenida, há dois quarteirões daqui. Podemos seguir pelos becos e atravessar quando chegarmos nela. — sugeriu apontando para a fachada da loja de consertos em frente à fonte. 

Will concordou: — Mas como vamos passar?

Nico prensou os lábios, observando o conjunto de sentinelas, entre dez à quinze autômatos de bronze guardando a entrada da loja. Suspirou, resignado. 

— Você vai. Eu vou ficar e chamar a atenção deles. — avisou, seguindo para o fundo do beco. Will o segurou pelo pulso, preocupado. 

— Como assim? O que vai fazer?! — questionou, ligeiramente histérico. Nico mostrou o decodificador. 

— Tenho uma forma de desnorteá-los por alguns segundos, com sorte o suficiente para que você atravesse a Avenida. — Nico pegou o comunicador, mostrando-o para Will: — Eu não pude explicar antes como funcionava, mas o comunicador reproduz nossa voz em textos, assim podemos nos comunicar silenciosamente, mas à uma distância de cem metros, no máximo. 

— Por que não grava minha voz e você a escuta? — inquiriu confuso, observando o aparelho com interesse. Era uma invenção nova, poucos tiveram acesso à ela antes do massacre. 

— Por conta da frequência. Os autômatos tem bons ouvidos, e irão nos achar se nos comunicarmos por voz. — explicou calmo, continuando seu caminho pelos dois quarteirões que faltavam. 

— O que é uma frequência? — mais uma pergunta antes de chegarem na próxima viela. Nico sorriu divertido.

— Se sobrevivermos, eu te explico. — prometeu retirando a mochila, acomodando-se no beco: — Certo, irei ativar o decodificador, você vai ter dez segundos para atravessar, talvez menos. Depois disso eles irão ficar alerta. Você estará seguro na loja, mas eu terei que me esconder. A frequência do decodificador é forte, irão me achar se eu ficar no mesmo lugar por tempo demais. 

Will balançou a cabeça, olhos fixos no aparelho metálico. 

— E a peça?

— Tem um scan no comunicador, pode me mandar a aparência dela para eu saber se é a peça que preciso. — Nico mostrou como funcionava, escaneando o decodificador e enviando a imagem para Will: — Clique nela.

Will o fez, cético, sendo surpreendido pelo holograma áureo que apareceu em 3D. Sorriu surpreso, um toque de incredulidade em sua feição. 

Como isso--?

— Depois. — garantiu Nico desligando o holograma: — A peça que preciso está atrás do balcão, em um cofre preto fechado por senha. A senha é 1712. É uma peça circular de bronze com fiações de cobre, não de alumínio. 

— Ok, senha, cobre, vai dar certo. — garantiu Will guardando o comunicador no bolso, ajeitando a mochila nas costas: — Vai ficar bem?

Nico sorriu fraco, silencioso. Não sabia se ficaria bem caso fosse encontrado pelos Solaries, não tinha como fugir deles se fosse avistado. Will mordeu o lábio, contrariado, mas Nico ativou o decodificador. 

— Ao meu sinal. 

Will ajeitou-se na esquina com a Avenida, as pernas soltando vapor intensamente. Nico apertou o botão e um som agoniante reverberou por toda a Avenida. Os autômatos guincharam e Nico gritou.

VAI! 

Will desapareceu antes que Nico pudesse terminar a frase, veloz em suas pernas fortes e resistentes. As bestas começaram a se debater, agoniadas, assim que o som se dissipou. Nico arrancou o aparelho auditivo de seu ouvido direito, suspirando aliviado ao cair no silêncio da cidade. 

Desceu o olhar para o decodificador desligado, aguçando seu ouvido bom para os autômatos raivosos na Avenida. Afastou-se da esquina, se escondendo nos escombros da ruela. 

— Conseguiu entrar? — inquiriu baixo, observando as palavras sendo transcritas para William. Em pouco tempo teve uma resposta. 

“Sim, funcionou bem. Deu até tempo de fechar as cortinas.” Nico conseguia ouvir o tem de zombaria em sua frase mesmo sem ouvi-lo. Revirou os olhos. 

— A senha é 1712, caso não se recorde. — alertou, abaixando o comunicador enquanto recolocava seu aparelho auditivo. 

Por mais que tivesse o outro ouvido em bom estado, ter um aparelho que captasse as frequências dos Solaries era mais seguro do que depender simplesmente da audição humana. Assim que o ativou congelou no lugar, ouvindo a aproximação das bestas no beco onde estava. 

Respirou fundo reavendo sua mochila e se afastando vagarosamente, os olhos na Avenida, nas sombras crescentes, criadas pela aurora. Virou à esquerda, na bifurcação das ruas estreitas. Um sentinela entrou no beco onde estava anteriormente, sentindo sua presença; o rastro da frequência do decodificador envolvendo-o como uma mortuária. 

Seu comunicador vibrou, mostrando uma mensagem de Will: “Eu talvez não saiba a diferença entre alumínio e cobre.” admitiu enviando um holograma para Nico, duas peças idênticas no mesmo tom cróceo e inconveniente do holograma. Praguejou baixo. 

— Traga ambas. — sussurrou, de costas para a parede, os olhos firmes na sombra que se aproximava. 

Nico esgueirou-se para longe, dobrando as pernas para impulsionar-se para cima, escalando os escombros que barravam a passagem. Sua perna travou no momento do salto, tropeçando nas peças metálicas ao chão. Prendeu a respiração, em pânico. 

O silêncio no beco se seguiu pelo som de passos em sua direção, vários deles. Nico se virou, empunhando o bastão elétrico em mãos, ajoelhando-se de costas para a passagem chegada, diante sombras imensas e próximas. 

Soltou o ar vagarosamente, ativando a eletricidade da arma, preparando-se para o inevitável; ou ao menos pensou estar. 

O primeiro deles cruzou olhares com Nico, áureos, estreitos num rosto liso de bronze reluzente. A besta o analisou, seus olhos faiscantes na penumbra do amanhecer, os braços esticados para frente. Um arrepio correu sua espinha, paralisando seus músculos na visão que tanto repudiava; um medo indescritível borbulhou em seu âmago vis-à-vis com o Solaries, sem saída e indefeso. Qualquer que fossem suas chances antes, foram reduzidas à zero em poucos instantes.

Amparou-se nos escombros, preparando-se para o pior. O chão tremeu com uma explosão na Avenida, iluminando toda a cidade na erupção de fogo e luz. Passos velozes em direção ao centro desfocaram a atenção do Solaries de Nico tempo o suficiente para Will aparecer por detrás dele, atravessando seu peito com uma adaga de aço eletrificada. 

A besta entrou em curto, despencando ao chão em espasmos. Nico mal teve tempo para assimilar os diversos acontecimentos antes de ser puxado por Will para o outro lado do beco, arrastado por suas mãos fortes enquanto os guiava por onde vieram. Will se virou diversas vezes, observando o final da rua, sem desacelerar um minuto sequer. 

Nico tropeçou outra vez, a trava em sua perna sabotando sua fuga. Parou abruptamente, escorando-se nas paredes, ofegante, a perna em espasmos elétricos. Will se ajoelhou à sua frente, rasgando parte da sua calça, examinando a perna robótica; a fiação solta em curto. 

— Não posso continuar, não assim! — Nico proferiu, exausto, resignado. Will negou com a cabeça, severo. 

— Vou te tirar daqui. Prometi que o tiraria desta cidade, e é o que vou fazer. — admitiu se virando, instigando-o a subir em suas costas. 

— Solace?

— Vamos, eu te carrego o resto do caminho. — encorajou resoluto, seus olhos faiscantes nos de Nico. O inventor negou com a cabeça. 

— Se não possuísse partes robóticas eu subiria, mas no meu estado atual sou muito pesado. — relembrou nervosamente, virando o rosto para a marcha dos Solaries. Estavam se aproximando.

— E eu tenho pernas reforçadas, eu consigo. — Will assegurou, o olhar desesperado nos seus. Nico suspirou. 

Subiu em suas costas, passando os braços por seu pescoço enquanto era erguido pelos braços fortes de Will. Colou seu peito em suas costas firmes, sentindo os músculos se retrairem, as faixas em suas costas cobrindo a parte de cima de seu tronco; as fivelas do coldre em seus ombros e o tremor do vapor ganhando força nas pernas de Will. 

Segure-se. — alertou antes de disparar pelas ruas da cidade, veloz. 

Nico afundou o rosto em seu ombro, escondendo-o da visão distorcida da cidade desaparecendo rápida atrás deles; no sobe e desce dos telhados, se esgueiraram pelos becos já claros pelo amanhecer. Will ajeitou Nico em suas costas antes de se virar para a Avenida, acelerando os mecanismos em propulsão. 

Outro jato de vapor deixou suas pernas, velocidade acrescida à corrida. Will saltou da ponte, cinco metros acima dos telhados. Adentraram a neblina da Baixa Arcania, obscurecidos pela escuridão ainda existente no solo. Pousou oco no asfalto, os joelhos dobrados, envoltos em vapor pelo impacto brutal da queda. 

Dalí, William os levou até a entrada do beco onde havia o canal principal por onde Nico os guiou. O colocou no chão, descendo as escadas primeiro, auxiliando Nico antes de subir novamente e fechar a escotilha. 

Voltou ao chão, exausto, ofegante, despencou em seus joelhos. Nico abaixou-se ao seu lado, os braços hesitantes em seus ombros trêmulos. 

— Solace?

Will riu entrecortado, um rastro de euforia em sua voz. 

— Eu to bem… Só exausto. — admitiu entre uma tosse e outra, permitindo que Nico o erguesse do solo, sustentando-o em seus ombros: — Não deveria forçar o joelho. 

— Não estou, você quem fez todo o trabalho até aqui. — confessou Nico, caminhando com Will até seu esconderijo, o braço do rebelde por cima de seu ombro: — Obrigado por me salvar, eu paralisei naquele beco. 

Will balançou a cabeça, a seriedade voltando para seu rosto. 

— Eu percebi que tinha algo errado quando parou de responder minhas mensagens. — explicou Will, respirando fundo: — No momento que os vi entrando no beco onde você estava, eu usei um dos explosivos na fonte. Chamou a atenção deles e pude correr até onde estava sem que me notassem na fumaça. Fico feliz de ter chegado à tempo. 

Nico anuiu devagar, seu peito mais leve com a informação. Não entendia o motivo de William se esforçar tanto por ele, mas era gentil em o fazer. Se pegou sorrindo, gratidão fervendo seu sangue há muito resfriado pelos anos de solitude. 

Ajeitou o braço na cintura de Will, garantindo apoio pelo resto da caminhada.

 

⚙ ⚙ ⚙

 

Terminou de conectar seu joelho de volta em sua perna, retirando os óculos protetores. Observou seu trabalho, estendeu e encolheu a perna vagarosamente, sentindo as engrenagens trabalhando com fluidez. Suspirou contente, voltando finalmente à funcionar sob duas pernas apropriadamente.

Se esparramou na cadeira, cansado das horas trabalhando em sua perna, e mais algumas recolocando-a no lugar. Se virou para a figura adormecida em sua cama, em sono profundo há algum tempo. Sra. O’leary permanecia encolhida ao seu lado, confortável nos braços fortes do Solace. 

Nico se permitiu encará-lo por um tempo, na meia luz do lampião quase sem óleo. De longe, William tinha um porte esguio demais para um soldado, mas visto de perto, conseguia distinguir o porquê dele ser um revolucionário, nos músculos escondidos pela camisa larga, as pernas que suportam corridas sem se quebrarem; da determinação em seu olhar acostumado com batalhas. Era um sobrevivente que, diferente de Nico, não se escondia nos confins de uma cidade esmarrida, desaparecido como um covarde em fuga.

Era um homem decidido a viver entre os Solaries ao invés de submeter-se à eles.

Apoiou a cabeça em seus braços dobrados na mesa, esgotado. Adormeceu no instante em que fechou os olhos, imerso no silêncio do quarto, ninado pelo som da queima de óleo da Sra. O’leary e da respiração tranquila do Will.



Acordou assustado com mãos em seu ombro. Levantou a cabeça no mesmo instante, se virando para Will que erguia o indicador para seus lábios, pedindo silêncio. Nico concordou se virando para a porta a qual Will encarava com severidade.

Nico atentou seus ouvidos para os sons do lado de fora, a marcha que conhecia tão bem, mas que nunca havia presenciado do lado de fora de seu esconderijo. Arregalou os olhos, em choque.

— Eles nunca entraram nos canais antes. — sussurrou Nico incrédulo, erguendo-se da cadeira.

— Parece que você não é mais insignificante, Nicolò. — Will zombou, sem nenhum traço de diversão em sua voz. 

— Precisamos ir. — Nico afirmou, enchendo sua mochila com algumas trocas de roupa, porções de comida e óleo extra.

Se agachou em frente à Sra. O’leary desligando sua programação sonora, para que não fossem identificados pelos Solaries. Se virou para a porta, contando os passos pesados, a distância deles para a marcha. 

— Não podemos ir pela porta, estão perto demais.

— Tem outra saída? — questionou Will terminando de arrumar sua mochila, olhos sempre retornando para a porta, atento.

Nico olhou ao redor. A única saída que existia naquele cômodo era a que Nico havia feito na parede oca do canal. Vasculhou os cantos atrás de dutos ou tubulações que pudesse ter se esquecido, mas a única que existia ali era a de ventilação.

Ergueu a cabeça para o teto, para a hélice que girava letárgica acima deles, circulando o ar sufocante daquele espaço diminuto. Se virou para Will apontando para cima. 

— É o que temos. — garantiu convicto.

Um pouco do brilho travesso retornou para seus olhos índigos, puxando a mesa para o centro do cômodo. Enfiou a mão entre as hélices, forçando a estrutura dela a se soltar. O som ecoou no cômodo, paralisando-os no lugar. Will arregalou os olhos para Nico ao ouvirem o som dos Solaries aumentar.

Vamos! — incentivou Nico. Will arrancou a hélice, jogando-a ao chão sem cerimônias. Nico pegou o animal no colo entregando para Will que a colocou na tubulação.

Will impulsionou-se para cima, esticando o braço para baixo. Nico subiu na mesa agarrando sua mão, se deixando ser içado para cima, no espaço pequeno e claustrofóbico da ventilação precária. Nico ofegou. 

— Você é forte demais. — ressaltou Nico, incrédulo, mas agradecido. 

Will sorriu largo, orgulhoso de si mesmo. 

— Então, para onde? — questionou curioso.

— Por aqui. — Nico prosseguiu para o sul, agachado, com ambos Will e Sra. O’leary atrás dele, silenciosos e rápidos. 

Quanto mais se distanciaram da abertura do esconderijo, mais entravam no breu da tubulação. Em poucos instantes se viu preso na escuridão sufocante a claustrofóbica. Nico procurou a lamparina em sua mochila, queimando o óleo em sua base, aliviado por haver um pouco de luz entre eles. Ouviu o suspirar de William logo atrás e não pode evitar de rir daquela situação precária.

— Não gosto do escuro, confesso. — falou Will logo atrás, o tom de voz divertido.

— Aprendi a viver nele, mas não aprecio o breu. — admitiu Nico direto, seguindo caminho: — Mas me surpreende que tenha medo de alguma coisa, depois do que fez hoje. 

Will ficou em silêncio um tempo antes de respondê-lo. 

— Estou acostumado com as batalhas, mas não deixo de ter alguns medos mais normais. — falou baixo, numa confissão sincera: — Nunca gostei do escuro, e odeio a ideia de que precisamos viver nele para sobreviver.

Nico parou de andar, brusco. Se virou para Will, examinando seu rosto com incredulidade. 

— É por isso que se juntou à revolução? Para que não fosse obrigado a viver nos esgotos? 

Will negou, cômico: — Estou na revolução desde o começo, nunca fui outra coisa além de rebelde. Mas, se eu tivesse crescido nos canais, teria sido um dos motivos sim.

Nico murmurou voltando a caminhar, imerso em pensamentos. A aliança contra os Solaries se formou um ano após o incidente, quando viajaram pelos refúgios espalhados no país, reunindo pessoas hábeis o suficiente para lutarem contra as bestas. 

Sempre foi um rebelde. William Solace não era um homem adepto à injustiças, e se o que Nico imaginava fosse verdade, se os Solaries nunca houvessem sido criados sequer destruído a Sociedade a qual viviam, William Solace teria feito parte da Revolução Civil que ameaçava estourar há anos.

Sempre foi um rebelde. Sempre foi contra a criação e existência da Era do Vapor, disposto a usar da violência para encerrá-la.

Franziu a tez em confusão. Se William era alguém que detestava a tecnologia, certamente não gostaria de um inventor como companhia, muito menos numa viagem para fora da cidade, repleta de autômatos. Não acreditava que faria tudo aquilo só por uma árvore idiota. Nico travou o maxilar se impedindo de falar algo, não era hora para afastar seu único aliado naquela fuga. 

Chegaram ao final do canal, na saída de Arcania. Abriu a escotilha olhando ao redor. Estavam um pouco mais alto do que gostaria, uns três metros acima do solo. Ao redor deles encontravam-se os muros altos da cidade-de-bronze e o córrego atravessando o canal obstruído; ao longe, os pinheiros brilhavam na neblina densa, com os raios solares dando um pouco de vida ao cenário mórbido. 

Will apoiou sua mão no ombro de Nico, o puxando para trás com gentileza antes de saltar para o solo, caindo oco na terra seca. Esticou os braços, recebendo Sra. O’leary em sua animação muda. A colocou no chão antes de esticar os braços para Nico, encorajador. 

O inventor rolou os olhos, ajeitou o bastão em suas costas e saltou. Will suavizou sua queda, segurando-o pela cintura antes de o colocar suavemente no chão, se demorando com suas mãos em sua lombar. 

— Viu? Simples. — comentou suave, próximo demais de Nico. 

Nico piscou diversas vezes se afastando da palma quente do rebelde, sentindo seu rosto arder.

— Bo-bom. Para onde vamos? — questionou Nico, recriminando seu gaguejar incriminador.

Will sorriu: — Continuamos para o sul. Vamos para Patwell onde fica nosso refúgio.

Nico se virou na direção que Will indicou, para a copa das árvores altas e distorcidas pela neblina. 

— É uma longa caminhada. Dias à pé. — salientou Nico, cruzando os braços. Will arqueou a sobrancelha.

— Não vamos à pé. 

Will gesticulou para que o seguisse, caminhando ao lado da Sra. O’leary enquanto Nico apreciava o frescor da floresta que não via há anos. Inspirou fundo, o ar límpido e agradável da natureza livre das mãos do homem moderno. Apressou o passo, ficando logo atrás de Will na trilha de terra batida. 

Caminharam por pouco tempo antes de chegarem à clareira. Era larga e espaçosa, com grama alta cobrindo-a de fora à fora. Nico caminhou por ela, perdido na paisagem quimérica. Mesmo antes dos Solaries, nunca foi um apreciador da natureza, e boa parte de sua sobrevivência se deu em canais e esgotos, longe da natureza e da luz solar. 

Caminhar pela floresta de dia era um luxo que nunca usufruiu, e começava a se arrepender disso. A visão que tinha era exultante, e começava a compreender o amor dos rebeldes pela superfície. 

Will acelerou o passo, esticando a palma para a égua amarrada no canto oposto da clareira. Nico observou o animal malhado relinchar animado, confortável nos braços envolvendo-o. 

— Você tem um cavalo?

— Sim, há vários deles na natureza hoje em dia, soltos e em grande quantidade. — respondeu Will acariciando a crina escura e farta: — Por algum motivo eles sempre soltam os animais dos currais. Vacas, cabras, ovelhas, cavalos. Quando atacam um refúgio eles os soltam na natureza. A programação deles só tem a nós como inimigos. 

Nico abaixou o olhar. 

Sra. O’leary se aproximou deles, saltitante enquanto encarava o grande animal. Nico se agachou, reativando os latidos do pequeno animal que se tornou vocal no mesmo instante, latindo, uivando, dando voltas nas patas da égua que relinchava baixo, entretida. 

Will amarrou sua mochila nela subindo montando em sua sela. Esticou a mão para Nico. 

— Venha, temos uma longa jornada pela frente. 

Nico apertou a alça de sua mochila, encarando a mão estendida. Uma parte dele gostaria de perguntar mais sobre a revolução a qual estava envolvido, se estaria realmente seguro na companhia de alguém que repudiava inventores. 

Deveria dar meia volta e procurar outro esconderijo, ou alertar os refúgios que os Solaries aprenderam a se locomover nos canais. Mas enquanto pensava, aceitou a mão estendida de Will que o ajudou a montar. 

Amarrou sua mochila no lado oposto da de William, apoiando os braços na parte traseira da sela, segurando-se nela enquanto Will guiava a égua de volta para a estrada, com Sra. O’leary logo ao lado. 

Nico fechou os olhos para a situação, aceitando os delírios de sua mente. Quaisquer que fossem suas escolha dali por diante, se Will o estava levando para alguma vingança em massa dos inventores, ou se seriam capturados no caminho, Nico arcaria com as consequências. 

Não tinha nada à perder.

 


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Notas finais do capítulo

Opa, olha ai algumas informações interessantes sobre o Will. Será que é uma atitude de boa fé levar o Nico até seu refúgio, ou é algum ato com intenções mais obscuras? Quais suas apostas?

Bastante adrenalina nesse capítulo, mas não vai ser diferente do último. Será o maior dos dois, com mais informações, mas espero que vocês gostem do desfecho ;)

Até o último capítulo!

Beijinhos~



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